domingo, 23 de dezembro de 2018

Wing Tjun em síntese: fruto do sincretismo


Sincretismo:síntese, razoavelmente equilibrada, de elementos originários de diferentes visões de mundo ou de doutrinas filosóficas ou religiosas distintas, com reinterpretação de seus elementos.

Síntese: “método, processo ou operação que consiste em reunir elementos diferentes, concretos ou abstratos, e fundi-los num todo coerente.


Aplicado ao Wing Tjun (Wing Chun e Weng Chun Kuen), o sincretismo é uma síntese do que seja este sistema, esta arte, este conhecimento. Desenvolvido(s) no período imperial chinês (dinastia Qing, dos manchus – último governo da fase imperial chinesa), a partir de outros conhecimentos, estilos ou sistemas de Kung Fu (sob tudo Garça Branca e Serpente), por estudiosos e/ou mestres, com o intuito de se auto-defender da repressão do exército manchu que assolava naquele período o sul da China, o Wing Tjun é fruto de um sincretismo filosófico e prático. Ou seja, surge da fusão entre estilos ou sistemas diferentes (mas que se relacionam) de Kung Fu. Estilos externos e internos. Os estudiosos que desenvolveram o Wing Chun e Weng Chun Kuen (artes/conhecimentos irmãos) eram praticantes ou mestres de outros estilos (entre eles figuram a Garça Branca e a Serpente). Também eram praticantes de Chi Kung e/ou Tai Chi Chuan (independente se levavam, na época, estes nomes ou não, pois, as artes internas são antigas, existem muito antes do Wing/Weng Chun), o que faz com que o Wing Tjun também seja uma arte interna (além de externa) em sua essência. Além dos estilos ditos ‘marciais’ que o compõem, também temos o aspecto filosófico.


Kung Fu como cultura viva:

"Um homem nunca se banha duas vezes em um rio, pois na segunda vez nem ele é o mesmo homem, nem o rio é o mesmo rio." (Heráclito de Éfeso)

Segundo o filósofo grego Heráclito, "nada é permanente, exceto a mudança", ou seja, tudo está em transformação, tanto a natureza quanto o ser humano. Em suma, tuto flui, tudo muda. Por isso, quando falamos em conhecimento (em um conhecimento, amplo, profundo e diverso, como o Kung Fu, por exemplo), falamos em 'cultura', e quando falamos em cultura, falamos em soma de conhecimentos, estes, que abrangem certos saberes, teorias, certas práticas. Nisso, a cultura é resultado das respostas que os diversos grupos humanos produziram (e produzem) ao longo do tempo, para melhor satisfazer suas necessidades, o que resultou em um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos, um tipo de sistema simbólico que se aprende e se transmite aos outros como legado histórico, permitindo interpretar e integrar a realidade, dando assim, sentido à vida humana. Nesse processo, o indivíduo não só aprende a cultura dos seus antepassados, mas também cria novos aspectos que a renovam. Ou seja, um estilo, sistema ou 'modo' de Kung Fu, assim como toda cultura, se movimenta, pulsa, é vivo, portanto, está sempre mudando, nem que seja nos detalhes quase invisíveis, conforme a passagem do tempo e as necessidades que esta mudança suscita. Eis que, é neste movimento de transformação, que tal sincretismo acontece. 


Filosofia(s), conceitos:

Muitos acreditam que o Wing Tjun é filosoficamente budista. Porém, isso não é fato consumado, pois, na época, budismo e taoismo já se relacionavam enquanto filosofias que aparelhavam conceitualmente vários estilos de Kung Fu, entre eles, o Wing Tjun. A relação entre budismo e taoismo é antiga. Por tanto, penso ser um erro afirmar que o WT seja budista. Esta afirmação está pautada na crença da existência do templo Siu Lam (Shaolin do Sul), como sendo um templo budista que, supostamente teria sido destruído em um incêndio. Mas, não existem provas que apontem para a real existência deste templo. Então, muitos acreditam que ele tenha sido inventado como estratégia para esconder a existência de uma sociedade secreta que abrigava o Wing Tjun, seus estudos e estudantes. Nisso, ser budista, ou ter o budismo como aparato conceitual/filosófico ou religioso, é relativo ao praticante, mestre, linhagem, família, escola ou modo de Wing/Weng Chun. Na maioria dos casos, ambos, budismo e taoismo, aparelham o sistema Wing Tjun em seu caráter filosófico e/ou religioso.


AFWK e o Wing Tjun taoista:

Como escola ou associação, nosso ‘modo’ a que chamamos de Wing Tjun, por admitir e estudar/praticar tanto o Wing Chun quanto o Weng Chun Kuen, concebendo-as como artes irmãs, além do Chi Kung e aspectos do Tai Chi Chuan, I Chuan, da Garça Branca e da Serpente, temos como base teórico/filosófica e conceitual, o taoismo (e alguns aspectos do budismo e até do confucionismo, em menor grau, como conhecimentos que fazem parte da cultura chinesa e do Kung Fu).

Em suma, nossa concepção enquanto organização percebe e admite nossa arte como sendo fruto de um sincretismo. Ou seja, de uma integração de conhecimentos diferentes, mas que se encontram e dialogam a partir de uma mesma essência. E é esta essência que consideramos fundamental na incorporação do sistema, da arte ou conhecimento. Nisso, é partir do taoismo filosófico que podemos compreender e unificar estes conhecimentos diferentes, mas não impossíveis ou contraditórios, pois, é na essência, na raiz, que está o ‘mistério’ que faz desta percepção e prática um conhecimento profundo e dinâmico. Ou seja, uma síntese histórica, fruto do movimento dialético (ver conceito/concepção no taoismo, em Heráclito e Marx) que criou o terreno possível para que o Wing Tjun pudesse existir e ser o que é, não um fim em si mesmo, mas um campo flexível e fluente de possibilidades.




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