Como
muitos brasileiros e ocidentais, fui nascido e criado numa família de
orientação cristã católica, dentro de uma cultura consumista e modo de produção
capitalista. Um modo de vida e crença que divaga entre o conservadorismo (herança
do coronelismo escravocrata e da ditadura militar) e o liberalismo (herança
iluminista e da revolução burguesa). Enquanto forma de trabalho, somos (nosso
modo de vida e sociedade) herdeiros do trabalho rural no campo, onde a
necessidade de sobrevivência, em muitas situações, deu lugar à escravidão ou
submissão ao coronelismo, e mais tarde, aos trâmites das chamadas ‘integrações’
dadas pelo advento das agroindústrias. Já na cidade, a herança veio da organização
fabril, constituída após as Revoluções Industriais que espalharam pelo mundo
uma concepção ‘desenvolvimentista’ de sociedade, baseada no lucro,
individualismo, ‘livre’ concorrência e ‘livre’ mercado. Tudo isso, em algum
sentido tem um fundo platônico (a partir do ‘idealismo platônico’),
filosoficamente falando, inclusive, até as concepções ditas ‘progressistas’,
que também caracterizaram a chamada ‘esquerda’ mundial, seja ela de cunho
anarquista, socialista ou comunista, e que fizeram frente as ideologias
liberais-burguesas e conservadoras. Nisso, entre concepções liberais,
conservadores e socialistas, cresci e fui aprendendo, desenvolvendo minha
percepção das coisas e minha personalidade (inconcluida). Sempre duvidei dos
discursos de convencimento, antes mesmo de saber das ideologias que haviam por
trás deles, antes mesmo de saber de retórica e filosofia. Talvez tenha sido por
causa destas desconfianças, destes interesses, que me tornei estudante e
professor de humanas e sociais (filosofia, história e sociologia) e de
linguagem.
“Mergulho
com o influxo e surjo com o refluxo, sigo o Tao da água e não lhe imponho minha
visão egóica. É assim que eu me mantenho flutuando" (Chuang-Tzu)
Passados
os anos, não cresci apenas exteriormente, pude crescer também interiormente. E
foi neste crescimento, neste desenvolvimento, que tive contato com o taoismo. Foi
a necessidade que me puxou para tal caminho. Estudando, fazendo contatos,
experimentando pensamentos, filosofias, modos de vida e práticas
socioculturais, foi que pude ter acesso a vários destes conhecimentos, entre
eles, o taoismo. E de ‘cristão’ (o que nunca fui na prática religiosa), acabei me tornando taoista. Taoismo enquanto
filosofia, conhecimento, sabedoria, prática, postura, integração social,
humana, cultural e espiritual-energética (com a natureza), é este o sentido do taoismo ao qual hoje me
dedico estudar, lecionar e praticar (viver). O que chamo de taoismo filosófico
(e não necessariamente religioso). Nele, pratico alguns ‘rituais’, como um modo
próprio de meditação, além da saudação concentrada em respeito e devoção à
alguns símbolos (sejam culturais ou naturais), memórias e espíritos ou energias
de antepassados e da natureza. Simples assim, sem pregador ou doutrinação.
Nosso (meu) líder espiritual é a natureza, seu espírito (que também se
manifesta como energia), a memória e espiritualidade dos grandes mestres e
antepassados, que seguem vivas em nós, nos energizando e ensinando. Este é meu
cultivo ‘espiritual’ (energético) na vida taoista que hoje levo ou busco (além
da pratica do Chi Kung e do Kung Fu).
