segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Wing Chun: hipóteses históricas

Alguns estudiosos da história do Kung Fu afirmam que sistema Wing Chun e/ou Weng Chun Kuen tem suas raízes históricas datadas a partir de 1644, no período imperial chinês dominado pela dinastia Qing (dos Manchus) que só caiu depois da Revolução Chinesa (1911-1912). Contundo, não há como precisar uma data exata para o nascimento do WT (sigla para Wing Chun, Weng Chun ou Wing Tjun/Tsun - também encontramos escrito Eng Chun), mas em linhas gerais podemos dizer que ele foi desenvolvido pelos idos finais do século XVII ou início do século XVIII. O que nos interessa aqui, enquanto pesquisadores, professores ou estudantes de Kung Fu e sua história, são os contextos que envolvem o sistema (ou ‘estilo’), além das concepções e conceitos internos que constituem esta sofisticada e ampla arte. Nisso, vou reter-me a falar disso, daquilo que tenho condições enquanto historiador e professor de WT, tendo em vista os possíveis fatos, hipóteses e circunstâncias que entornam e são inerentes ao sistema WT. Portanto, tudo o que for dito aqui não são ‘verdades’ absolutas, mas sim impressões, hipóteses, interpretações ou ainda ‘versões’ dos possíveis fatos históricos, a partir de informações ou conhecimentos não constituídos na metodologia da pesquisa histórica, mas em leituras, percepções, diálogos e análises relacionadas, pensadas e colhidas através do tempo, apenas por um olhar de historiador. Ou seja, o texto presente não é resultado de uma pesquisa histórica presencial-oficial, mas apenas uma reflexão ou análise de cunho sociológico, filosófico e histórico, a parti de um  olhar ou leituras pessoais.


‘Linhas’ de se pensar, estudar ou praticar Wing Chun

Existem inúmeras linhagens, famílias ou escolas de WT pela China e pelo mundo, assim como inúmeros mestres e estudantes do ‘estilo’, o que, de certo modo, criou ‘linhas’ diferentes de se pensar, praticar e conceber o WT como sendo um sistema de Kung Fu e forma cultural de se viver ou se posicionar no mundo – como é o Kung Fu para além do quesito ‘luta’. Dentro destas ‘linhas’ existem divergências quanto aos modos de se interpretar e estudar ou promover o ‘estilo’. As ‘linhas’ mais populares (ou popularizadas) conhecidas pelo mundo, sob tudo no ocidente, vem a partir da chamada ‘linhagem Ip Man’. Para quem pouco ou nada sabe da história do WT, alguns podem até pensar que foi este mestre que desenvolveu ou criou o ‘estilo’ (observo, pois já vi gente dizendo isso). Mas o que podemos pensar ou dizer é que, o WT do mestre Ip Man, é um 'modo' de WT, digamos, mais ‘moderno’, no sentido de que, Ip Man, como tantos outros mestres, modificou o WT o adaptando ao seu 'modo' de interpretar e ensinar o sistema. Nas províncias e vilas do sul da China ainda existem ‘linhagens’ de WT, geralmente em pequenos grupos, muitos deles familiares, que trazem em si características do que podemos chamar de ‘o antigo WT’ (mais próximo aos estilos Garça Branca, Emei e Serpente de Kung Fu). Podemos constatar isso, por exemplo, a partir das pesquisas do sifu holandês Sergio Iadarola (mestre fundador da IWKA), um dos grandes mestres e pesquisadores atuais do WT e das chamadas 'artes internas' a nível mundial. Sifu Sergio tem vasto material publicado sobre ‘linhagens’ e/ou ‘sistemas’ de WT e artes relacionadas, as que têm ligação, digamos, mais ‘direta’ com o WT das primeiras gerações (para saber mais, cabe pesquisa na internet e You Tube).

