Um tema muito corriqueiro e que gera discussões nas comunidades de Kung
Fu mundo afora, é a questão do que é ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ em Kung Fu. Ou
seja, daquilo que se diz autêntico e daquilo que se julga superficial (ou
também, aquilo que, como muitos gostam de dizer vulgarmente, ‘charlatanismo’). E
nesta discussão, a representação é quase sempre solicitada: ‘Qual é a linhagem?
Quem é o mestre? A formação?’, etc. Sendo que, o problema não são as perguntas,
nunca, mas o tom com que são feitas. Como se aqueles que indagam isso fossem os
fiscais ou donos de uma pretensa ‘verdade’ em Kung Fu. Mas, isso tudo não é tão
simples assim, como estes querem que seja, no alto de suas convicções ou
crenças. É um tema polêmico que requer mais do que o uso da palavra, de um
certificado ou representação, enquanto território. Requer conhecimentos
relacionais e profundos, o que grande
parte daqueles que discutem não tem. Um exemplo de toda esta divergência
são os intermináveis debates em torno do Wing Chun, comuns nos grupos de rede
social: ‘É eficiente ou não é?’. Esta é uma questão sempre posta nos debates,
onde a relatividade da questão, geralmente não é considerada – muitas vezes a
circunstância ou a situação é mais determinante do que o ‘ser ou não ser’. E também,
é bem comum algumas posturas imaturas, reducionistas ou deterministas,
discursos de senso comum que geralmente afirmam: ‘Se não funciona em combate
real, não é bom, não é puro ou não serve pra nada’. Como se um combate fosse
algo determinado naturalmente, pelo simples fato de saber ou não saber. Ou seja:
‘é só saber o Wing Chun verdadeiro que a vitória está garantida’ (acreditem, já
li isso). Mas não, a questão não é tão simples assim, e nem se reduz neste jogo
de verdade ou mentira. Não há receita para um bolo experimental, pois ele
depende da experiência e não daquilo que se pensa simplesmente. É claro que o
conhecimento, a habilidade somam, porém, muitas vezes isso não é tudo aquilo
que se diz. O fato é que, existe muito mais crença (que se transparece como
convicção) do que realidade de conhecimento. Geralmente, o que se está sendo
julgado é a aparência e não a essência, e na maioria dos casos, não pelo conhecimento,
mas pela falta dele, ou seja, pela ignorância. Nisso, prepotência e tentativa
de domínio territorial narrativo é o que marca estas discussões. No fundo,
trata-se de uma ‘disputa narrativa’ pelo controle da palavra, da impressão e do
estereótipo, onde ego e falta de sensibilidade geralmente dão o tom da discussão,
quando que, na maioria dos casos, o que se discute é o estereótipo a aparência,
a representação, e não a suposta ou pretendida ‘verdade’ ou a apresentação,
muito menos a essência.
O caso Wing Chun
O Wing Chun é um sistema dentro do que chamamos popularmente de Kung Fu,
que surgiu por volta de 1700 (entre final do século XVII e início do XVIII) no
sul da China, no contexto de domínio da dinastia dos Manchus. As versões de sua
origem variam tanto quanto a existência de seus estilos ou ‘modos’. Ou seja,
existe uma boa variedade de estilos/modos de Wing Chun, dados pela
transformação deste sistema através dos anos. O mais popular entre eles, todos
sabem, é o estilo Ip Man, mas não é ele que determina o que é Wing Chun ou não,
assim como, também não é o único parâmetro para uma possível definição do
estilo. O GM Ip Man, como tantos outros grandes mestres do estilo, desenvolveu
seu próprio caminho dentro do sistema, o que chamo de ‘modo’, e que também pode
ser chamado de estilo. Como tantos, Ip Man somou conhecimentos oriundos de
estilos ou modos diferentes de Wing Chun, desenvolvendo e caracterizando o seu,
seja de forma consciente ou inconsciente. Uma destas características é o jeito
mais ‘direto’ ou ‘simples’ de atuar, coisa que, em algumas fontes (estilos) das
quais bebeu, eram mais complexas. Ou seja, o mestre Ip ‘mudou’ parte daquilo
que aprendeu, adaptando ao seu ‘modo’. Nisso, problematizando o senso comum, aqui
cabe uma pergunta: ‘O Wing Chun é simples ou foi simplificado?’.
