Existem pelo
mundo uma infinidade de ‘estilos’ de Kung Fu, assim como, uma infinidade de
escolas, associações e linhagens desta nobre, antiga e sofisticada arte. Cada
qual com suas tradições, peculiaridades e aspectos. Algumas mais ‘modernas’
outras mais ‘tradicionais’, digamos, no que concerne seguir certos padrões ou
normas vindas do ‘estilo’ ou ‘modo’ familiar de se fazer (conceber, estudar e
praticar). Além da ‘tradição’ das ‘linhagens’, existem aquelas que não seguem
uma linhagem em específico ou exclusivamente, optando (ou por uma necessidade)
por não seguirem uma única orientação (‘modo familiar’ ou ‘linhagem’). Ambos os
casos podem ser interessantes e profundos – ou não. Vai depender da sinceridade
para com os estudos e a arte, além do acesso e boa orientação. Ou seja, a
questão é complexa e requer de cautela quando for tratada, pois, julgamentos
externos não são suficientes para compreender ou caracterizar uma ou outra
prática, associação ou escola.
Dito isso,
vou me conter aqui em falar de uma questão que muito aflige
praticantes/estudantes e entusiastas do Kung Fu. Ou seja, duas vertentes bem
comuns que ora se separam, ora se fundem, em ‘linhas’ ou ‘modos’ de se
conceber, estudar ou praticar Kung Fu. Uma delas, vamos chamar de ‘vertente
dinâmica’, outra de ‘vertente tecnicista’ (sendo que, ‘técnica’, ambas as
vertentes possuem, como algo indissociável da prática).
Vertente Dinâmica
A ‘vertente
dinâmica’ é aquela que, além da técnica, preza pelo estudo
filosófico/conceitual do ‘estilo’ ou ‘sistema’, onde geralmente se estuda,
respeita e incorpora certa ‘espiritualidade’ (não no sentido religioso da
palavra, mas de ‘estado’ existencial interno e externo – leia-se taoismo), numa
prática que funde ‘mente, corpo e equilíbrio’. Nisso, o Kung Fu passa a ser
algo ‘espirituoso’, além de técnico e físico-externo, onde as chamadas ‘artes
internas’ tem um papel fundamental, a partir da concepção, estudo ou prática. Ou
seja, do uso da chamada ‘energia Chi’ (também chamada de ‘sopro vital’ na
cultura chinesa). Quando falamos em Kung Fu, falamos na China, na sua história,
seus conceitos e concepções de vida, ou seja, na sua CULTURA. Nesta vertente,
pensar e praticar o Kung Fu torna-se algo ‘naturalizado’ (ver conceito no
taoismo - enquanto filosofia), o que passa a ser parte da vida do
estudante/praticante, e não apenas uma ‘arte marcial’ como é comumente dito ou
propagandeado por aí. Em síntese, o praticante de Kung Fu nesta vertente passa
a ‘incorporar’ esta arte como, pelo menos, parte do seu modo de vida, de estar,
pensar e viver o mundo, em relação às coisas e aos outros. Nisso, Kung Fu passa
a ser algo que vai muito além da técnica e da luta ou das apresentações
esportivo-artísticas. Como uma habilidade humana, o Kung Fu se estende para
outras várias áreas de atuação, inclusive, como um modo de pensar e agir no
mundo. Nisso, uma das distinções que caracterizam esta vertente, se dá pelo
estudo e uso conceitual de alguns aspectos da filosofia oriental que constitui
parte importante (ou fundamental) do Kung Fu (quando concebido, pensado e
aplicando nesta vertente, é claro). Ou seja, uma ‘orientação’ existencial,
mental (espiritual) e também prática (inclusive técnica, a partir de alguns
conceitos traduzidos na prática efetiva do Kung Fu, conceitos estes provindos
do taoismo e do budismo, enquanto filosofias e não religiões, assim como,
alguns de Kung Fu-Tzu ou Confúcio, e Sun Tzu e seu ‘Arte da Guerra’). Estas
‘filosofias’ contribuem muito para uma concepção mais abrangente e, justamente,
dinâmica de Kung Fu.