A mesma névoa típica do sul da China onde o WT nasceu, também torna sua história um tanto nebulosa. No mesmo período do provável surgimento do Wing Chun, temos também o surgimento de outros sistemas muito similares (que pelo menos tem as mesmas raízes históricas ou a mesma 'matriz'), onde suas próprias ‘estórias’, ‘lendas’ ou histórias de surgimento são similares (e até iguais), ou se misturam e se confundem (não seria a mesma história e portanto a mesma arte que apenas tomou direções diferentes?). Algumas ‘linhas’ defendem que estes sistemas seriam o mesmo, ou seja, um só, e apenas foram divididos por serem interpretados e ensinados de maneiras diferentes, o que não é nada difícil de acontecer. Artes 'irmãs' ou 'parentes' como o Weng Chun (Kuen) e o Wing Chun, que datam aproximadamente do mesmo período de surgimento e tem os mesmos princípios e heranças, e estão inseridos num mesmo contexto. 


Hipóteses históricas

No meio de todo este emaranhado de questões, duas ‘versões’ ou hipóteses históricas, no que se refere à criação do sistema Wing Chun estão mais à tona. A mais popular (ou popularizada) delas relaciona-se justamente como o mestre (ou linhagens que o seguem) mais conhecido do estilo: Ip Man, que conta a ‘estória’ ou lenda da monja Ng Mui e sua protegida Yim Wing Chun (para quem quiser saber dessa ‘estória’ – ou seria história? - cabe a pesquisa). A outra versão que, vendo como historiador, tem características de ser mais ‘histórica’ e menos ‘romanceada’ (ou lendária) que a primeira da monja e sua protegida, é a dos ‘rebeldes’ que no final do século XVII ou início do XVIII refugiaram-se no teatro de ópera chinesa dos juncos vermelhos para estudar/praticar (aprimorar ou desenvolver?) um novo sistema de Kung Fu, que depois ficou conhecido como Wing Chun e/ou Weng Chun, o que, segundo algumas informações diziam que era o nome da sala em que se estudava/praticava ou treinava clandestinamente o sistema dentro do teatro. Essa história (ou ‘estória’) funde-se como outra que diz que, dentro do Templo Siu Lam (Shaolin do Sul), havia um lugar chamado ‘Weng Chun Dim’ ou o ‘Grande-Salão da Perpétua ou Eterna Primavera’, o que nos dá outros elementos históricos para pensar sobre esta história cheia de informações e desinformações. Nesta hipótese do Templo Siu Lam, ‘Wing Chun’ ao invés de um nome pessoal (que seria o da protegida da monja Ng Mui, segundo a ‘versão’ mais popular) representaria o sistema avançado que foi desenvolvido dentro do Templo e passado em segredo durante algum tempo aos seus estudantes que formaram 'sociedades secretas' para o estudo, prática do sistema, como uma forma de resistência e auto-defesa às investidas dos manchus. O sistema Wing Chun permaneceria escondido até ser enfim levado a público durante a era do Juncos Vermelhos. Nesta hipótese, os membros do Teatro-ópera dos Junco Vermelhos não teriam criado o sistema. O Wing Chun teria sido criado no Templo Siu Lam pelos monges estudiosos das filosofias budista e taoista (aspectos confucionistas, de Sun Tzu, entre outros), e mestres em estilos de Kung Fu como Garça Branca, Emei Serpente, Chi Kung e outras 'artes internas', e posteriormente o WT tenha se infiltrado no Teatro-ópera do Juncos Vermelhos através das Sociedades Secretas, mais de um século depois de ter saído de Siu Lam. Porém, a existência ou não do Templo Siu Lam é outra dúvida. Mais uma provável 'lenda'. Segundo algumas pesquisas, este templo nunca existiu, e na verdade era uma (ou algumas) Sociedade Secreta, e não um templo. 

Dentro de toda esta complexidade de informações, fatos e/ou lendas, o que é importante saber é que estes ‘rebeldes’ estudantes/praticantes do novo sistema de Kung Fu se uniram para resistir e/ou combater a dinastia Qing dos Manchus, onde a simbologia ou significado de Wing Chun tem relação com isso, pois, um dos significados mais representativos é interpretado ou traduzido como: ‘Eterna Primavera’ ou ‘Canção da Eterna Primavera’, sendo que ela, a primavera, representa principalmente ‘renovação’.


Três Hipóteses referentes ao desenvolvimento do Wing Chun

Relacionado à história (ou ‘estória’) das sociedades secretas e seus rebeldes, podemos pensar em três hipóteses diferentes entre si no que concerne aos fundamentos do Wing Chun, pensado a partir de certa percepção de uma possível ‘lógica histórica’.

