domingo, 27 de outubro de 2019

Reflexão em torno dos excessos


A morte de um instrutor de arte marcial (Krav Magá) na minha cidade, homem de meia idade, me leva para uma antiga reflexão e discussão no meio dito ‘marcial’ – e na vida cotidiana como um todo: ‘Esforço físico - em excesso - faz bem ou não para a saúde?’

Pratico, estudo ou treino Wing Tjun (sistema defensivo de Kung Fu) e Chi Kung faz muitos anos, de uma forma ou de outra, diariamente. Ou seja, não necessariamente a partir do movimento físico com técnica marcial empregada. Por ser taoista (filosoficamente e espiritualmente falando), tendo nossa escola/associação base neste conhecimento ou filosofia oriental milenar, busco sempre o ‘equilíbrio’, a ‘naturalidade’ (mas confesso que nem sempre consigo), tanto na prática quanto na vida, e nunca a superficialidade ou o ‘excesso’, pois evitar os excessos é evitar o desequilíbrio, seja ele físico, mental ou espiritual/energético. E é disso que falo: ‘energia’ (energia interna e não força externa). * Conste aqui que, taoismo não se reduz a uma 'religião' como muitos e o senso comum dizem ou acreditam. Cito o taoismo enquanto um grande e profundo conhecimento, uma filosofia, uma prática de vida milenar, nativa e oriental, que além do fator 'espiritual', possui o fator 'científico' (praxis).

No taoismo temos um conceito fundamental, que é o de ‘energia vital’ ou ‘sopro vital’, o Chi (também Qi - no Japão Ki e na Índia Prana). É esta energia que fornece vida para os seres animados (animais e plantas), sendo a morte física, o esgotamento do Chi nos corpos. É como uma bateria que alimenta a vida em nós. Para a manutenção do Chi, precisamos manter certas práticas e cultivos cotidianos. Entre eles, uma alimentação que se busque saudável e equilibrada, uma mente clara, flexível e também equilibrada, e um corpo também flexível e equilibrado. Isso garantirá uma espiritualidade equilibrada (ideia de ‘todo’ ou ‘unidade’), e assim, uma boa energia para equilibrar também a existência, a vida. Mente, corpo e energia integrados nesta busca por equilíbrio, para nós é o que garante uma vida mais plena e saudável (nos seus vários âmbitos). E isso, na prática ou vida ‘marcial’, não é diferente.

Excessos de músculos ou uma ‘aparência’ saudável ou atlética, não é sinônimo de saúde, boa energia, ou de energia e vida equilibradas. Nisso, lembrei de uma obra intitulada ‘Esporte mata!’, do médico José Roiz, onde ele anota que “muito dos exercícios praticados são desnecessários porque os realizamos espontaneamente em nossas atividades cotidianas”. * De forma alguma estou defendendo a ideia de que não se deva praticar esportes, ou que todo o esporte ou atividade física é maléfica à saúde (para uma melhor compreensão do que falo, indico ler o livro, constando que ele é uma perspectiva, e não uma 'verdade absoluta', como quase tudo). 

