Diferente de meros entusiastas,
nós professores e/ou estudantes, quando falamos em história, devemos falar, não
em verdades, mas em versões dos fatos e hipóteses dos possíveis acontecimentos.
Questão de bom senso e prudência em tratar temas tão delicados como verdade e
história.
A verdade existe ou é um ponto
de partida (ou de vista)?
Como professor e estudante de
filosofia, história e sociologia, ao invés de verdade devo me utilizar do termo
fato. E os fatos podem ter mais de uma leitura, mais de um ponto de partida,
isso vai depender muito do interesse e objeto a ser pesquisado/analisado pelo
pesquisador, além do lugar de onde se observa, se estuda ou analisa o fato.
Dentro de um mesmo contexto temos movimentos, ou seja, fatos diferentes. E o
contexto, impreterivelmente, sempre deve ser levado em conta.
Dito isso, vamos à questão.
“Nunca
teste a profundidade de um rio com os dois pés” (Confúcio)
Na história das ‘artes marciais’
chinesas, popularmente ditas Kung Fu, cada estilo ou sistema tem sua história (ou
estória), a partir de algumas heranças narrativas deixadas pelos antepassados,
sejam elas factuais, folclóricas, lendárias ou simbólicas. História que soma na
composição e fundamento do estilo. As narrativas históricas (e/ou estóricas)
referentes ao Kung Fu, geralmente são de cunho oral, ou seja, passadas de
geração para geração, de mestre para discípulo ou professor para aluno,
oralmente. Pouco se tem de registro histórico a partir de critérios históricos
pesquisados e registrados por historiadores neste mundo tão amplo, controverso
e conflituante do Kung Fu. A exemplo do sistema que estudo/pratico e leciono, o
Wing Tjun (Wing Chun, Ving Tsun e/ou Weng Chun Kuen – entre outros), existem
mais de uma versão do seu surgimento e seu motivo ou fundamento de ser. Como já
foi dito acima, são hipóteses e não verdades absolutas. Na nossa escola (AFWK –
Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu), elegemos, a partir de certas referências,
pesquisas e pesquisadores – certas relações históricas e critérios próprios,
uma versão para ‘acreditar’ e, a partir dela, fundamentar, escrever, cunhar,
organizar, direcionar nossa prática. Contudo, consideramos aspectos das demais
versões de que temos conhecimento, fazendo jus ao título da nossa escola: Fluir. Não haveria de ser diferente (se
tem uma coisa pelo que preso, é a coerência – ou pelo menos tento). A partir disso,
desenvolvemos nosso currículo próprio por uma necessidade e não por
simplesmente acreditar ou seguir esta ou aquela versão histórica e esta ou
aquela referência. Nele existe a parte histórica e simbólica em que nos
apoiamos para fundamentar e elementar, mas sob tudo, dar significado ao nosso modo de estudar, interpretar e conceber o
WT e o Kung Fu, a partir da nossa escola ou associação.
Fundamento
básico do Wing Tjun: arte defensiva
“É melhor ganhar a guerra antes mesmo de desembainhar a
espada”. (Sun Tzu)
Nisso, basicamente o WT surgiu
por uma necessidade de ‘auto-defesa’, com uma característica interessante: “a
de possibilitar que pessoas mais fracas e menores se defendam de mais fortes e
maiores”. Para que isso fosse (e seja) possível, não contamos unicamente com a
mera força física muscular, nem somente com os movimentos e técnicas que
compõem o estilo ou sistema WT. Mas contamos com aquilo que chamamos de sua
‘essência’, sendo que, ‘técnica é instrumento e não essência’. Por isso
concebemos e trabalhamos nosso Kung Fu como sendo algo maior do que uma luta. Nisso,
usamos um conceito de ‘não-luta’ para
bem localizar nossa arte e aprimorar nossa re-ação. Neste sentido, a história
do WT é retomada a partir do seu período inicial até mais ou menos a rebelião
Taiping na China (que vai por volta de 1700 à 1850 aproximadamente), onde o
elemento ‘interno’ (Chi Kung - Tai Chi) era muito mais visível e presente no
WT. Ou seja, Wing Tjun também é uma das chamadas ‘artes internas’ (para muitas
escolas era, para outras, nunca foi, enquanto para algumas - como a nossa - é!).
Foi mais ou menos a partir da rebelião Taiping que o WT começou a diluir-se
internamente, onde muitas escolas ou linhagens começaram a tornar-se quase
totalmente externas. Um bom exemplo disso é o caso Ip Man, onde que o grande
mestre para poder ensinar seu WT em Hong Kong, para muitos alunos ao mesmo
tempo e considerando a realidade das ruas na época, precisou ‘mecanizar’ o
sistema, diminuindo significativamente a parte interna original do sistema.
Agora, não se sabe se ele tinha o conhecimento interno ancestral, pois isso
pouco fica evidente ao observarmos as escolas da chamada ‘linhagem Ip Man’ pelo
mundo. O fato é que o WT não nasceu em contexto militar (dentro do exército),
muito pelo contrário, nasceu com uma das intenções de se defender dele (leia-se
contexto do domínimo manchu, dinastia Qing na China, 1644-1911/12), em que,
para que esta ‘auto-defesa’ fosse possível, não era suficiente a força física
externa (muscular) e as sofisticadas técnicas do WT, era preciso trabalhar a energia (interna) e movimentações
físicas (além das aplicações em partes vulneráveis do corpo – característica
típica no sistema WT) mais flexíveis e/ou relaxadas, interna e externamente. E
é disso que se trata quando falarmos em defender-se de pessoas mais fortes,
maiores e mais pesadas. Ou seja, é com os elementos citados acima, bem,
primeiramente ‘incorporados’ e depois bem treinados que se tem possibilidades
de sair de uma situação onde uma pessoa mais forte, maior e mais pesada agarra,
por exemplo, e esta é uma situação de auto-defesa, não de luta, pelo menos, não
de ‘igual para igual’. Por isso dizemos que WT não é luta (simplesmente).
