segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Wing Tjun: uma arte também 'interna'...

O Wing Chun e/ou Weng Chun Kuen, nasceu em finais do séc. XVII ou início do séc. XVIII (em torno de 1700) no Sul da China, através de mestres de outros sistemas de Kung Fu (internos e externos), sendo estudado/praticado e desenvolvido nas 'Sociedades Secretas', no Teatro-ópera dos Juncos Vermelhos e dentro de algumas 'famílias' (espaços de resistência contra o domínio Manchu - Dinastia Qing, na China).
Provavelmente, até a Rebelião Taiping na China (por volta de 1850), o WC preservava fortes elementos 'internos' na sua constituição. Mas, ao longo dos anos, o sistema foi perdendo estes elementos, sob tudo para 'facilitar' seu aprendizado, sendo assim 'simplificado', devido aos momentos de guerra e ao crescimento urbano chinês, onde foi ensinado à um maior número de pessoas, e assim, difundido, também através de alguns mestres, professores e/ou famílias (linhagens), ao abri-lo ao público. Um destes mestres (o mais 'popular' - ou 'popularizado') foi Yip Man. Neste período (por volta de 1900), a maioria do WC já era quase todo 'externo'.
Mas, alguns mestres, famílias ou linhagens, preservaram a 'parte interna' deste sistema que, atualmente está sendo revisitada, conhecida, considerada, estudada/praticada e retomada por alguns pesquisadores, professores, mestres, suas escolas e alunos.
Dentro deste contexto tempos, por exemplo, o 'modo' ou escola de WC a partir do GM Yuen Chai Wan (Vietnam) e da linhagem Pao Fa Lien que, mantiveram os elementos 'internos' do Wing/Weng Chun.
A AFWK (assim como algumas 'escolas' pelo mundo) considera e se empenha em buscar alguns destes conhecimentos (formas ou 'modos'), pesquisa-los, estuda-los/pratica-los, cultiva-los e transmiti-los, respeitando a história do sistema, a partir do seu currículo e com coerência a realidade e necessidade que permeiam seus estudos e/ou práticas. 

* 'Modo' Yuen Chai Wan:

* Linhagem Pao Fa Lien:


O impacto ‘estético’ na concepção de arte marcial

Arte marcial é um conceito ocidental genérico para definir uma prática que, comumente está associado à luta, seja ela defensiva, esportiva ou mesmo em meio a conflitos ou guerras (menos usual hoje em dia). A partir dele, conseguimos minimamente localizar o assunto que, enquanto professores, mestres e/ou praticantes (também entusiastas) de alguma ‘arte marcial’, nos diz respeito. E quando o assunto é este, são várias as leituras, interpretações - e também ignorâncias em torno.


Quando falamos em arte marcial, logo nos vem à mente, além do que se conhece ou se sabe, a localização ou leitura estética de um estilo. Ou seja, imagens que mais ou menos podem referenciar um estilo de arte marcial, mas não necessariamente defini-lo. E é justamente aí que está a problemática ou questão. Há um grande ‘impacto estético’ na concepção de arte marcial, ou seja, uma ‘aparência’ que, para muitos (os menos aprofundados, criticamente falando), define, não só o que compreendem enquanto arte marcial, mas, sob tudo, seus ‘olhares’ sobre. Nisso, é muito comum de se ver por aí, na rede social, por exemplo, discussões sobrecarregadas de pré-conceitos quanto ao fator ‘externo’ (aparente e/ou estético) de um estilo, uma arte, assim como, e principalmente, das particularidades, geralmente desconhecidas, de tal e qual sistema ou estilo de arte marcial, onde o público (os que assistem ou veem – mas não necessariamente interpretam, compreendem e conhecem) julga equivocadamente o que veem ou viram, geralmente de forma reducionista e determinista, aquilo que não sabem ou conhecem. Isso acontece devido a certa ‘cultura do olhar’ que, durante anos, décadas e séculos, foi construída a partir de crenças e ‘autodefesas’ (muitas vezes paranoicas) que, não passam de ‘vícios mentais’, o que também podemos chamar de ‘vícios do olhar’. Estes vícios fazem com que muitos julguem, critiquem, abominem um estilo, sistema, ‘modo’, prática, conhecimento marcial, a partir de um critério meramente estético. Ou seja, não sabem, não conhecem, nunca viram (muitas vezes nem falar), mas julgam, ‘viciados’ que estão em fazê-lo, pois parte das suas visões, entendimentos e/ou conhecimentos partem de ‘estereótipos’ criados seja pelos meios de comunicação de massa (novela, cinema, discursos jornalísticos superficiais, etc.), por certa prevalência de certo ‘machismo’ (enquanto cultura masculina ou masculinizada, historicamente e ocidentalmente constituídas, de ‘autodiscurso, prova de poder, força e conhecimento’, mesmo que estes sejam frágeis e sem fundamento algum) ou pela ‘negação do diferente’ em benefício da crença ou ideologia próprias – em suma, por certa ‘educação’.