Além do corpo físico, daquilo que é externo, temos a mente e a própria energia que sustenta este corpo, ou seja, aquilo que é interno, que ninguém vê, mas está aqui. E esta integração equilibrada entre mente, corpo e energia, também chamamos de ‘espírito’. Quando mente e corpo, ao invés de estarem em harmonia, integrados, equilibrados, estão em desarmonia, desintegrados ou desequilibrados, é sinal de que nossa energia vital, o Chi, está fraca. Diferente do que dizem alguns cientistas médicos ocidentais e o discurso sobre a ‘saúde perfeita’, proferido ou reproduzido por alguns educadores físicos, atletas, e pela publicidade ou ideologia do ‘mercado do corpo’, discursos que fazem encher academias, simplesmente praticar esporte ou se empenhar em esforços físicos, não garante boa saúde. Ou seja, a partir do nosso viés filosófico, a atividade física não garante o equilíbrio necessário para que esta saúde seja real ou plena. Ao contrário, muitas vezes, o esforço ultrapassa o limite da necessidade, o que, para o taoismo, gera desequilíbrio e adoece (corpo e/ou mente). Na principal obra taoista, o Tao Te Ching (livro do caminho e da virtude) de Lao Tse, está anotado: “Todo excesso é perverso”, ou seja, tudo o que for em demasia, o que foge da necessidade e da ‘naturalidade’, acaba gerando deficiência ou desgaste. Por isso, enquanto praticantes de arte marcial ou atividade física, não nos prendemos em discursos ou aparências, mas sim, naquilo que vivemos na prática, estudamos e conhecemos, para além do senso comum e dos discursos mercadológicos ou ideológicos. Ou seja, ao invés da cobiçada vitória individual que ultrapassa limites – que tem relação com o ‘ego’ (ou o discurso sobre isso), nos movemos tendo em vista e respeitando os limites, pois são eles que nos apontam até onde podemos ir na nossa prática que, limitada, nos integra à certa ‘naturalidade’ da vida, sendo que, toda prática é circundada de limites, e são eles, os limites, indicadores do equilíbrio necessário para a vida.

No nosso ‘modo’ de Wing Tjun, a flexibilidade é muito mais importante do que a rigidez, tanto no quesito físico como no mental. Por isso também praticamos o Chi Kung (cultivo de energia), e elementos do Tai Chi Chuan, como conhecimento integrados ao WT. Nisso, nosso sistema, além de ‘externo’ é ‘interno’ (leia-se ‘arte interna’), o que aprimora consideravelmente a prática ‘marcial’. É inconcebível para nós a ingestão de anabolizantes ou quaisquer outras drogas que influem na estrutura física, pois ao mesmo tempo, elas sugam ou diminuem nosso Chi. Também não compactuamos com disputas de ego e físicas, nem discursos motivacionais que apontam para uma pretensa e subjetiva ‘vitória na vida’ ou sob si próprio, pois temos a consciência que a vida não é para ser vencida, mas para ser vivida, experienciada, ou seja, ela é o que é, e nós, seres que a compõe.

As suspeitas da morte do instrutor, segundo noticiosos, recaem sobre uma suposta ‘morte natural’ ou devido ao uso de anabolizantes (o motivo desta reflexão) – mas talvez, numa perspectiva taoista, recaem sobre os excessos.

Talvez, a morte do instrutor não tenha relação ‘direta’ com atividades físicas, ‘medicamentos’ ou alimentação (mas pode ter ‘indireta’), mas com certeza, a partir da concepção taoista, tem com o Chi, ou seja, com a energia interna vital. E esta energia está no cotidiano, na vida, como um todo, no alimento, no ar, nas relações sociais, no fator cultural (modo de vida), ou seja, nas práticas, sejam elas marciais ou cotidianas, onde corpo e mente desequilibrados, como já foi dito acima, resultam numa energia ou espírito desequilibrado, o que pode, no mínimo, somar para o fim da vida.

Conhecia o instrutor em questão, como também sua prática marcial, e mesmo não tendo afinidades com ela (nem uma relação próxima com ele), sinto muito, pois trata-se de um ser humano, de meia idade (relativamente jovem), que poderia ainda ter muito o que viver, aprender e ensinar. A causa mortis ainda está sendo levantada. Talvez em breve seja divulgada, e saberemos o motivo principal (ou não). Enfim. Meus sentimentos aos familiares, amigos/as e alunos/as. E que este texto cumpra, nem que seja em partes, seu objetivo, que é reflexivo, sobre aquele que é nosso bem maior, a vida.

* Conste que esta reflexão é a partir da minha concepção pessoal e da nossa escola e estilo de Kung Fu, e tem bor base conceitos taoistas.