Wing
Tjun não é luta!
“A primeira batalha que devemos travar é contra nós mesmos”
A ‘não-luta’ consiste basicamente em não jogar, não disputar, não
atacar, não agredir, não endurecer frente a uma situação, seja ela simples ou
complexa, de perigo. Ou seja, não fazer o mesmo que o agressor, mas sim, se
utilizar estrategicamente das suas ações, tendo em vista o conceito anterior do
‘mais fraco’ contra o ‘mais forte’. É daí que partimos sempre, independente da
realidade, pois, não é a força física que está em questão, mas sim, o Kung fu,
ou seja, a habilidade, sensibilidade e inteligência estratégica mental e
corporal, que fundamentalmente considera o instinto, a intuição e o entorno
(terreno, situação ou contexto) no momento do acontecimento – “se auto-gerir e
organizar no caos”. Aí entram conceitos como o de ‘terreno’ ou ‘território’
(este caso em específico a partir do taoismo filosófico – leia-se Tao Te
Ching), o que não é nada mais, nada menos, que o próprio ‘corpo’. O uso do
corpo como algo vivo, móvel, dinâmico, possível, fluente. O corpo também é
expressão e movimento. E é neste sentido que, ao invés de um ‘terreno fixo’,
atuamos como um ‘terreno móvel’. Para sair de uma condição de domínio é
necessário integrar, dissimular, fluir. E para isso temos outros conceitos, os
das intensidades dos movimentos, simbólicamente a partir dos elementos da
natureza ‘água, terra (madeira/metal), ar/vento e fogo’, cada qual com sua
interpretação e característica aplicadas na ação (um assunto complexo que não
cabe em um texto e que é necessário compreender e praticar para desenvolver e
aplicar).
Resposta
defensiva
Nisso, faço um ‘recorte’ de
tópicos do currículo AFWK a modo de melhor exteriorizar (teoricamente falando)
uma maneira de estudar (e por em prática, pois, toda teoria vem acompanhada de
sua prática, onde uma - teoria e prática – depende da outra, ou seja, elas
coexistem e não podem viver em paralelos) a questão, a partir do que se tem ou
se pensa quando se fala de ‘defesa-pessoal’ (tendo como base ou exemplo a
defesa contra pessoas mais fortes, maiores e mais pesadas) – a partir de um
princípio do Wing Tjun:
4 Níveis de ação-reação físico espacial (currículo AFWK)
* Nível sensorial:
1º
Defender/Proteger/Preservar (terreno/corpo): antecipar o problema
(proatividade) sem contato físico-corporal, a partir de certas ‘habilidades’,
como instinto, intuição, percepção, sensibilidade, ‘visão’ (leitura espacial) e
'atenção plena' (consciência ou razão com foco no presente – leia-se
budismo-taoismo filosóficos) - Fluir no tempo-espaço;
* Níveis técnicos:
2º Afastar (deixar ir ou
passar): sem ou com contato físico-corporal;
3º Neutralizar: censurar
ou impedir ação ou reação (ocupando espaço);
4º Aniquilar (caso
extremo).
Obs.: Não submeter;
evitar imobilização.
* Níveis dispostos em
ordem de ação - e que serão compreendidos e efetivos somente mediante estudo
presencial e técnico.
Os quatro pontos básicos
fundamentais de ação:
1. Controlar o
oponente: a partir da colagem/aderência nas armas (membros superiores) do
agressor e terreno (corpo), a modo de controlar seus movimentos, seu espaço e
tempo, impedindo seus movimentos e ataques a partir da
aderência-dissimuação-aderência (em água-terra-água); assim como, controlar o
espaço a partir do jogo de quadril e base/postura (membros inferiores);
2. Desequilibrar
o oponente: a partir da quebra estrutural do seu eixo gravitacional de
equilíbrio (linha central), a partir do ponto 1 e uso da energia (Chi);
3. Afastar o
oponente: a partir dos pontos 1 e 2, separando/empurrando o agressor a
partir do uso da energia (Chi) vinda do Tan Chien, criando espaço defensivo e
impedindo assim o alcance de seus ataques;
4. Aplicar
golpe(s) no oponente: a partir do desvio de qualquer movimento e ataque do
agressor - preferencialmente com contra-ataque simultâneo e flexível (vento ou
fogo) - atacar seus pontos fracos, vulneráveis, letais (mão aberta nos olhos,
genitais, garganta, nuca, coluna, plexo, lateral dos joelhos), a modo de
impedir sua reação e a continuidade da agressão.
Nisso tudo, temos a tão falada ‘economia de energia’
em WT e o controle de si próprio.
Possibilidade(s)
Não há magia. Há estudo, muito estudo, concentração,
respiração, prática, experiência, treino. O que define uma boa arte, uma boa
ação, um bom Kung Fu, não é a força ou simplesmente a técnica, nem seu título
ou a autoridade sobre ele (isso geralmente é discurso), é a sensibilidade
mental e física e a habilidade adquirida a partir de estudos, práticas,
experiências. Para isso, é fundamental relaxar, ‘incorporar o Kung Fu’ não
somente externamente, mas também internamente, pois, é ‘do interno para o
externo’ que as coisas acontecem com mais intensidade. ‘Mergulhar no vazio’
antes, manifestar depois, se necessário, mas com equilíbrio (leia-se taoismo).
Herman
Silvani (estudante/professor de Kung Fu e Chi Kung na AFWK; praticante
de Tai Chi Chuan Pai Lin)