Não é novidade para ninguém o excesso de ‘egos’ que temos no ‘meio marcial’. Isso, de certa forma, explica e fundamenta o que digo sobre as ‘heranças’ masculinas ‘machistas’ de valorização inconsciente dos estereótipos e/ou das aparências. Ou seja, da ‘estética’. Sim senhores, homens acreditam, pré-definem, escolhem e julgam muita coisa pela estética. Nisso, aquilo que for mais ‘esteticamente convincente’ para estes homens, na demonstração de força muscular ou dureza dos golpes, por exemplo (mesmo que por trás desta aparência esteja toda a fraqueza do mundo), assim como, aquilo que for mais ‘mecânico’ e ‘formal’, geralmente é atribuído por estes ‘leitores machos’ (porque a prática está além da leitura), como ‘melhor’ ou ‘mais verdadeiro, original, puro’, etc., quando na verdade, a coisa é muito mais dinâmica e profunda que isso.

Em suma, o ‘impacto visual e/ou estético’ levado por uma ‘cultura das aparências’ (onde o ego e a vaidade são fortes características), faz com que os ‘estereótipos’ (e não a realidade) sejam mais aceitos e valorizados do que a própria realidade em si, pois, nem sempre ela, a realidade, é vista com olhos de quem experimenta, prova, vivencia, conhece, sabe, mas, apenas, de quem simplesmente ou meramente vê - e nem tudo o que o ‘olhar’ vê, é (viciado que é geralmente o olhar historicamente e esteticamente constituído ou construído). 

Portanto colegas professores, estudantes ou praticantes, quando formos olhar para algum sistema, estilo, movimento, postura, ifu (uniforme), símbolo, etc., cuidemos para não cair em reducionismo e contradição (algo muito, mas muito comum neste meio) e questionar, criticar ou julgar, não o conhecimento em si, mas a aparência. Isso é pré-conceito, ignorância que denota falta de conhecimento e de equilíbrio, algo de muito valor para quem realmente compreende, conhece e busca na sua prática ou vivência cotidiana dentro de uma arte marcial digna de sê-la, lembrando que, somos nós, os praticantes, os viventes, que dignificam ou não aquilo que dizemos praticar ou viver, e é este discernimento que diferencia um sábio de um mero reprodutor.

Herman Silvani (professor de filosofia, história, sociologia, linguagens, Chi Kung e Wing Tjun Kung Fu na AFWK)



domingo, 7 de janeiro de 2018

Experiências no Kung Fu...

A modo de contribuir nos estudos do Kung Fu e na reflexão em torno da organização de uma escola ou currículo, assim como apontar a diversidade existente neste meio, publico este diálogo (em forma de entrevista) do perfil Caminho Marcial Chinês comigo (Herman Silvani), professor da AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu). Boas leituras!: 



 CMC: Só para conhecer mais (e servir para refletirmos sobre nossas experiências aqui em Uberlândia): vi num post que vocês montaram seu currículo com uma divisão de faixas. Como funciona, mais ou menos, isso? Há uma estrutura fixa de técnicas, princípios, formas etc. nesse currículo ao longo das faixas? Como você descreveria o grau de abertura para individualização do aprendizado nele? Há algum sentido de "técnicas básicas" primeiro e "técnicas avançadas" como uma linha progressista de aprendizado, ou um sentido de espiral (volta ao treinamento anterior para aprofundamento depois de um tempo), ou outro sentido diferente de desenvolvimento previsto na metodologia de ensino do currículo?

