terça-feira, 27 de março de 2018

Ações não defensivas e suas vítimas cotidianas


Nos meus estudos filosóficos (entre eles, taoistas) e sociológicos das ‘relações de poder e humanas’ entre pessoas e poderes (sejam eles simbólicos ou não), a partir de observações, leituras, pesquisas e práticas com, além destas bases filosóficas e conceituais, a ‘vida Kung Fu’ (que possui um apanhado de práticas cotidianas específicas), faz tempo que percebo e observo as ações humanas e as provindas das instituições ditas ‘capacitadas’ e ‘legítimas’ destas ações. Ações que, inúmeras vezes não são nada equilibradas (a partir de uma concepção taoista). Para melhor compreendermos isso, vou utilizar-me de casos reais que vi acontecerem, e para melhor localizar o leitor, falarei aqui de ações físicas, em situações reais, onde a proatividade (visão ou ação antecipatória-preventiva) seria o caminho para evitar a exposição física (e/ou de vida) ao perigo da violência ou da morte (além de mais investimento em uma ‘educação e cultura que desenvolvam nos seres sociais uma ética que considere o entorno e o porvir’ – mas este é um outro tema – relacionado e fundamental – mas que agora não cabe aqui).

Entre muitos outros casos, vou citar como exemplo dois dos mais recentes que pude assistir em vídeo ou saber. Um deles foi de assalto em um estabelecimento comercial, onde um dos clientes era policial de folga, ou seja, estava a paisana (sem farda e fora de serviço), mas armado, como é muito comum de acontecer. Vamos à descrição do caso:

Um jovem ladrão, esguio, entra no estabelecimento já anunciando o assalto. Dentro do recinto, além do outro jovem (policial), este mais aparentemente forte, que mexia na prateleira (tratava-se de uma mercearia) estava o caixa, pro lado de trás do balcão. Este, rapidamente abriu o caixa, colocou a mão na cabeça e se abaixou, sob a ameaça da arma apontada do assaltante. Enquanto o policial seguia de frente a prateleira, mas já percebendo o assalto. O policial tentou disfarçar (assistindo através da lente da câmera que ficava bem próxima do policial, dava para perceber tudo isso). Percebendo a pressa do assaltante e sua ‘indireção’ de pontaria (ora apontava para o caixa, ora para ele, mudando de direção bruscamente, afoito que estava), o policial tratou logo de sacar a sua arma. Mas o assaltante foi tão rápido que pulou em direção ao policial, já que não estava tão longe, segurando-lhe a mão do saque, impedindo que a arma do policial fosse sacada completamente e apontada em sua direção. O policial tentou lutar com o assaltante, mas não teve êxito (habilidade, técnica ou tempo suficiente) para tal (ou, o assaltante é que era muito astuto ou habilidoso em defender-se). O fato foi muito rápido, tanto que, o assaltante acabou tirando a arma do policial sem efetuar um único disparo dentro do estabelecimento, e, claramente, não atirou no policial no momento em que lhe segurava a mão do saque porque não quis (ou a arma não tinha bala, ou era de brinquedo). O fato é que, se fosse um assaltante mais ‘sangue no olho’ poderia ter matado policial e caixa ali mesmo. Mas, acabou por só levar a arma (mais uma provavelmente que será usada, se já não foi, na criminalidade que assola o país).

O segundo caso, aconteceu aqui na minha cidade. Só que neste o policial não teve a mesma sorte. Também em dia de folga, teve seu carro furtado na rua bem perto onde estava, e vendo o acontecido, apressou-se em perseguir os ladrões (era mais de um). Não sei se chamou reforço dos colegas policiais a serviço. Os ladrões na fuga se empreitaram numa casa onde uma família estava reunida, por se tratar de um final de semana. No final de tudo, o policial acabou morto com tiro do criminoso, deixando mulher e filho(s). Depois, ainda na perseguição, a polícia acabou matando um dos ladrões. Saldo: um policial morto, uma família em perigo e um criminoso morto (o outro não lembro se foi preso ou fugiu). Em ambos os casos, os PM's estavam de folga e armados, e reagiram aos assaltos. 

