- Porque muitos entusiastas,
estudantes/praticantes, instrutores, professores e até ‘mestres’ de artes
marciais no Brasil reproduzem concepções conservadoras?
Começamos com a questão: O que é o
‘conservadorismo’?
Termo usado para
descrever posições político-filosóficas alinhadas com certas tradições ou
crenças que em geral se contrapõem a mudanças ou avanços. Característica do que é
conservador, avesso a mudanças. Em termos históricos o
conservadorismo é uma doutrina associada à direita política que costuma
defender determinadas tradições, valores religiosos e nacionalismo, como forma
de manter certo padrão de pensamento e ações, geralmente formais e presos
dentro de certas normas, hábitos, crenças, ideologias ou valores imutáveis de
autoridade.
A partir de leituras, alguns diálogos ou debates com praticantes, professores e mestres, e de refletir em torno de algumas publicações no mundo virtual (sob tudo na rede social), é que cheguei à questão.
A partir de leituras, alguns diálogos ou debates com praticantes, professores e mestres, e de refletir em torno de algumas publicações no mundo virtual (sob tudo na rede social), é que cheguei à questão.
Um dos grandes sentidos históricos e
filosóficos do Kung Fu, assim como um dos seus maiores motivos de ser, é “parar
com a guerra”. Sentido este simbolizado por uma saudação tradicional chinesa. E
isso é (ou deveria ser) básico no ‘modo de vida’ que também é o Kung Fu. Porém,
muito se vê ‘artistas marciais’ por aí fazendo o contrário, ou seja, promovendo
ou alimentando ‘guerras’ (externas e internas) nas suas manifestações públicas
(leia-se ‘guerras’ aqui, como ‘conflitos’ carregados de ‘violência simbólica’,
neste caso em específico). Atitudes e posturas que amesquinham a riqueza
cultural, histórica, filosófica e conceitual que é o Kung Fu em sua essência, para
além de sua aparência. Seguindo certo fundamento do Kung Fu, nós, estudantes,
praticantes ou professores de Kung Fu ou outras artes marciais afins,
deveríamos proceder no sentido de “parar com a guerra” e não “promover a
guerra”. Sobre isso, já nas escritas antigas de antigos pensadores ou sábios
chineses, se propunha um equilíbrio no mundo manifestado, interna e
externamente (leia-se Lao Tse, Chuang Tzu, entre outros). Isso também
transparece em uma das obras mais significativas em se tratando de ‘arte
marcial’, falo do livro a “Arte da Guerra” de Sun Tzu, onde ele destaca: “A
primeira batalha que devemos travar é contra nós mesmos”.
Geralmente esta característica ‘conservadora’,
determinista e reducionista, de se promover guerra em nome de uma suposta
‘verdade’, está ligada as posturas ‘duras’ ou ‘rígidas’ do homem ‘militarizado’
(leia-se o termo aqui enquanto forma cultural de ser/estar), onde no ocidente,
geralmente, acontece pelos ‘tecnicistas’ do Kung Fu, ou seja, àqueles que
estudam somente o sentido técnico da arte, onde que, assim, vivem afastados da
essência do Kung Fu, sendo que, ‘técnica não é essência, é instrumento’. Nisso,
há uma diferença considerável entre técnica e sensibilidade, sendo que ambas
fazem parte e constituem o Kung Fu, para além de sua popularidade espetaculosa
ou caricata, ou seja, de seu estereotipo ou clichê. Mas, no Brasil (e certamente,
em outras partes do mundo), muito do Kung Fu que se promove por aí é feito
estereótipo ou clichê. Acontece muito com entusiastas das artes marciais se
transformarem em estereótipos ou caricaturas ambulantes, sendo que,
frequentadores de academias esportivas e/ou comerciais, prezam mais pelo corpo
malhado, seguindo um discurso de saúde a partir da aparência e não do interior,
onde se valoriza mais a estética ou somente a técnica do que a filosofia que
permeia toda a prática do Kung Fu. É muito comum hoje vermos o estereotipo do corpo
bem trabalhado e tatuado, além da força física aparente e por assim ser, postura
impositiva, somado isso ao ego elevado, inimigo número um do Kung Fu.