HS: Pois bem... A associação é muito jovem, e nossa organização curricular ainda está em construção. Mas, vou responder a partir do que já está funcionando. Dentro do nosso currículo possuímos 6 níveis sem armas, e 7 formas dentro destes níveis (algumas delas ainda estão em construção - estudos), e 2 ou 3 níveis com armas (também em construção). Ou seja, o currículo não é fechado. Devido ao fato de não seguirmos linhagem específica, temos esta possibilidade. Cada nível tem sua forma (o 3º, tem duas). As formas, como todos já devem saber, guardam as técnicas e seus conceitos (posturas, movimentos, aplicações, técnicas...). O aluno que ingressa, começa sem faixa, só com uniforme, e relativamente (depende do nível/grau que chegue), chega ao 1º nível em 1 ano e meio, ou dois anos de prática, mais ou menos (conste que os estudos/práticas são um pouco lentos, pois estudamos arte 'interna' e 'externa', teoria e prática, ao mesmo tempo, conforme a necessidade de cada estudante e o avanço do grupo como um todo também). Ao chegar no 1º nível (Siu Nim Tao), o estudante recebe a faixa azul, 2º nível (Chum Kiu), faixa verde, e assim por diante. O tempo é relativo ao avanço técnico e conceitual/filosófico (taoismo, budismo e um tanto de Sun Tzu e Kung Fu-Tzu ou Confúcio são estudados – conceitos aplicados na prática e questões filosóficas). Mas, o mais importante 'observado' é o que chamo de 'incorporação' do Kung Fu. Ou seja, o que o aluno aprende, desenvolve e passa a praticar 'na vida', para além do quesito ‘marcial’, e não se ele é simplesmente bom tecnicamente falando. Quanto as técnicas, sim, tem as básicas e as avançadas. Aí é por nível. Porém, desde o começo, trabalhamos algumas técnicas e movimentos que são considerados 'avançados', pelo fato de experimentar e aprender desde cedo como o corpo ou a expressão física vai se alterando com as práticas. Mas tudo muito bem pensado, conforme a condição do estudante e/ou do grupo, nada forçado. A questão das aplicações não é meramente técnica, mas sim de desenvolvimento e integração entre 'mente, corpo e energia' – nosso mote, com ápice na 'habilidade' desenvolvida e ‘equilíbrio’. Este é o foco em se tratando de aprendizado. Por isso, não existe um tempo fixado ou definido, apenas uma organização básica para se avançar dentro do currículo. Nisso, o tempo é relativo. Como nossa prática é 'taoista' (filosoficamente falando), o que vale é o 'caminho' e não o pretenso ou suposto 'fim', pois, conforme esta 'filosofia', não existe fim, mas apenas o caminho. E é basicamente isso que consideramos. Quem tem pressa ou certa ambição, quem almeja a disputa, não consegue avançar, e geralmente nem ficar dentro do 'sistema'. Buscamos um 'processo natural' de desenvolvimento, onde as regras existem para 'organizar' os estudos. O mais é FLUIR! Um dos sentidos que, justamente, dá o nome à associação.

CMC: Vocês tem algum tipo de hierarquia formal entre os praticantes (instrutor, assistente, professor etc.) e isso dependeria de um avanço formal no currículo?
HS: Sim, mas uma hierarquia no sentido de ‘organização’ e respeito ao conhecimento que os mais experientes (‘graduados’) trazem, sempre com vista e respeito ao conhecimento ancestral. Instrutor, a partir do 3º nível (Sap Yat Chi Tao), faixa verde / camiseta azul. Ajuda nas aulas e instrui 1º e 2º níveis. Ao todo são 4 faixas (azul, verde, vermelha e preta) e 4 camisetas (cinza, azul, preta e vermelha), para demarcar os 'níveis'.

