quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Kung Fu, entre o dinamismo e o tecnicismo

Existem pelo mundo uma infinidade de ‘estilos’ de Kung Fu, assim como, uma infinidade de escolas, associações e linhagens desta nobre, antiga e sofisticada arte. Cada qual com suas tradições, peculiaridades e aspectos. Algumas mais ‘modernas’ outras mais ‘tradicionais’, digamos, no que concerne seguir certos padrões ou normas vindas do ‘estilo’ ou ‘modo’ familiar de se fazer (conceber, estudar e praticar). Além da ‘tradição’ das ‘linhagens’, existem aquelas que não seguem uma linhagem em específico ou exclusivamente, optando (ou por uma necessidade) por não seguirem uma única orientação (‘modo familiar’ ou ‘linhagem’). Ambos os casos podem ser interessantes e profundos – ou não. Vai depender da sinceridade para com os estudos e a arte, além do acesso e boa orientação. Ou seja, a questão é complexa e requer de cautela quando for tratada, pois, julgamentos externos não são suficientes para compreender ou caracterizar uma ou outra prática, associação ou escola.

Dito isso, vou me conter aqui em falar de uma questão que muito aflige praticantes/estudantes e entusiastas do Kung Fu. Ou seja, duas vertentes bem comuns que ora se separam, ora se fundem, em ‘linhas’ ou ‘modos’ de se conceber, estudar ou praticar Kung Fu. Uma delas, vamos chamar de ‘vertente dinâmica’, outra de ‘vertente tecnicista’ (sendo que, ‘técnica’, ambas as vertentes possuem, como algo indissociável da prática).

Vertente Dinâmica

A ‘vertente dinâmica’ é aquela que, além da técnica, preza pelo estudo filosófico/conceitual do ‘estilo’ ou ‘sistema’, onde geralmente se estuda, respeita e incorpora certa ‘espiritualidade’ (não no sentido religioso da palavra, mas de ‘estado’ existencial interno e externo – leia-se taoismo), numa prática que funde ‘mente, corpo e equilíbrio’. Nisso, o Kung Fu passa a ser algo ‘espirituoso’, além de técnico e físico-externo, onde as chamadas ‘artes internas’ tem um papel fundamental, a partir da concepção, estudo ou prática. Ou seja, do uso da chamada ‘energia Chi’ (também chamada de ‘sopro vital’ na cultura chinesa). Quando falamos em Kung Fu, falamos na China, na sua história, seus conceitos e concepções de vida, ou seja, na sua CULTURA. Nesta vertente, pensar e praticar o Kung Fu torna-se algo ‘naturalizado’ (ver conceito no taoismo - enquanto filosofia), o que passa a ser parte da vida do estudante/praticante, e não apenas uma ‘arte marcial’ como é comumente dito ou propagandeado por aí. Em síntese, o praticante de Kung Fu nesta vertente passa a ‘incorporar’ esta arte como, pelo menos, parte do seu modo de vida, de estar, pensar e viver o mundo, em relação às coisas e aos outros. Nisso, Kung Fu passa a ser algo que vai muito além da técnica e da luta ou das apresentações esportivo-artísticas. Como uma habilidade humana, o Kung Fu se estende para outras várias áreas de atuação, inclusive, como um modo de pensar e agir no mundo. Nisso, uma das distinções que caracterizam esta vertente, se dá pelo estudo e uso conceitual de alguns aspectos da filosofia oriental que constitui parte importante (ou fundamental) do Kung Fu (quando concebido, pensado e aplicando nesta vertente, é claro). Ou seja, uma ‘orientação’ existencial, mental (espiritual) e também prática (inclusive técnica, a partir de alguns conceitos traduzidos na prática efetiva do Kung Fu, conceitos estes provindos do taoismo e do budismo, enquanto filosofias e não religiões, assim como, alguns de Kung Fu-Tzu ou Confúcio, e Sun Tzu e seu ‘Arte da Guerra’). Estas ‘filosofias’ contribuem muito para uma concepção mais abrangente e, justamente, dinâmica de Kung Fu.