Primeira – os restauradores: Talvez, a mais popular ou reproduzida hipótese, diz que os ‘rebeldes’ queriam destronar o imperador manchu e retornar a dinastia anterior (Ming) do qual eram adeptos, o que caracterizaria a rebelião ou resistência como sendo um 'grupo político-restaurador' ligado à dinastia anterior;

Segunda – os revolucionários: os ‘rebeldes’ queriam destronar o imperador manchu para substituir o poder como lhes interessasse, junto a outros grupos rebeldes que se espalhavam pela China, o que caracterizaria a rebelião ou resistência como sendo um 'grupo político-revolucionário';

Terceira – os libertários: os ‘rebeldes’ estavam apenas se defendendo ou resistindo ao tratamento duro vindo da dinastia Qing, o que caracterizaria a rebelião ou resistência como sendo um grupo libertário, o que caracterizaria o WT como um sistema proativo (antecipatório) de defesa pessoal de um grupo que resistiu ao domínio violento da dinastia Qing. Ou seja, a ‘natural’ luta pela vida e liberdade de ser-estar, o que também fundamenta a ideia de que o sistema foi criado para pessoas ‘mais fracas’ (fisicamente falando) se defenderem de pessoas ‘mais fortes’. Isso caracterizaria um 'grupo político-libertário'. 

Devido ao fato de ser historiador, além de estudante e professor de WT, entre estas três hipóteses, como sendo a histórica, acredito na terceira, pois vejo nela mais sentido histórico, sendo que, os ‘rebeldes’, na sua maioria eram jovens e letrados (intelectualizados, ligados à filosofia e as artes, como música e teatro), seria a mais condizente com o contexto.

Por quê? Nas duas primeiras hipóteses, dentro de certa lógica contextual, a sociedade secreta em questão deveria ser formada por militares ou, agentes que, pelo menos tivessem sido educados ou treinados em regime militar e não por estudantes ou intelectuais das artes e filosofia, pois ambas as hipóteses trazem em si contextos ambiciosos de destronamento de um imperador de um grande e forte império, sendo uma de origem ‘restauradora’ e outra ‘revolucionária’, como citado acima. Em ambos os casos, isso só seria possível com forte disciplina e treinamento militar, além do uso de armas, estratégias e táticas militares, e isso só se daria com o estabelecimento de uma hierarquia militar e certo tempo de doutrinamento e treino duro, como é característico no militarismo. Sendo estas pessoas intelectualizadas, portanto, inteligentes e sensíveis (ao modo artístico de sê-lo), dentro de certa ‘lógica’, penso que não teriam esta ambição desmedida, tamanha dificuldade em combater um grande e forte império como o dos manchus. Outro fator que me leva crer na terceira hipótese é o de que não faria muito sentido os ‘restauradores’ quererem lutar por uma dinastia também opressora como foi a Ming (característica dos impérios chineses). Por isso opto por crer na terceira hipótese, a mais simplória e condizente com o contexto, e que tem mais a ver com os fundamentos de ‘prática proativa’ e ‘não militar’ do WT. Mas como eu já deixei claro antes, isso não é uma ‘verdade’ ou um fato, apenas uma entre tantas hipóteses.


Modos de se interpretar e conceber o sistema WT

Algumas linhas de se pensar, estudar e praticar WT defendem a ideia de que ele não é um sistema ‘simples’ como comumente se propagandeia por aí, mas foi ‘simplificado’. No caso, o WT foi simplificado a modo de facilitar sua prática, num período urgente de resistência em que não havia tempo suficiente para estudá-lo profundamente. Eis então que ele sofre uma adaptação, adequação, uma alteração, mais ou menos por volta de 1850 em diante, junto ou depois da 'rebelião Taiping'. Foi aí então que, supostamente ele possa ter sofrido influência militar. Nisso, o WT ‘endureceu’. Ou seja, tornou-se mais mecânico, corporalmente falando, onde seu 'fator interno' diminuiu muito. Mas, o WT no seu modo ‘relaxado’ (e também ‘interno’) de ser concebido, resistiu, onde o trabalho meditativo e técnico de captura, concentração e fluxo de energia (‘chi’), presente em outros estilos ou sistemas de Kung Fu, se manteve, só que com menos visibilidade. É fato que alguns (ou muitos) professores, mestres e/ou praticantes não acreditam nisso, talvez por desconhecerem esta questão e seu fundamento, ou mesmo por aprenderem diferente, segundo suas ‘linhas’ ou o ensinamento das ‘linhagens’ de que fazem parte, outros ainda, por um fator político-ideológico. 