Vertente Tecnicista
A ‘vertente
tecnicista’ é praticamente o oposto da ‘dinâmica’, sendo que, não traz em si o
caráter filosófico/conceitual da primeira (ou pelo menos, quase nada dele – se
pensarmos na impossibilidade do Kung Fu estar distante ou independente dos
preceitos filosóficos citados acima, no caso da vertente dinâmica). Ou seja, de
um modo geral, não tem o mesmo ‘espírito’ nem o dinamismo ou o aprofundamento
sociocultural da primeira. Aí temos um Kung Fu geralmente mais ‘ocidentalizado’
que, em muitos casos, se assemelha a outras artes marciais onde a ‘luta’ ou as
‘competições’ esportivas são o principal objetivo (além do discurso de ‘defesa
pessoal’), independente daquele velho discurso que também é um clichê, exposto
em muitas academias mundo afora, de: ‘Respeito, humildade e disciplina’. Não
que não exista, mas, não é bem assim ou deste jeito, pelo menos, não em todos
os casos. Na vertente tecnicista se enfatiza justamente a técnica, onde ‘mente,
corpo e equilíbrio’ não necessariamente são práticas fundamentais. Eu diria
que, nesta vertente, em muitos casos (pois não dá para generalizar), a
sensibilidade perde espaço para a dureza das relações, tanto físicas quando
mentais, e o Kung Fu é visto pelo modo como é praticado, nos movimentos
corporais e expressões físicas. O relaxamento e a flexibilidade (no sentido de
‘leveza’) da vertente dinâmica são feitos rigidez e determinismo na vertente
tecnicista. Se compararmos com a poesia, por exemplo, a primeira (dinâmica)
seria o estilo ‘verso livre’ de se escrever, onde a prioridade é o conteúdo, a
profundidade e sensibilidade das imagens (corpo e movimento) e do que está
sendo dito (conteúdo), e a segunda (tecnicista) seria o ‘parnasianismo’, estilo
literário-poético onde se prioriza a ‘descrição’ geralmente fria de uma situação
e a ‘métrica’ (técnica) na sua feitura.
Tempos atrás
tive alguns diálogos ou discussões com praticantes, entusiastas e ‘mestres’
brasileiros de Kung Fu, relacionados a este tema que estou abordando agora – só
que de forma bem menos profunda. Alguns deles, direta ou indiretamente, conscientemente
ou não, defenderam a ‘não relação do Kung Fu com a filosofia chinesa ou
oriental’ (sob tudo o budismo e taoismo), reduzindo estes ‘complexos culturais’
em religiões (a modo ocidental de pensá-las, sendo que, a questão que se põe é:
‘são essencialmente religiões ou foram tornadas religiões?’). Conste que, um
destes ‘mestres’ que me disse, secamente, que ‘o taoismo não tem relação com o
Kung Fu’, tem na logo marca de sua escola (e/ou empresa) o símbolo do
Ying-Yang. E a coerência? Por isso e por outras, dá para se dizer que em alguns
casos, como neste em específico, símbolos importantes que carregam em si
significados fundamentais, muitas vezes são só adereços na ornamentação de
estereótipos. Em outro caso, outro ‘mestre’, com certa arrogância se colocava
na discussão defendendo a ‘pena de morte’ – detalhe: se declarava ser budista. Mais
um exemplo da incoerência que existe em boa parte dos ‘artistas marciais’
brasileiros. Sua arrogância e ego inflamado superaram de longe seus argumentos (por
tentar impor sua condição de ‘mestre’, por mais superficial que possa ter sido
sua postura – existe aí um ‘autoconvencimento’ ou ‘orgulho vaidoso’ dado pela
titulação) deu indícios claros da sua vertente.
Em suma, penso
que, infelizmente, no Brasil, parte significativa das escolas de Kung Fu que se
promovem por aí, pouco ou nada diferem de algumas ‘artes marciais’ feitas meros
negócios que brotam e lotam academias Brasil adentro e mundo a fora, onde o
tecnicismo sobrepõe ou submete a própria profundidade e dinamismo da ‘arte
marcial’, enquanto um complexo de valores e práticas, reduzindo-a a uma mera caricatura
daquilo que ela deveria ou poderia ser em sua amplitude e história. Para
alguns, um desrespeito cultural e histórico, ou no mínimo, uma tremenda incoerência
entre discurso e prática, algo comum, muito comum, nesta realidade das
aparências e autoafirmações.
"A essência da técnica não é a técnica. Técnica é
instrumento". (a partir de Heidegger)
Nenhum comentário:
Postar um comentário