segunda-feira, 2 de abril de 2018

Desequilíbrio em ‘Fogo’: um problema que afeta o Kung Fu

* análise a partir da série 'Avatar, a lenda de Aang'

(dedicado aos colegas professores Guilherme Amaral Luz e Jerônimo Marana - obrigado pelas integrações!)


Alguns meses atrás, dois colegas professores de Kung Fu me sugeriram escrever sobre a série Avatar, a lenda de Aang, por ser uma animação que traz elementos essenciais do Kung Fu. A melhor produção neste sentido que já vi (e já vi várias). Avatar é um desenho concebido a partir de pesquisas, onde alguns sifu’s (mestres) de Kung Fu e/ou alguns pensadores taoistas, budistas e confucionistas, além de aplicarem os estilos de Kung Fu envolvidos no desenho e elaborarem os movimentos dos personagens, forneceram os fundamentos filosóficos-conceituais usados durante todos os capítulos da série. Isso faz com que Avatar seja um desenho riquíssimo em filosofia, concepções e conceitos que compõem o Kung Fu enquanto modo de vida e/ou postura sociocultural. Como a série é longa, vou deter-me (neste texto pelo menos) em falar do Episódio 16 da 1ª Temporada de ‘A lenda de Aang’, intitulada de ‘O Desertor’, relacionando-a com certos elementos da realidade atual.

"Energia e matéria sem mente equilibrada produziu a bomba atômica (por exemplo). Por isso estudamos e praticamos Kung Fu integrando energia (espírito ou alma), matéria (corpo) e mente (consciência) em equilíbrio (leia-se Ying-Yang). Ciência física e tecnológica sem Filosofia (reflexão humana) gera 'guerra' e prisão, não 'paz' e liberdade." (Herman Silvani, inspirado no documentário 'Avake', sobre Yogananda)

Dentro do conhecimento abrangente do Kung Fu (e leia-se aqui Kung Fu como um conceito dinâmico e ampliado, para além da luta ou prática técnica ou física – ou seja, um conhecimento que traz profundos preceitos, conceitos e concepções filosóficas, o que reflete numa condição existencial, num modo de vida ou pelo menos de se posicionar perante a vida e suas nuances, em suma, uma postura de ser-estar), na AFWK, trabalhamos os 4 elementos (Água, Terra, Ar/Vento e Fogo) como conceitos fundamentais de nossa prática (tanto filosófica quanto técnica), sendo eles, formas ‘simbólicas’ (que resultam em ações práticas físico-existenciais) de se atuar ou se mover dentro de certo contexto. Falo aqui em ‘intensidades’. Então, um destes elementos é o Fogo, e é dele que este episódio (16) de Avatar trata com muita propriedade.


O Fogo é elemento intenso, forte, pode ser devastador (contra o outro, mas também, contra si próprio, quando mal equilibrado), contínuo, dissimulante, portanto, talvez, menos estável, e por assim ser, o mais difícil de se lidar (administrar, dominar, controlar, equilibrar, usar). No nosso modo ‘organizacional’ de praticar (a partir da conceitualização), na ordem de ‘dominação’ (só para fazer referência ao desenho Avatar) e de trabalhar estes elementos, o Fogo é o último, só adquirido depois de ter bom domínio dos demais - na ordem: Água, Terra, Ar/Vento e por fim, Fogo. Mas, o trabalho de controle dele em si, começa já no início da prática. Não é o mais importante dos elementos (isso é relativo à necessidade de uso), pois cada elemento tem características próprias e suas funções, mas, certamente, o menos usual. Ou seja, o Fogo só é utilizado em casos mais ‘extremos’, quando a necessidade chamar. Caso contrário, é bom que não se use (como também fica claro na fala do ‘mestre Desertor’ neste episódio da série), devido a fatores já mencionados acima – pois para bem usá-lo, como eu já frisei, é fundamental bem dominá-lo ou administrá-lo, mas, para isso, é preciso certo preparo energético-espiritual, mental-psicológico-emocional e intelectual e físico. Ou seja, é um caminho um pouco longo de se trilhar. Sabe aquela máxima popular: ‘Quem mexe com fogo pode se queimar’?, então, ela aponta um pouco desta ‘problemática’. Em síntese, o Fogo por ser pulsante, vivo, difícil de controlar, pode consumir tudo, ser destrutivo, quando mal administrado, mal controlado/dominado, mal usado ou mal equilibrado. Por isso é o elemento que menos se usa na prática física e na vida Kung Fu. Mas, infelizmente, não é o que alguns praticantes (mestres, professores, estudantes e até entusiastas) fazem.