Vertente Tecnicista

A ‘vertente tecnicista’ é praticamente o oposto da ‘dinâmica’, sendo que, não traz em si o caráter filosófico/conceitual da primeira (ou pelo menos, quase nada dele – se pensarmos na impossibilidade do Kung Fu estar distante ou independente dos preceitos filosóficos citados acima, no caso da vertente dinâmica). Ou seja, de um modo geral, não tem o mesmo ‘espírito’ nem o dinamismo ou o aprofundamento sociocultural da primeira. Aí temos um Kung Fu geralmente mais ‘ocidentalizado’ que, em muitos casos, se assemelha a outras artes marciais onde a ‘luta’ ou as ‘competições’ esportivas são o principal objetivo (além do discurso de ‘defesa pessoal’), independente daquele velho discurso que também é um clichê, exposto em muitas academias mundo afora, de: ‘Respeito, humildade e disciplina’. Não que não exista, mas, não é bem assim ou deste jeito, pelo menos, não em todos os casos. Na vertente tecnicista se enfatiza justamente a técnica, onde ‘mente, corpo e equilíbrio’ não necessariamente são práticas fundamentais. Eu diria que, nesta vertente, em muitos casos (pois não dá para generalizar), a sensibilidade perde espaço para a dureza das relações, tanto físicas quando mentais, e o Kung Fu é visto pelo modo como é praticado, nos movimentos corporais e expressões físicas. O relaxamento e a flexibilidade (no sentido de ‘leveza’) da vertente dinâmica são feitos rigidez e determinismo na vertente tecnicista. Se compararmos com a poesia, por exemplo, a primeira (dinâmica) seria o estilo ‘verso livre’ de se escrever, onde a prioridade é o conteúdo, a profundidade e sensibilidade das imagens (corpo e movimento) e do que está sendo dito (conteúdo), e a segunda (tecnicista) seria o ‘parnasianismo’, estilo literário-poético onde se prioriza a ‘descrição’ geralmente fria de uma situação e a ‘métrica’ (técnica) na sua feitura.

Tempos atrás tive alguns diálogos ou discussões com praticantes, entusiastas e ‘mestres’ brasileiros de Kung Fu, relacionados a este tema que estou abordando agora – só que de forma bem menos profunda. Alguns deles, direta ou indiretamente, conscientemente ou não, defenderam a ‘não relação do Kung Fu com a filosofia chinesa ou oriental’ (sob tudo o budismo e taoismo), reduzindo estes ‘complexos culturais’ em religiões (a modo ocidental de pensá-las, sendo que, a questão que se põe é: ‘são essencialmente religiões ou foram tornadas religiões?’). Conste que, um destes ‘mestres’ que me disse, secamente, que ‘o taoismo não tem relação com o Kung Fu’, tem na logo marca de sua escola (e/ou empresa) o símbolo do Ying-Yang. E a coerência? Por isso e por outras, dá para se dizer que em alguns casos, como neste em específico, símbolos importantes que carregam em si significados fundamentais, muitas vezes são só adereços na ornamentação de estereótipos. Em outro caso, outro ‘mestre’, com certa arrogância se colocava na discussão defendendo a ‘pena de morte’ – detalhe: se declarava ser budista. Mais um exemplo da incoerência que existe em boa parte dos ‘artistas marciais’ brasileiros. Sua arrogância e ego inflamado superaram de longe seus argumentos (por tentar impor sua condição de ‘mestre’, por mais superficial que possa ter sido sua postura – existe aí um ‘autoconvencimento’ ou ‘orgulho vaidoso’ dado pela titulação) deu indícios claros da sua vertente. 