Outra leitura de contexto diz que Ip Man também fez uma adequação do WT neste sentido, ao ir para Hong Kong, um grande centro urbano, onde adquiriu muitos alunos, e pelo falto então, de ter que ensinar dentro de um grande coletivo, sendo que o tempo não era suficiente para tal e, como um professor sozinho (quem trabalha em sala de aula sabe bem disso), para dar conta do recado, teve que 'simplificar' o sistema à um modo mais ‘mecânico’ ou 'formal'. Mas, dizem que, para os seus alunos ‘escolhidos’ (que se destacavam), ensinava de uma forma mais flexível. Este ‘endurecimento’ ou ‘mecanização-militarizada’ também aconteceu com outras artes ditas ‘marciais’, como o Caratê por exemplo. Nisso, também entra o contexto ‘esportivo’ dito de ‘rendimento’, e o ‘espetáculo’ cotidiano e midiático (muito comum hoje em dia) ligado à questão estética (físico-muscular), o que também muda o modo de se ‘incorporar’, estudar/praticar e conceber a ‘arte marcial’, assim como resulta também, na mudança da sua finalidade, onde que, muitas vezes, infelizmente, acaba diluindo ou morrendo sua essência.  


Considerações finais

Dentro de todo este panorama (que é parcial, mas não segmentário, idealista ou ideológico), com um intuito e uma visão universais (em aberto e sem determinismos ou reducionismos históricos), em linhas gerais penso que, por ser uma arte sofisticada de auto grau técnico e de concentração, e pelo contexto histórico do período, o mais condizente com os fatos, se partirmos de certa lógica histórica, é que o sistema Wing Chun e/ou Weng Chun tenha sido desenvolvido no sul da China, inicialmente por mestres estudiosos de algumas áreas do conhecimento, entre elas filosofia, física, meditação, técnicas de respiração e corporais (Chi Kung, Tai Chi), assim como de alguns estilos mais antigos de Kung Fu como a Garça Branca e a Serpente, por exemplo (justamente os que viriam ser os dois animais-símbolo do WT. Depois o WT adquiriria seu nome, a partir do espaço de estudo e prática da então nova arte e da simbologia que o nome carrega, e enfim seria amplificado para além das Sociedades Secretas, no Teatro-Ópera dos Juncos Vermelhos, onde possivelmente, tenha tido outros desenvolvimentos e agregados novos instrumentos e conhecimentos, até chegar ao Wing/Weng Chun das famílias, linhagens, escolas e por fim ao grande público.

Enquanto experiência pessoal, junto ao meu grupo ou associação, buscamos estudar/praticar WT a partir de seus aspectos filosóficos e históricos, além de técnicos e físicos, priorizando a dinâmica que o sistema oferece e sua fluidez (o que inspirou o nome da nossa associação), relacionando-o a outros conhecimentos e ‘estilos’ ou sistemas 'irmãos', 'parentes' e afins, que venham a integrar ou interagir naquilo que nos propomos enquanto estudantes/praticantes dentro de um coletivo. Nisso, o equilíbrio entre os polos de energia (Ying-Yang), as partes ‘interna’ e ‘externa’ da arte, assim como os conhecimentos de vida de cada estudante, são elementos indispensáveis nos nossos estudos, pois, é alinhando ‘Mente, corpo e energia’ (ver conceito no taoismo) que trabalhamos a ‘incorporação’ do Kung Fu em cada um, a partir do seu ‘espírito’ (enquanto energia dentro do meio), em busca do ‘equilíbrio’ fundamental para ser-estar, o que considera sempre o entorno e o porvir. Eis, em suma, a concepção e prática de Wing/Weng Tjun da AFWK.


(Herman Silvani - historiador, professor de filosofia, sociologia, linguagens, Chi Kung e Wing Tjun)