Grande parte dos seres humanos não tem consciência do Fogo em si, também por isso, não percebem (quem dirá controlam) sua manifestação na vida. Por isso também da existência e importância dos sifu’s (mestres ou professores) neste caminho (o do conhecimento e bom uso – ou uso equilibrado – das forças ou elementos da natureza e seu papel na prática sociocultural, que envolve também a política – leia-se aqui, política como um conceito ampliado, que vai além da disputa dualista e ideológica). Mas, alguns destes sifu’s, infelizmente, parecem desconhecer ou não saber destas suas importâncias e responsabilidades, sendo ou agindo da forma Fogo, sem o domínio, consciência e equilíbrio fundamental, em algumas (ou várias) situações no percurso da vida, o que causa certo ‘desequilíbrio’ nas relações e práticas sociais, quando o papel de um sifu, deve(ria) ser oposto disso, ou seja, orientar seus alunos para uma prática saudável, flexível e equilibrada.

No episódio de Avatar em questão (16), Aang, lá pelas tantas, vence um ‘mestre do Fogo’, depois de aprender o fundamental com o ‘mestre Desertor’: ser consciente e equilibrado em seus pensamentos e ações, sem usar um único ataque, um único golpe (não usa o Fogo para ‘vencer’) contra o mestre que lhe ataca. Melhor dizendo, o ‘mestre’ se auto-derrota ao incendiar seus próprios navios, justamente por não ter controle e bom uso deste elemento, enquanto o Avatar usa sua inteligência, sua habilidade do Ar/Vento e aprendizado da ‘não-ação’ (ver conceito no taoismo) e do ‘deixar ir ou passar’ (ver conceito no budismo), a partir do treino de controle do Fogo interno, em si próprio (pois Fogo simboliza também ‘guerra’ ou ‘espírito bélico’) para ‘induzir’ os ataques desorientados do ‘mestre do Fogo’ (desequilíbrio do Fogo em si próprio) contra ele mesmo. Aqui temos uma relação entre Ying (estado de espírito do Avatar na sua ‘auto-defesa’ – que equilibrado com Yang, rendeu-lhe sucesso na situação) e Yang (estado de espírito do mestre do Fogo que atacou Aang – excessivamente, o que causou seu infortúnio), sendo que, bastou Aang equilibrar seu ‘estado de espírito’ (e energia) e ter Yi e Shen (intenção e consciência ou espírito) alinhados, equilibrando em si Ying e Yang, para que saísse íntegro da situação.

A prática, estudo ou treino ‘externo’ do Fogo é técnico, a partir de muita dedicação e trabalho, e da sensibilidade, que serve para ser usado em aplicações e/ou golpes (movimentos e aplicações que dão grande impacto), enquanto a prática, estudo ou treino ‘interno’, é feito através do Chi Kung, Tai Chi e da meditação (a partir das chamadas ‘artes internas’), o que é aplicado na vida cotidiana e pode ser decisório em casos de ‘auto-defesa’ e portanto, então, na relação com os outros e com o meio (seja ele sociocultural ou com a natureza). Trata-se de uma prática de ‘auto-controle’ e equilíbrio, onde a serenidade, tranquilidade, calma, relaxamento, flexibilidade e consciência plena-presencial (e o ‘deixar ir ou passar’ – ver conceito budista) são elementares (como se pode conferir no episódio 16 de Avatar, quando o ‘mestre Desertor’ treina Aang). O ‘impulso’ controlado a partir de muita prática/treino interno. Ou seja, trata-se mais do controle do que do uso do elemento Fogo, e é justamente isso que este episódio da série nos ensina.