Um dado para somar-se na nossa reflexão (e aos fatos) diz que, no Brasil morrem mais policiais armados em suas folgas do que desarmados. Porque será? 

Nos dois casos, penso nos erros das ações policiais (ou humanas), mesmo porque, não vejo acertos quando os fatos são negativos ou desastrosos (sendo que o assalto já é um erro, não de caráter técnico-estratégico, mas moral, o que não vem ao caso nesta problematização). Novamente, sei o quanto são complexas estas situações, difíceis, improváveis, e que falar é sempre 'mais fácil' que 'experienciar', mas, isso é apenas uma 'análise', e não uma 'aula' ou 'moralismo', enfim, é uma 'problematização' de algo muito comum de acontecer. Talvez eu esteja equivocado? Pode ser, também erro – sou humano e permito-me. Também não estou criticando de forma ‘destrutiva’ os policiais ou a polícia, mas sim, problematizando situações, fatos (ou criticando de forma ‘construtiva’, como é mais comum dizer), um assunto que me diz respeito, já que estudo e pratico uma arte dita marcial que tem por princípio a proatividade. Sei que na hora do acontecido o sangue ferve, bate o nervosismo e a vontade de agir, mesmo porque se tratam de agentes autorizados e, em tese, ‘preparados’ para tais situações. Mas, minha questão é: até que ponto este ‘preparo’ é real? E até que ponto não é?

Estes são apenas dois casos que cito, existem cotidianamente vários outros, e muitos, mais muitos, onde a ação acaba desastrosamente. Por isso fiz, no início deste texto/análise, um apontamento para a filosofia taoista da proatividade – como reflexão.

"... quem reage com arma tem três mil vezes mais chances de morrer".

"...a arma é ótimo instrumento de ataque, mas ruim para se defender."

(Paulo Cézar Lopes, coronel reformado da PM e ex-corregedor - em entrevista para o site extra-globo.com, em 15/02/16)

Imaginem então, se com a polícia mais 'preparada' para desfechos de risco, isso já acontece em alto índice, como seria com o cidadão 'comum' se liberassem as armas de fogo, como alguns políticos e empresários do ramo armamentista querem?

A questão é que, quando um sentimento de disputa, vingança (típicos de uma cultura masculinizada e de posse como a nossa) ou de ‘justiça’ - com as próprias mãos ou forças - ou mesmo, quando o ego ou a falsa convicção de super confiança em si próprio (que subestima o outro e o ‘caos’ que também está nas situações), na sua autorização de agir como ‘autoridade’ ou mesmo na sua ‘arma’, supera o pensamento filosófico ou estratégico (como preferirem – pois todo pensamento filosófico deve ser criterioso), calmo e reflexivo, não há proatividade nisso, ou seja, a ação será de grande risco e não depende tão mais da capacidade ou condição técnica que a pessoa possua. Por isso sempre enfatizo aos meus alunos que, ‘auto-defesa’ ou ‘defesa-pessoal’, em muitos casos é um discurso ideológico e publicitário que muitos utilizam para vender seu peixe e seu status em academias ditas marciais por aí. Pior ainda é quando isso extrapola e vai dar no risco de integridade física ou de vida de terceiros. Segundo certa concepção de fundo taoista, isso se dá por uma falta de ‘equilíbrio’ entre esta ‘mente armada’ e que deveria ser ‘reflexiva’ e ‘relaxada’ (ou calma – portando ‘desarmada’), e a ação em si. Numa concepção mais aprimorada de ‘defesa’ de si e do outro (e de ‘defesa-pessoal’), deve-se pesar antes de mais nada, a importância ou valor do que está em jogo. No último caso relatado acima, seria a vida. Ou seja, por mais difícil que seja a ‘escolha’, a vida própria – e principalmente dos outros - deve ser mais importante e valorizada do que a ‘coisa’, propriedade ou bem (neste caso em específico, um carro). E, algo realmente defensivo jamais busca a ‘retomada’ imediata, ‘disputa’ ou ‘vingança’, mas age com serenidade, pois, como já foi dito, é mais importante a vida, acima de tudo.