Os valores intrínsecos do Kung Fu são de alto
nível humano, onde o respeito, a hombridade, a serenidade, a simplicidade e a
tolerância (entre outros), são questões primordiais no seu fundamento, bem
diferente do que se vê muito por aí, aquele sujeito ‘machão’, durão, todo forte
e com a palavra impositiva dita na vertical, algo bem comum neste mundo virtual
contemporâneo onde muitos posam de sociólogos, filósofos e psicólogos, sendo
que, geralmente não passam de moralistas conservadores.
Entusiastas e estudantes defendendo ‘causas’
mesquinhas ou medíocres, até se compreende, já que estão ‘estudando’ (mas não
necessariamente aprendendo), mas, instrutores, professores e/ou mestres reproduzirem
estas atitudes, aí já temos um problema.
No período das dinastias autoritárias e
repressoras da população mais vulnerável da China antiga, monges budistas
praticantes do Kung Fu do famoso templo Shaolin raramente saíam de seu habitat.
Uns dos motivos destas saídas eram, em tempos de crise, fome e guerras, ajudar
os mais necessitados que sofriam pelas ruas. No belíssimo filme ‘Shaolin’ de
2011, dirigido por Benny Chan, em dado momento, é narrado este fato. A própria
história do Wing Chun, por exemplo, segundo alguns estudiosos, tem íntima
relação com a arte, com o feminino (sensibilidade) e a ajuda aos mais
vulneráveis, a partir de grupos rebeldes ou revolucionários que resistiam ao
regime autoritário imperial dos manchus se sua dinastia (Qing, 1644 - 1912). Ou
seja, segundo alguns estudos, tecnicamente falando, o Wing Chun foi
desenvolvido para que pessoas ‘mais fracas’ pudessem se defender de pessoas
‘mais fortes’, e historicamente, como uma ‘arte de resistência’ a opressão das
investidas violentas do império (leia-se que isso não tem nenhuma relação
direta com a teoria marxista, foi muito antes de ela existir).
A dureza ou a rigidez de movimentos e o
condicionamento físico supervalorizado, mas principalmente, a dureza ou rigidez
nas concepções e certas formas de agir, são heranças militares nas artes ditas
‘marciais’ (conste que o termo ‘marcial’ é ocidental, remetendo-se a Marte,
deus romano da guerra), o que difere da concepção flexível e tolerante de viver
a vida, típicos do Kung Fu, concepção esta herdada das fontes filosóficas
orientais, onde o taoismo e o budismo (enquanto filosofias e não religiões),
por exemplo, tem fundamental papel nesta cultura (China e Kung Fu).
Pregar ou reproduzir a cultura da violência,
da punição e/ou da morte não é postura de um praticante de Kung Fu que
dignifica sua arte, assim como a repressão de um ditador ou o prevalecimento de
um poder sobre uma carência (mais fortes sobre os mais fracos) vai totalmente
ao oposto do que é o Kung Fu, no mais amplo sentido de seu termo e
significação.
“Parar com a guerra” então, não é reproduzir
ou posicionar-se ao lado de entidades e/ou pessoas que promovem, em ações,
campanhas ou discursos, a violência, a ‘guerra’ (seja ela física, religiosa, de
gênero ou ideológica). Eis que, um praticante, professor ou mestre de Kung Fu,
digno de sê-lo, deve ter este discernimento, tendo uma postura serena,
pacífica, humanizada, tolerante, respeitosa e inteligente frente a certas
realidades e políticas estabelecidas. A crítica ou a posição podem existir, mas
não devem ser odiosas, maléficas, mesquinhas, medíocres, deterministas,
reducionistas. Elas devem ser profundas e equilibradas, assim como deve ser a
prática de vida de quem vive o Kung Fu e não apenas o treina
externamente/fisicamente. Eis a diferença de uma coisa de outra. Eis o que
muitos não conseguem compreender, viciados que são em suas conveniências e
egos.
"Céu e terra não tem atributos e não
estabelece diferenças: tratam miríades de criaturas como cachorros de
palha". (Lao Tse)
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