Wing Chun, um
sistema sincrético
A questão é que muitos praticantes, sifu’s e até mestres (e também
entusiastas) não admitem o ‘sincretismo’ que é o sistema Wing Chun. Ou seja, a
fusão, a mistura, a configuração diversa que pode caracterizar (e caracterizou)
o sistema. Um sistema que é fruto de um sincretismo, e que com o passar do
tempo, tornou-se mais diverso ainda. E aí temos como comprovação disso, os
estilos ou modos de grandes mestres como Leung Jan, Yuen Chai Wan, Pan Nam, Yuen
Kay Sam, entre outros, que deixaram seus legados na história do sistema.
Alguns destes praticantes acabam tendo posturas incoerentes com aquilo
que estudam (ou pelo menos deveriam estudar), o Kung Fu que, além da
movimentação físico-corporal, tem princípios, conceitos ou filosofias que o
regem, agindo como fundamentalistas de um ‘puritanismo’ quase religioso que
resiste a tudo o que consideram ‘impuro’, por ser simplesmente diferente
daquilo que aprenderam ou foram orientados (alguns adestrados).
Com isso, não estou aqui desvalorizando a importância fundamental das
linhagens, famílias ou estilos em Wing Chun ou Kung Fu, não é isso. Estou
simplesmente propondo uma reflexão em torno disso, pois todo o conhecimento
autêntico ou que venha de uma fonte ou raiz, tem relação direta ou indireta com
as linhagens ou famílias Kung Fu - mas
isso não impede que outros, outras escolas, estilos ou modos se formem, a
partir desta gama de conteúdos e conhecimentos que o WT e/ou o KF nos oferece.
Fechar os olhos (e a mente) para isso é que pode deixar o conhecimento (e o
Kung Fu) deficientes, não o contrário (não desconsiderando a questão ‘superficial’
ou ‘fake’ que existe no mundo do Kung Fu e de todas as outras artes marciais –
mas é preciso certa distinção neste caso). Ou seja, não representar, não ser
filiado diretamente a uma linhagem ou família, não significa que o praticante
ou a escola/associação não tenha bom conteúdo, fundamento, raiz, base (ou no
mínimo referência) de uma ou mais linhagem ou estilo de WT ou KF. Quem pensa
isso precisa rever seu entendimento (e quando age, sua postura), pois ninguém é
dono do conhecimento, e nem tampouco, da verdade. A história não é algo morto,
estacionado, parado no tempo, ela, como a cultura, é viva e se move, onde seus
conteúdos e conhecimentos influenciam e caracterizam outros conhecimentos, de
forma direta ou indireta.
* Na(s) imagen(s), o GM Ip Man
tocando o braço do GM Chu Chung Man,
e ao fundo, rindo para o mestre Ip (à direita da imagem), o GM Tang Yik, no armazém Dai Dak Lan em Hong Kong, um ponto de
encontro onde praticantes e sifu’s trocavam experiências e conhecimentos,
influenciando-se mutuamente. (fonte: Internet e site da IWKA)
Representação não é o único caminho
A representação não é uma fonte de conhecimento. Pelo menos, não a
única. Representar oficialmente algo, não significa que o representante seja
habilidoso ou conhecedor o suficiente daquilo que se representa para desmerecer
ou detratar os outros. Muitos detratores o fazem a partir de seus olhares
reduzidos, através de impressões ou pré-conceitos vistos em vídeos ou imagens,
sendo que, muito do conhecimento marcial só pode ser acessado mesmo na prática
(presencialmente). Estes não conseguem perceber visualmente os elementos, modos
ou posturas presentes em vídeos ‘demonstrativos’ (é óbvio que não são situações
reais de rua, assim como o esporte marcial também não é) e acabam cometendo uma
enorme gafe, julgando e detratando conhecimentos de que não são familiarizados.
Nisso, o problema não é ‘não conhecer’, mas sim julgar, detratar, distorcer ou
ofender algo bom e profundo sem saber, algo muito comum nestes grupos de KF,
infelizmente. Isso demonstra que não muitos aprenderam as lições básicas e
fundamentais do grande conhecimento milenar que é o Kung Fu, e que algumas
escolas ou sifu’s deixam, muitas vezes, de ensinar que, antes de mais nada, é
preciso saber, conhecer, ter discernimento e respeito, buscando o equilíbrio e
não a agressividade nos gestos e palavras.
Nesta postura agressiva, o ego inflamado e a convicção fundamentalista
acabam direcionando o olhar e a atitude, gerando preconceito e banalidade, o
que atinge diretamente o diálogo e a riqueza que deve ser o conhecimento. E o
Kung Fu, muitas vezes, acaba se tornando um lugar inóspito, cheio de
preconceitos e atitudes desequilibradas. Sábios agem de forma totalmente
diferente disso, onde, ao invés de julgar, procuram compreender e conhecer o
objeto a ser analisado, antes de tecer qualquer comentário indevido ou sem
fundamento. Dialogar não é atacar, ofender, é propor e problematizar, com
respeito, referências e compreensão. Ao contrário disso, é guerra, e o Kung Fu, no auge de sua proatividade, é a
‘arte de lutar sem lutar’, uma alta habilidade que possui princípios éticos e
valores de vida, que deveriam prezar pela paz ao invés da guerra.