Em suma, penso que, infelizmente, no Brasil, parte significativa das escolas de Kung Fu que se promovem por aí, pouco ou nada diferem de algumas ‘artes marciais’ feitas meros negócios que brotam e lotam academias Brasil adentro e mundo a fora, onde o tecnicismo sobrepõe ou submete a própria profundidade e dinamismo da ‘arte marcial’, enquanto um complexo de valores e práticas, reduzindo-a a uma mera caricatura daquilo que ela deveria ou poderia ser em sua amplitude e história. Para alguns, um desrespeito cultural e histórico, ou no mínimo, uma tremenda incoerência entre discurso e prática, algo comum, muito comum, nesta realidade das aparências e autoafirmações.



"A essência da técnica não é a técnica. Técnica é instrumento". (a partir de Heidegger)



sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Energia interna (a partir do fluxo de ‘Chi’) e Força física material (muscular corporal): diferença na realidade prática

Basicamente existem duas formas de se utilizar o corpo em uma ação física, dentro do tempo e espaço. Uma delas é o uso da força física material, dado pela ação do corpo a partir de sua força e resistência muscular e mecânica, outra é o uso da ‘energia interna’ (da natureza – lembrando que somos parte dela) que passa pelo corpo, a partir da concentração e fluxo do que na China é chamado de energia ‘Chi’, o ‘sopro vital’ (energia cósmica vital) no organismo, energia esta que mantém animados os corpos, fornecendo vitalidade ou energia ao que é vivo. O uso da força física geralmente é bem mais comum, pelo menos na maioria dos casos (leia-se trabalho, esportes e mesmo nos afazeres domésticos). É a força motora/muscular usada em lutas, brigas ou atos de violência física, assim como em ações ou trabalhos que exijam esforço físico. Já o uso da chamada energia interna, gerada pelo fluxo de ‘Chi’ (que também significa ‘ar’: note-se que o ar é elemento essencial da vida), na maioria das vezes é pouco notado, concebido ou assimilado, e portanto, não usado (pelo menos como poderia ser). Ou seja, a energia interna é mantenedora e potencializadora de vida, portanto, também de movimentos e suas forças, porém, pouco ou nada percebida, desenvolvida e portanto, utilizada por aqueles que precisam usar o corpo como um instrumento de defesa da vida ou dos órgãos internos. Um exemplo disso são as lutas ou esportes onde o corpo é usado ‘brutalmente’ pelo condicionamento físico, em que a força muscular e motora atua, em grande parte dos casos, decisivamente.