Contra o ‘caos’ não há força, técnica ou autoridade. E a estratégia, o pensamento filosófico, reflexivo, o que muitos também chamam de inteligência, deve sempre considerar este ‘deus’ primeiro (Caos), pois ele está para a vida e para a morte como um fio, uma lâmina que separa ou une estas duas coisas. Por isso, como bons estudantes/praticantes de Kung Fu, penso que devamos sempre considerar isso, assim como a intuição, o instinto e a razão, ao invés da mera emoção, ideia enfurecida ou raiva que dá quando sofremos ou nos sentimos injustiçados.

Ações desastrosas do Estado (e a polícia como um dos seus braços) são muito comuns, e muitas vezes não são nada defensivas, colocando portanto em risco a integridade, não só do trabalhador policial, mas de terceiros, infelizmente. Além da ‘violência cultural’ (que em certo sentido acaba ser tornando pessoal), a ‘cultura’ do poder, da força, da autoridade autorizada (e constituída), da vingança e do ‘justiçamento’ a qualquer preço, acabam gerando um estado de guerra, uma realidade violenta, triste e de ainda mais disputa e sentimento de sobrevivência primitiva, onde todos estão sujeitos e ninguém está seguro. Assim como a polícia, nós, praticantes de ‘arte marcial’, não somos tão preparados quanto muitas vezes pensamos, quem dirá o cidadão que vive no meio de todo este despreparo (físico e psicológico). E eis que o Estado (e suas instituições), assim como nós professores e reais estudantes, devemos assumir nossa responsabilidade em, pelo menos não agir de forma precária como geralmente acontece.

Não é só de ações físicas ou preparos técnicos que estou falando, mas de preparos psicológicos e filosóficos, que devem anteceder qualquer ação, e então, aí assim, teremos uma maior chance de constituir o que chamo de ações proativas – fundamentais numa vida que se quer equilibrada e vivida com certa liberdade de ir, vir, estar e ser.


O que, sobre isso, diz o taoismo?

“Muitos instrumentos afiados entre o povo fazem crescer a confusão no reino e na família” (Tao Te Ching – Lao Tsé)

“Instrumentos afiados representam armas (...) que servem para (...) destruir ou agredir. A existência de muitos instrumentos afiados entre o povo faz crescer a confusão porque questões conflituosas, pequenas ou grandes, que surgem naturalmente no seio de uma família ou dentro de um reino (sociedade), tendem a ser tratadas pelas armas se a pessoa tiver uma disposição prévia para o seu uso, e se for incentivada pela profusão desses instrumentos entre a população.” (comentário do mestre taoista Wu Jyh Cherng, a partir do Tao Te Ching)


"Onde governa a tolerância,
O povo tem tranquilidade;
Onde governa a discriminação,
O povo tem insatisfação."

(Tao Te Ching – Lao Tsé)


“O suave e o fraco vencem o rígido e o forte” (Tao Te Ching – Lao Tsé)

“(...) durante as tempestades emocionais, os mestres ensinam que a pessoa precisa ter a sabedoria de se colocar como o pequeno, suave e flexível, evitando demonstrar força e rigidez para não ser o primeiro a se quebrar." (comentário do mestre taoista Wu Jyh Cherng, a partir do Tao Te Ching)


·       *   Herman Silvani (professor de filosofia, sociologia, história, linguagens, Chi Kung e Wing Tjun Kung Fu)



Nenhum comentário:

Postar um comentário