Para além do discurso
determinista-reducionista...
A historia
trabalha com fatos (e as análises em torno deles). E é fato, e é histórico que,
muitos dos Grandes Mestres (GM) do Kung Fu mundial e suas escolas, associações
e ou as linhagens surgidas a partir deles, desenvolveram seus próprios ‘modos’,
seus próprios currículos e até ‘estilos’ de se praticar o Kung Fu, o que é
negado por muitos praticantes (ou entusiastas) através de seus discursos que
buscam determinar a existência de uma suposta ‘pureza’ neste ‘universo’ de
conhecimento que é o Kung Fu, tratando-o assim como um ‘gueto’ e não um ‘universo’.
O que é ‘legítimo’ ou não neste meio, não depende da crença destes
sentenciadores, mas da própria história de tal ‘estilo’ ou ‘sistema’ de Kung Fu.
E assim mesmo, encontramos relatividades e subjetividades quanto a essas ‘legitimidades’.
Ou seja, mesmo que venha de uma tradição, de uma herança passada de pai pra
filho, mestre pra discípulo, geração para geração, o movimento de mutação ou
transformação dos ‘modos’ de se conceber, ensinar e repassar tais conhecimentos,
sofrem, por mínimas que sejam, alterações. Além disso, existe certa ‘adaptação’
neste ‘modo’ ou forma de se estudar/praticar ou fazer Kung Fu. E muitos dos
grandes mestres desta arte complexa, profunda e dinâmica, fizeram isso, não
necessariamente por uma mera intenção, mas por necessidade. Sabemos que cada
corpo, cada técnica e/ou conhecimento só tem sentido quando contextualizado.
Posta em prática, a partir da experiência com o outro, com o espaço e/ou meio,
a técnica, o estilo, o ‘modo’ de Kung Fu passa a ter seu fundamento mais
sincero, e é neste percurso, neste caminho ou momento que ele sofre tais
alterações. Nisso, cada mestre ou praticante que já incorporou ou esteja
incorporando seu Kung Fu, o absorve de uma maneira diferente, ajustada a sua necessidade
e realidades física, mental, espiritual-energética, pois, cada corpo um corpo,
cada mente uma mente, cada ser um ser, cada movimento um movimento, cada
realidade uma realidade.
Não há
um ‘modo’ único de se conceber e praticar Kung Fu. Por isso também da variedade
de ‘estilos’, ‘sistemas’ ou ‘modos’ de se constituir e se fazer desta arte. E
isso é o que a deixa instigante e rica. Ao contrário do determinismo
reducionista de alguns ‘puristas’ e seus discursos, o Kung Fu não vem de uma
única fonte, ele tem em si algumas origens relacionais. Não negando nem
depreciando ou diminuindo o valor, importância e riqueza dos conhecimentos
transmitidos a partir de certas tradições, o que chamamos de ‘linhagens’, mas elas,
as linhagens também são constituídas a partir da fusão de certos conhecimentos,
diferentes, mas relacionados. De uma forma mais geral, cada mestre ou escola,
acaba tendo seu ‘modo’ de Kung Fu, por mais tradicional que seja, por mais que
mantenha uma ‘linha’. Nas ‘entrelinhas’, o conhecimento, a técnica, o ‘modo’
sempre acaba, nem que seja minimamente, se transformando. Mas, existem
transformações ou mudanças mais visíveis. Peguemos de exemplo a história do GM
mais popular ou famoso (não ‘o único’ nem necessariamente ‘o melhor’, como
muitos acreditam) do sistema (ou estilo) Wing Chun, Yip Man. O GM Yip Man veio
de uma escola, de uma linhagem específica que, detinha certos conhecimentos
herdados de seus ancestrais, mestres do passado, que foi passando de geração
para geração até chegar no GM Yip. Pois bem. Aconteceu que, excursionando, o GM
Yip Man, entrou em contato com outros praticantes, sifu’s ou mestres de outros ‘modos’
de Wing Chun e/ou Weng Chun Kuen, e acabou tendo influência destes, aprendendo
e ensinando, trocando conhecimentos com eles. Quando o GM Yip retornou para sua
‘família Kung Fu’ (linhagem), acabou que, usando termos antropológicos, como
que um ‘choque cultural’ acontecendo, onde seus novos conhecimentos, portanto,
seu novo ‘modo’, não foi, num primeiro momento, bem aceito pelos seus ‘irmãos’
ou familiares praticantes. Mas, em alguns aspectos, o novo ‘modo’ Yip Man de
Wing Chun, acabou respingando no antigo conhecimento, no antigo modo de sua
família, de certa forma influenciando, seja naquele momento ou depois, a forma
como que seu Kung Fu fosse feito. Este é só um exemplo desta fusão, desta
mutação (sutil ou radical) que os estilos de Kung Fu acabam sofrendo durante o
tempo e com a passagem do tempo, a partir de conhecimentos que se fundem e se
nutrem um ao outro. Mas, como eu já disse anteriormente, alguns mestres acabam
exteriorizando mais que outros esta fusão. No caso Yip Man, por exemplo, ele
continuou preservando parte significativa de sua origem no Wing Chun, não
destoando muito do que aprendera de sua família. Já em outros casos, como é o
do GM Yuen Chai Wan, por exemplo, um dos grandes nomes do Wing Chun e Weng Chun
Kuen, responsável pela maior escola ou tradição de Kung Fu no Vietnam, esta
variação de conhecimentos é mais perceptível.
