domingo, 8 de janeiro de 2017

O comércio das artes marciais

Não raramente alguns fatores levam ao descrédito e ao distanciamento de muitas pessoas as artes marciais no Brasil (e pelo mundo), aumentando a ignorância e o preconceito sobre esta prática, onde muitas pessoas não sabem realmente do que se trata, apenas reproduzem o que acreditam ou absorvem a partir da publicidade ou de acontecimentos sobre o assunto. Um deles, é o fato de que alguns praticantes e mesmo professores (instrutores ou mestres), se colocam como ‘donos da verdade única e absoluta’ (e muitas vezes ‘autoritários’ – não ‘autoridades’), sendo egocêntricos e arrogantes, mas achando que são ‘sábios’, quando não passam de medíocres. Isso acaba diminuindo significativamente a dignidade que deve existir numa arte marcial que se preze sincera, coerente com a realidade, enquanto conhecimento humano. Outro fator que deprecia muito, e às vezes torna a arte marcial piada ou sinônimo de violência, é o mau uso que se faz dela, onde se condiciona o aluno, se ‘ensina’ simplesmente técnicas, sem o estudo aprofundado dos conceitos e/ou da filosofia da arte (conhecimentos que se integram e se aplicam no real), acrescendo assim o ego do estudante/praticante, onde sua conduta social parte do seu eu, do seu umbigo, em que, músculos e estereótipos dão o tom da sua postura e/ou prática social. Isso é muito comum no meio dito ‘marcial’. Mas um dos fatores que mais me chama a atenção é o fator ‘publicitário’, ou seja, o ‘discurso’ que se faz acima daquilo que se divulga, melhor, neste caso, se ‘vende’. Na maioria dos casos este ‘discurso’ é falacioso, ou seja, mentiroso. Exemplos não faltam - no que chamo de ‘discurso do guerreiro’-  aquele discurso ‘motivador’, que soa como uma ‘teologia’ aos ouvidos do receptor passivo das ‘verdades’ ditadas pelos ‘mestres da falácia’. Nisso, um dos maiores ‘chavões publicitários’ usados para convencer e muitas vezes ludibriar o ‘consumidor’ é o da ‘defesa pessoal’ ou da ‘auto-defesa’, muito comum, por exemplo, relacionado ao método (ou ‘estilo’, ou ‘arte marcial’?) criado militarmente em Israel, chamado de Krav Maga. No Brasil o KM (abreviação) se tornou quase que sinônimo de ‘defesa pessoal’. Mas, é de fato? Depende! Do que? De muita coisa! Ou seja, isso é muito relativo (tanto que a discussão precisa ser aprofundada – não cabendo aqui-agora). O que sei, é que, muito do que se discursa e se vende de ‘defesa pessoal’, não é. Socos, chutes, torções, etc., não significam garantia de defesa. É preciso muito mais que isso para se ter um mínimo de condições para uma ‘auto-defesa’ que funcione dentro da realidade ou situação, e tudo não começa pela técnica marcial (ataque), mas pela ‘sensibilidade’, percepção, intuição, visão. Mas, os vendedores do produto ‘defesa pessoal’ trabalham na lógica da ‘propaganda enganosa’, ou seja, mais discurso e técnica publicitária de venda a partir de uma motivação (teológica) do que realidade, sinceridade ou honestidade. Dito isso, vamos à um exemplo deste ‘discurso’ encontrado junto a um vídeo de uma escola da arte em questão:

“ATENÇÃO: ESSE VÍDEO CONTEM CENAS FORTES DE KRAV MAGA EM (nome da cidade e Estado) - BRASIL.
Não assista se não quiser ficar decepcionado com outros treinamentos de defesa pessoal.
Krav Maga Israelense!
As melhores unidades de elite do mundo praticam, agora só falta você!”

*  Obs.: preservo o nome da associação ou escola e da cidade para não gerar algo a mais do que esta discussão, sendo que o objetivo não é detratar, apenas possibilitar o contraponto.

Tudo bem se o discurso fosse coerente com a realidade, mas não é. Para quem estuda, pratica, conhece, tem a arte marcial incorporada na sua vida (para além do estereótipo, do ‘negócio’ ou do ‘status’) não é tão simples assim - nem o conteúdo do vídeo em questão (como tantos) é coerente com o que se discursa na propaganda escrita.

O ego prepotente ‘combatido’ pelas mais profundas filosofias e práticas marciais do mundo - ou, a contradição:

“Não assista se não quiser ficar decepcionado com outros treinamentos de defesa pessoal.”

Este trecho demonstra a arrogância, a prepotência (ou ‘malandragem’) típica de um dirigente ou ‘mestre’ desequilibrado – ou mero comerciante? -, ou seja, o ‘ego’ do mesmo (representado pelo excesso de ‘confiança’ – ou discurso publicitário?!) não é coerente com uma prática marcial digna (que considere seus fundamentos), pois, a filosofia por trás desta arte deve ser considerada, respeitada, no mínimo, e praticada, caso contrário, a arte passa a ser um mero produto comercial (como se constata quando se tem um discurso desses e vídeos cheios de ‘clichê marcial’ e/ou estereótipos, o que acaba por detratar a arte marcial).

“As melhores unidades de elite do mundo praticam, agora só falta você!”

Este trecho acaba reiterando a falácia e prepotência do trecho anterior, e revelando a intenção quando o convite vem com a ‘imposição’ do discurso propagandista anterior, em outras palavras dizendo que ‘os outros são inferiores, pois decepcionam’ e na sequência ‘os melhores praticam o nosso’.



Não é a primeira propaganda que vi que não respeita e pratica a ‘ética’ marcial. E cá entre nós, neste mundo dito ‘marcial’, ego é individualismo é o que mais se vê, infelizmente, contradizendo(se) daquilo que é essencial numa ‘arte marcial’, o ‘equilíbrio’ de estar e ser. Talvez falte leituras, filosofia, conceitos, práticas que integrem-se. Como é historicamente, é na filosofia taoista e budista, por exemplo, que muitos destes conceitos, destes discernimentos, destas ‘essências’, se encontram. O problema é que muitos ‘mestres’ e associações ou escolas fecham os olhos para isso (não estudam), reduzindo-se assim em meros reprodutores tecnicistas donos dos seus espaços de comercio ou fabricação de egos danificados pelo negócio ou pelo status de estar, mas não realmente ser.



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