Sendo taoista (filosoficamente falando), professor de Wing Tjun e Chi Kung (além de humanas e sociais), e praticante de Tai Chi, compreendo que, como ocidental, fui instrumentalizado por certa tradição, certos valores socio-históricos e culturais, a ser muito mais Yang (masculino) do que Ying (feminino). Todos fomos! Porém, a consciência é justamente esta, a de buscar o ‘equilíbrio no caminho’. E para isso, penso não ser necessário ser taoista ou budista, mas sim, praticar ‘artes internas’ e/ou meditação, para se ter a necessária ‘retidão’, como forma de ‘auto-controle’ e ‘consciência plena’. Trabalhar o sensível (Ying), que também é o ‘feminino’ é, dadas as condições sócio-históricas e sociais, fundamental e talvez, mais importante neste sentido e contexto, do que trabalhar o ‘masculino’ (Yang). Mas, muitas vezes ocorre o contrário, onde praticantes de Kung Fu (a partir de seus sifu’s), acabam reforçando ou exclusivamente trabalhando só seu lado Yang. De minha parte, considero isso uma redução do Kung Fu, ou um Kung Fu desequilibrado - ou no mínimo, incompleto em sua prática ou feitura.

“Uma vez recebida esta forma corporal fixa, o homem se apega a ela, à espera do fim. Às vezes chocando-se com as coisas, às vezes curvando-se diante delas. (...) Não é ele patético? Transpirando e labutando até o fim de seus dias sem jamais ver sua própria realização, exaurindo-se completamente sem saber jamais onde buscar o repouso (...) Seu corpo definha, seguido pela sua mente.” (...) Desta bagagem de valores convencionais é que o homem deve se descartar, primeiro que tudo, antes de poder ser livre.” (Chuang Tzu)

A cultura e seu masculino, não pode servir de pretexto, em pleno século XXI, século da informação e da tecnologia, para praticantes e seus professores se portarem como ásperos homens de ‘estado medieval de espírito’. Os tempos no ocidente são outros e, como estudantes/praticantes e sifu’s que se prezem e que dignificam este grande conhecimento (Kung Fu), temos a responsabilidade, o dever de nos refinarmos enquanto seres humanos mais ou menos inteligentes, conscientes de suas funções e atributos socioculturais. Nisso, Kung Fu, acima do senso comum, é um ‘estado de espírito’ e uma ‘vivência cultural’ proveniente de certa ‘educação’, onde sifu’s são os educadores. Nisso, Kung Fu é uma habilidade, não só física externa, mas espiritual e mental interna.

Esta minha análise pode ser relacionada com outra que escrevi e publiquei neste mesmo blog (antes desta), que se chama “Ações não defensivas e suas vítimas cotidianas”, pois é disso também que o uso descontrolado ou desequilibrado do Fogo trata. Por isso é que, grandes mestres que tem consciência da existência (simbólica e real) deste elemento (ou força), independente de sua crença ou não, não são muito (ou nada) favoráveis às armas de fogo. E talvez, por isso que, no Kung Fu, são as armas brancas que figuram até hoje (além da questão da tradição, da cultura e tal). Algo para se pensar, no mínimo (deixa para um possível futuro texto). Por isso também, é que estes grandes mestres insistem em dizer: ‘Seja Água!’. Pois, a Água se acomoda (não no sentido de indiferença ou desleixo, mas de ‘retidão’), se estabiliza quando necessário, assim como se transforma e age seguindo o fluxo. É um ‘estado de espírito’ (ver taoismo). Já com o Fogo, a relação é outra.

Enfim. A exemplo do Avatar, um grande mestre do equilíbrio, ‘sejamos Água!’, fluentes como tal, rumo ao equilíbrio de nós próprios, para que, como sifu’s ou coerentes e dignos praticantes de um grandioso conhecimento que é o Kung Fu, possamos contribuir com o equilíbrio do mundo, da vida, respeitando e integrando a natureza, da qual também fazemos parte.





    















     * Eis o episódio de Avatar em questão (bons estudos!):







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