Um fato comparativo
Em 2019 um irmão Kung Fu, estudante da AFWK produziu alguns pequenos
vídeos demonstrativos para youtube, em que eu executo algumas formas e
técnicas, a partir do nosso currículo e ‘modo’ de WT. Um destes vídeos que fora
compartilhado em algumas comunidades ou grupos de Kung Fu na rede social, além
de ter suas curtidas e elogios, teve algumas críticas, o que é bem normal. Porém,
algumas destas críticas foram repletas de pré-conceitos, a partir de
praticantes e entusiastas que, movidos pela cultura da disputa, algo muito
comum no nosso tipo de sociedade, e pela falta de conhecimento frente ao nosso ‘modo’
e dos estilos que o compõe (pois não identificaram as referências, movimentos,
técnicas, suas origens, presentes dentro da forma – algo que não é fácil, a não
ser que se estude mais de um estilo e com a cabeça aberta para as diferenças e
diversidade do sistema), acabaram por criar uma situação agressiva e
reducionista, ao invés de um diálogo saudável, infelizmente. Em contrapartida,
em um grupo internacional de WT, esta mesma forma (vídeo) foi debatida e
elogiada por um grande estudioso e pesquisador do Kung Fu mundial, gerando boas
impressões daquilo que nos propomos enquanto escola ou associação que, se tem
consciência, é nova (5 anos de existência) e não fechada ao conhecimento (nosso
currículo é aberto), temos muito o que aprender – e estamos a Caminho. Nisso,
alguns elementos provindos de algumas linhagens, presentes na nossa forma (em
questão), foram identificados por alguns membros daquele grupo, o que demonstra
certo nível em seus conhecimentos. Ou seja, ao invés da ignorância e da
agressividade, como no caso do grupo no Brasil, houve neste contato, o
conhecimento e o diálogo, onde o conhecimento foi problematizado e compartilhado,
e não reduzido. Limites todos possuímos,
porém, nem todos sabem disso.
Tradição e poder no
Kung Fu
Tradição é algo
importante e que faz parte da trajetória humana. Porém, ela não pode engessar o
conhecimento. Muitas vezes a tradição é usada como instrumento de poder para
controle do conhecimento, sendo que, cultura e conhecimento são coisas vivas,
que se movem e se transformam. Alguns conservadores, que podemos chamar de
'puristas', não compreendem este movimento (ou não querem admitir para manterem
certos conhecimentos sob seu domínio ou controle). Isso acontece muito no Kung
Fu. Uma linhagem, por exemplo, é suma importante para preservar e repassar
conhecimentos, 'modos' de se fazer, porém, muitas vezes ela é utilizada
ideologicamente ou politicamente, não na manutenção do conhecimento, mas do
poder ou controle sobre ele. Em alguns casos, isso acaba limitando o próprio
conhecimento e as possibilidades de aprimorá-lo. Então, é fundamental certo
discernimento ao falarmos, lidarmos ou defendermos (assim como criticarmos)
tais questões. Sendo que também falamos de relações humanas, e assim sendo, socioculturais,
o que envolvem relações de poder.
Referente a isso,
não basta fazer fotos ao lado de um sifu ou mestre para ser bom naquilo que se
faz, onde muitas vezes, representar é parte desta relação de poder (e comercial).
Por exemplo, muitas das escolas que se dizem Ip Man espalhadas pelo mundo, não
são representantes deste mestre ou estilo, assim como, outras, nem carregam em
si o estilo ou modo que aparentam ou dizem ser. Em suma, muito disso tudo é
estereótipo, discurso e negócio. Porém, existem as escolas, associações, sifu’s
ou praticantes íntegros, sinceros e honestos, que realmente fazem jus ao
conhecimento, sendo eles representantes oficiais ou não de um mestre ou estilo
(aqueles que estudam, buscam e experimentam conhecimentos, ensinando o que
realmente aprenderam, e também, construindo conhecimentos junto aos seus alunos
ou irmãos/ãs Kung Fu). Por isso, olhemos para a relatividade e subjetividade
existentes nestas questões, e sejamos assim menos deterministas e figurativos. Se não é possível ser original, que pelo
menos sejamos coerentes e autênticos, sob tudo, com nós mesmos...
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