"A
grande virtude do Céu e da Terra chama-se vida" (I Ching,
o Livro das Mutações)
Neste
sentido, taoismo é um ‘estado de espírito’, uma forma de sentir, perceber, ver,
integrar, atuar, ser e estar no mundo e na vida, tendo como principal referência
a(s) natureza(s) e seu fluxo constante de vida. Nisso, não temos um deus
pensado pelo homem ao seu modo, ou entidade divinizada, mas temos a
natureza (mãe de todas as coisas), a criação e fluxo, o ‘espírito’ de tudo o
que é vivo, uma energia que, se não sagrada, fundamental para nós. Nosso
fundamento é o Tao, não nominado, não racionalizado, mas sentido e incorporado
energeticamente e espiritualmente. Portando, ser taoista neste sentido, não é
impor uma verdade absoluta que se acredite, mas apenas buscar o ‘equilíbrio’
necessário e fundamental para, respeitando, integrando e/ou no mínimo, se
reaproximando da natureza e da vida, estar no ‘caminho’ (Tao), o caminho da
virtude, onde não há morte ou fim, apenas transformação e o próprio caminho,
onde tudo, inclusive a vida, se transforma e continua sendo, não um estado, nem
uma verdade ou fim, mas um caminho...
Alguns elementos que
caracterizam o Taoismo (a partir de grandes mestres):
·
Espiritualidade e Caminho
(...) “aprofundar-se no Caminho consciente que dará suporte à sua prática
interior, e desenvolver a característica de um coração abrangente na relação
com o mundo, o que sustentará sua prática exterior”.
(...) “profundidade diz respeito ao
mergulho solitário que o indivíduo empreende na direção do seu interior” (...).
(mestre Wu Jyh Cherng, a partir da
interpretação do ‘Tao te Ching’ de Lao Tse)
·
Pensamento, Conhecimento e Prática
“O pensamento
ocidental está fixado no hiato entre o que é
e o que deveria ser.”
“Fora da tradição
ocidental, os taoistas da China antiga não viam nenhum hiato entre ser e dever ser. A ação correta era o que quer que derivasse de uma clara
visão da situação. Eles não seguiam os moralistas – confucionistas, naquela
época – que buscavam acorrentar os seres humanos a regras ou princípios. Para
os taoistas, a vida boa é apenas a vida natural vivida com habilidade. Ela não
tem nenhum propósito particular. Não tem nada a ver com a vontade e não consiste
em tentar realizar nenhum ideal. Tudo o que fazemos pode ser feito de maneira
mais certa ou menos certa, mas, se agimos certo, não é porque traduzimos nossas
intenções em ações. É porque lidamos habilmente com o que quer que precise ser
feito. A vida boa significa viver de acordo com nossas naturezas e
circunstâncias. Não há nada que diga que ela deva ser a mesma para todo mundo
ou que deva estar em conformidade com a ‘moralidade’.
No pensamento taoista, a vida
boa vem espontaneamente; mas espontaneidade está longe de ser simplesmente agir
segundo os impulsos que nos ocorrem. Em tradições ocidentais como o romantismo,
a espontaneidade está ligada à subjetividade. No taoismo, significa agir
desapaixonadamente, baseado numa visão objetiva da situação presente. O homem
comum não pode ver as coisas objetivamente porque sua mente está anuviada pela
ansiedade de alcançar suas metas. Ver claramente significa não projetar nossas
metas sobre o mundo; agir espontaneamente significa agir de acordo com as
necessidades da situação. Os moralistas ocidentais perguntarão qual é o
propósito de tal ação, mas, para os taoistas, a vida boa não tem propósito. É
como nadar em um redemoinho, respondendo às correntes tal como vêm e vão. ‘Mergulho
com o influxo e emerjo com o refluxo, sigo o Tao da água e não imponho a ela
minha visão egóica. É assim que permaneço à tona’, diz o Chuang-Tzu.”
“O taoista relaxa o corpo, acalma a mente, afrouxa a pressão
exercida por categorias tornadas habituais pelo nomear, libera a corrente de
pensamentos para diferenciações e assimilações mais fluidas e, em vez de pesar
escolhas, deixa que a inclinação espontaneamente encontre sua própria direção.