A partir desta breve discussão introdutória e desta ‘diferença’ entre ‘forças’ e seus usos (pois ‘energia’ neste caso, também é um tipo de ‘força’), convido a pensarmos, num primeiro momento, mais ‘matematicamente’ ou formalmente sobre estas duas formas ou modos de uso do corpo e suas ‘forças’. Pensemos então numa situação onde, de um lado, está um corpo que pesa 130 Kg (entre massa corporal e ossos), sendo parte desta massa dada pelo desenvolvimento muscular (além da estrutura física, ossos e gordura). Este corpo desfere um golpe, um soco que vem com muita força, dada pela soma entre peso, velocidade e massa (volume). Certamente dentro de dada técnica que permita um bom golpe, este será muito contundente e forte, dado a soma dos elementos que compõem o atrito ou a força frente ao alvo (ou seja, o outro corpo). De uma forma geral, é assim que a força física atua, neste sentido. Do outro lado temos um corpo menor, que pesa em torno de 65 Kg, com os mesmos elementos físicos do primeiro corpo citado, só que, com uma massa corporal bem menor. Certamente, se o golpe bem desferido do primeiro corpo atingir o segundo, este não terá chance alguma de resistir, pois, fisicamente e materialmente estes corpos são incompatíveis, dada a grande diferença entre suas estruturas. No caso, não há como o corpo menor não ser abalado pela força externa do maior. E é aí que entra o trabalho e bom uso da chamada ‘energia interna’. Se o primeiro corpo é muito mais forte e foi eficiente na sua investida, o segundo corpo sofreu o impacto e foi desmoronado pelo primeiro pois, só contava, neste caso, com sua própria estrutura física e/ou material. Muito mais leve e ‘fraco’ estruturalmente falando, não teve chances de resistir. Mesmo usando certa técnica de defesa pessoal, como um bloqueio com algum membro, este membro foi arrastado com o forte impacto, chegando até o corpo, com menos impacto é claro, mas não o evitando, e não evitando também sua derrocada. Dois corpos fortes, sadios, bem estruturados, feitos da mesma matéria, porém com pesos muito diferentes, num atrito direto, vence o maior ou mais pesado, devido a certa lei da física que trabalha com a soma dos elementos na ação. Então, a forma ‘lógica’ do menor e portanto mais frágil corpo não sofrer sua destruição é também não atuar em pé de igualdade com o corpo maior, pois, de fato, não existe, neste caso, esta igualdade físico-estrutural. Sendo assim, o corpo menor não pode resistir com as mesmas condições (pois nem as possui) do corpo maior.  Portanto, deve ele, utilizar-se de outro fator que defenda sua integridade. E este fator não é simplesmente a força física-muscular, mas sim, sua habilidade, no que diz respeito a flexibilidade do corpo. Flexibilidade esta dada pelo relaxamento físico, tanto externo quanto interno. E esta habilidade de ‘relaxamento’ e ‘flexibilidade’ (no caso, o bom uso do corpo, com consciência dele próprio e do lugar que ele ocupa no espaço), é adquirida através de técnicas, estudos ou práticas que ‘incorporam’ o uso da energia interna (‘Chi’). Eis que assim o corpo menor tem uma ‘arma’ que pode assegurá-lo de não sofrer tal investida do corpo maior. Ou seja, o revide não se dá por um simples ‘bloqueio’ dito defensivo, mas sim por um ‘desvio’ do golpe e da força vinda do corpo maior. Em nosso ‘sistema’ de W.T. chamamos este ‘desvio’ de ‘deixar passar’ ou ‘deixar ir’, a partir da habilidade adquirida pelo treino ou estudo técnico junto ao uso da energia ‘chi’ (relaxamento ou derretimento interno e externo) já citada anteriormente. Sendo esta a forma de lidar ou defender-se desta situação pensada por nós para perceber a diferença entre uma coisa e outra, sendo que, não é o ‘condicionamento físico muscular’ do corpo menor que, neste caso, vai fazer a diferença.

E sendo assim, vos falo não só a partir de estudos teóricos ou uma crença, mas também pela experiência própria (sendo que, além de praticarmos nossas técnicas a partir de situações como estas, já tive a experiência onde a defesa do meu corpo - terreno ou território - se deu justamente por certa habilidade ou conhecimento de usar a ‘energia interna’). Por isso enfatizo, estudo e trabalho com meus irmãos e/ou alunos, a busca, concentração e uso desta energia que passa por todos os corpos vivos, porém, em que nem todos os ‘corpos inteligentes’, usam. Muitos deles, nem sequer acreditam que esta energia exista, onde resumem tudo e apostam todas as suas fichas na força físico-muscular e seu condicionamento, ficando assim reféns de um limite que a própria condição físico-existencial lhes impõem, ou de uma sorte quem nem sempre os acompanha. Porém e contudo, o bom uso desta ‘energia interna’ também vai depender da prática e/ou estudo técnico ligados ao cultivo desta sabedoria, com suas estratégias, conhecimentos e habilidades, pois não falamos aqui em magia, crença ou mito, mas numa realidade nem sempre aprendida, percebida, concebida ou posta em prática. Mais que crer ou não, é preciso adquirir, incorporar ou saber. Assim o ‘sentido’ deste conhecimento passa a existir na prática cotidiana e pelo corpo, independente da sua racionalização ou crença, pois, vai muito além disso.