CMC: Muito legal! Muito mesmo... E na questão das relações entre as escolas que entram na composição do currículo? Entendi que não há "invenção" de nada, entendendo que continua sendo possível apontar dentro do currículo o que proveio de cada escola, mas como se dá a escolha e ligações entre as técnicas e conteúdos desses diferentes estilos para gerar a coerência do ensino e do desenvolvimento pessoal? Imagino que vocês devam ter considerado tanto ligações "externas" entre elas (tipo, "essa forma vem primeiro porque apresenta posturas mais fundamentais que esta segunda aqui já pressupõe familiaridade"...) e "internas" (conceituais, de sensibilidade...). É por aí? Em algum momento prevê-se uma síntese dessas escolas/técnicas/conceitos (mesmo que a nível pessoal)?


HS: A relação entre as 'escolas' (prefiro 'modos' e 'estilos', pois escola denota localização a partir de linhagem ou família específicos, 'oficiais'), se dá justamente na 'essência', ou seja, ambas escolas, modos ou estilos, tem uma mesma 'essência' ou 'matriz', que, neste caso, além dos movimentos ‘externos’, é a 'prática interna', a partir justamente do taoismo e budismo (enquanto aparato conceitual-filosófico), da história (todas do Sul da China) e da simbologia (a exemplo, animais-símbolo 'Garça e Serpente'). São 'estilos' diferentes, mas 'parentes’, como de uma mesma família, onde a grande semente é esta ‘essência’. Por isso, o nosso âmago é a essência. Nenhuma das artes estudadas/praticadas é distante ou divergente, muito pelo contrário, dialogam e se integram. Não há invenção, pois tudo o que fizemos/estudamos/praticamos já existia e existe. O que há, é uma 'adequação' a nossa realidade local, minha (como professor) e de cada um (praticante), organizada no nosso currículo, tendo ciência e considerando nossos limites e possibilidades. A realidade é uma necessidade fundamental. Por isso não copiamos, mas interpretamos, ‘traduzimos’, estudamos. A 'coerência' é esta. A 'experiência', a prática, a partir de várias considerações, pesquisas, estudos. A sequência das formas é basicamente a mesma de outros 'modos' ou currículos de Wing Chun. A diferença são as integrações no caminho, ou seja, a inclusão de mais elementos (conteúdos e formas). Ao organizar o currículo, considerei o que aprendi e o nível ou grau dos meus estudos. Ou seja, juntei as experiências e conhecimentos que possuo para organizar este currículo. A questão dos 'modos' 'interno' e 'externo', se dá de forma gradual e integrada. Ou seja, o Chi Kung acompanha, desde o início, a prática, os estudos, junto aos movimentos e técnicas do Wing Tjun. Síntese? Não sei se é uma síntese, mas sei que é uma consideração, no mínimo, ou uma integração. Porque, como já disse antes, não é a 'formalidade' nossa questão, mas sim, a essência. O que já temos alguns exemplos na prática real, da vida, independente se é técnica, luta, defesa pessoal. O nome é de menos. Mas o 'resultado' para a vida, é a questão. Alunos já passaram por questões complexas, e se saíram bem delas, passando por elas, ou melhor, deixando-as passar (leia-se conceito no taoismo: 'deixar ir' ou ‘passar’), graças aos estudos/práticas. E isso é fluir. 'Mente, corpo e energia' em equilíbrio para fluir em situações difíceis, complicadas, complexas. A questão 'defensiva' principal está aí, na 'proatividade' (antecipação do problema). Depois, se necessário, o uso de técnicas físicas. Mas isso deve ser reflexo do estudo, do treino. Como diria Sun Tzu: 'vencer a guerra sem mesmo desembainhar a espada', fluindo. Isso é 'estar no caminho'. E isso, pra nós, é fluir, o quem vem de encontro com nosso currículo, nossos estudos, práticas cotidianas, com o fundamento da AFWK...


Dezembro de 2017.