(...) Ele não tem que tomar decisões baseadas em padrões de bom e mau, porque,
admitindo-se apenas que iluminação seja melhor que ignorância, é auto-evidente
que, entre inclinações espontâneas, a que prevalece numa situação de maior
clareza da mente, outras coisas sendo iguais, será a melhor, ou seja, a que
está de acordo com o Tao, o Caminho.” (A. C. Graham)
(Cachorros de Palha –
John Gray)
"A
rigidez e a flexibilidade também fazem parte do Ciclo da Vida e da Morte: ao
longo da vida, a pessoa está sempre alternando sua maneira de se manifestar no
mundo, usando palavras, pensamentos ou sentimentos ora rígidos, ora flexíveis,
conforme circunstâncias que estiverem atuando no contexto. Desta forma, ela
estará sempre direcionando coisas rígidas para a morte, entendida como a
transformação traumática de uma circunstância, e as coisas flexíveis para a
naturalidade da vida (...) E o próprio ser humano como um organismo vivo também
passa por essa alternância: quando nasce, o bebê é flexível e maleável, mas
conforme a pessoa se desenvolve na vida, adquire rigidez física, energética e
mental, até finalmente morrer e seu corpo adquirir completa rigidez".
“Não se consegue
colocar mais chá dentro de uma xícara cheia, da mesma forma que não se consegue
ensinar algo para quem tem a mente e o coração cheios.”
(Lao Tse – comentários Wu Jyh Cherng)
·
Reflexões em torno do desapego e do
vazio, da não-intenção e da não-ação
“Uma vez recebida esta forma corporal fixa, o homem
se apega a ela, à espera do fim. Às vezes chocando-se com as coisas, às vezes
curvando-se diante delas. (...) Não é ele patético? Transpirando e labutando
até o fim de seus dias sem jamais ver sua própria realização, exaurindo-se
completamente sem saber jamais onde buscar o repouso (...) Seu corpo definha,
seguido pela sua mente.”
“Desta bagagem de valores convencionais é que o
homem deve se descartar, primeiro que tudo, antes de poder ser livre.”
"Não
sejas um personificador da fama; não sejas um silo de esquemas; (...) ; não
sejas o proprietário da sabedoria. Incorpora o mais plenamente que possas o que
não tem fim e perambula por onde não há sendas. Aferra-te a tudo o que
recebeste do Céu, mas não creias que possuis alguma coisa. Sê vazio, eis
tudo." (Chuang Tzu)
“Agir com a não-intenção não significa
deixar de agir ou agir sem objetivo, mas atuar efetivamente no mundo através da
orientação que nasce diretamente da Consciência Universal, sem considerar as
intenções do ego.”
(mestre Wu Jyh Cherng, a partir da
interpretação do ‘Tao te Ching’ de Lao Tse)
·
Consciência presencial e do
coletivo
(...)
"uma criação no tempo presente, ainda que sua autoria seja assumida por
uma única pessoa, será sempre resultado do trabalho de um considerável número
de criações anteriores, sejam obras, conceitos ou o próprio exercício da
inteligência, que produziram as condições necessárias para serem criados os
objetos ou a ideias supostamente individuais, do momento. (...) quem conhece a
fonte da energia vital e se torna uma pessoa coletiva porque se une à raiz de
todas as manifestações, terá em si mesma, como uma pessoa de consciência
coletiva, o poder da criação".
"Ladrões
e roubos estão referidos à consciência e à energia da pessoa, que são roubados
pela natureza ou por outros seres através do esforço constante e excessivo que
ela faz para atender aos interesses do seu ego".
(Wu
Jyh Cherng - mestre taoista comentando a partir do 'Tao Te Ching' de Lao Tse)
*
* *
“Trinta raios convergem para o
meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.
Molda-se o barro para fazer
um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.
É o espaço dentro dele que o torna útil.
Fazem-se portas e janelas
para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.
São os buracos que o tornam útil.
Por isso, a vantagem do que
está lá
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está.”
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está.”
(Lao Tsé, Tao Te Ching)
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