GM
Yuen Chai Wan foi um sifu chinês que migrou para o Vietnam. Irmão mais velho do
GM Yuen Kai Sam que, segundo algumas fontes, foi um dos mestres com que o GM
Yip Man entrou em contato, absorvendo alguns dos seus conhecimentos, Chai Wan
desenvolveu seu próprio ‘modo’, a partir de conhecimentos de mais de um estilo
de Kung Fu, o que fez de seu Wing/Weng Chun, um ‘modo’ próprio. Ou seja,
estudou, aprendeu e ensinou mais de um ‘estilo’ de Kung Fu, desenvolvendo seu
próprio currículo e sua própria escola, masterizando estilos e/ou conhecimentos
relacionados (artes ou estilos ‘irmãos’). Nisso, também foi grande mestre de ‘artes
internas’ (Chi Kung, Tai Chi...), o que fez de seu Wing/Weng Chun, um ‘modo’
sofisticado e muito dinâmico. Deixou grandes herdeiros (discípulos) que, ao seu
exemplo, também desenvolveram seus próprios ‘modos’ de se praticar a ‘mesma
arte’, um deles é o GM Ngo Si Quy que, seguiu os passos de seu sifu e também
adaptou ao seu ‘modo’ os conhecimentos provindos deste grande mestre. Mas, para
alguns, os que julgam de fora, olhando de longe, sem conhecer profundamente e
necessariamente este ‘modo’ (a partir do GM Yuen Chai Wan – escola do Vietnam),
por exemplo, o que estes veem através de vídeos, com seus olhares viciados ‘religiosamente’
em certa ‘pureza’ idealizada da existência, acabam exarcebando comentários
preconceituosos sobre o que o limite de seus olhares não consegue enchergar,
sendo que, é preciso mais, muito mais que isso, este olhar duro e
estereotipado, para realmente se ter uma mínima noção que seja, da profundidade
que é um ‘modo’ como o da escola deixada pelo GM Yuen Chai Wan. Para ser mais
preciso (ou não), retornamos ao exemplo Yip Man. O GM Yip Man fez grande escola
de Wing Chun, deixando alguns outros grandes mestres do sistema, como é o caso
de Wong Shun Leung, Moy Yat e Leung Ting, por exemplo. Ambos, muito bons e
bastante significativos dentro desta ‘linhagem’ (Yip Man). Porém, ambos também,
desenvolveram seus ‘modos’ de Wing Chun, em alguns aspectos mantendo o que seu
mestre lhes ensinou, mas em outros, transformando-os. E é isso o que acontece
geralmente com os maiores mestres e suas escolas. Mas, é claro, não é um ‘fenômeno’
simples, e como se diz vulgarmente, ‘pra qualquer um’. É um talento, ou um tipo
de ‘vocação’, ‘guiada, geralmente, pela necessidade’, e não por uma vaidade
pessoal. E é esta a diferença entre o que alguns adoram chamar (também
vulgarmente) de ‘picaretagem’ ou ‘charlatanismo’ do que é ‘autêntico’, sincero,
necessário, diferente, e verdadeiro, independente do gosto que se tenha. Mas,
estes ‘alguns’ que julgam, muitas vezes sem saber, geralmente não conseguem
diferenciar, discernir uma coisa de outra. Enfim. Não é porque você não conhece
ou não sabe dos diferentes ‘modos’ de um mesmo sistema ou estilo que, por causa
disso, ele seja ruim, ou seja ‘invencionisse’, ‘picaretagem’. Em muitos casos,
é a sua visão que não alcança a história e seu movimento ‘espiral’ (não linear),
que não alcança o fundamento, a diversidade e intensidade que tal arte, escola
ou ‘modo’, possuem.
Alguns
grandes mestres que tem seu nome na história do Kung Fu e das 'artes internas' (Chi Kung, Tai Chi...) a partir de seus
próprios ‘modos’, estilos ou do desenvolvimento de suas escolas - ambos relacionados,
pois, mesmo sendo de vertentes ou estilos diferentes, dialogam a partir de uma ‘essência’
ou ‘matriz’ aproximada ou relacionada. São grandes referências para o nosso ‘modo’
de Kung Fu - da AFWK (Associação Fluir
Wing Tjun Kung Fu), a exemplo. São eles (entre outros):
Leung Jan (1816 ou 1826-1901)
Tang Suen (?)
Tang Yik (1911 - 1991)
Ngo Si Quy (1922-1997)
Sergio Iadarola (contemporâneo)
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