domingo, 29 de janeiro de 2017

Ip Man não inventou o Wing Chun nem foi o único grande mestre do sistema

O Wing Chun (abreviação: WT) é um sistema de Kung Fu (‘arte marcial’ chinesa) que provavelmente tenha surgido por volta do final do séc. XVII, início do séc. XVIII no sul da China em plena dinastia Qing dos Manchus (1644-1911). Versões diferentes conflituam-se quanto a criação e surgimento do WT que, se torna conhecido no ocidente, a partir de Bruce Lee (Lee Jun-Fan) que de certo modo divulgou o ‘estilo’ devido a sua fama tanto de ator como de ‘artista marcial’. Em algumas partes da China o grande mestre (Yip) Ip Man (1893-1972) já era conhecido, já que foi, senão o primeiro, um dos primeiros e o mais conhecido sifu de WT a lecionar o sistema numa grande cidade chinesa, Hong Kong. Mestre Ip fora professor por algum tempo de Bruce Lee, o que depois também o faria conhecido no ocidente, por isso e por alguns de seus ex-alunos que também viraram professores ou mestres do sistema e que, acabaram divulgando o WT do ‘modo Ip Man’ (ou seria ‘linhagem’?) no ocidente, o que tornou o ‘modo’, ‘escola’ ou ‘estilo’ Ip Man de WT o mais popular, difundido, e por isso, mais praticado do mundo. A figura hoje quase ‘mitológica’ do grande mestre Ip Man ficou ainda mais conhecida depois da série de filmes em torno de seu nome. Independente de tudo isso, o fato é que o mestre Ip deixou um grande legado de bons alunos que se tornaram também grandes mestres do sistema. Entre eles podemos citar Chu Shong Tin (1933-2014), Wong Shun Leung (1935-1997), Moy Yat (1938 – 2001), Willian Cheung (1940…) e Leung Ting (1947...), além de seus filhos Ip Chun e Ip Ching, entre outros. Alguns destes mestres, por sua vez, foram responsáveis por grandes ‘escolas’ de WT, deixando também outros bons alunos que também se tornaram grandes mestres do sistema. Escolas ou associações como a EWTO por exemplo, fundada pelo sifu Keith R. Kernspecht, a partir do ‘modo’ Leung Ting de WT, é uma das grandes escolas de WT do mundo, de onde saíram grandes professores/mestres do sistema, como os conhecidos sifu Tassos (IDVTA) e sifu Sergio Pascal Iadarola (IWKA) - hoje um dos grandes mestres e pesquisadores do WT (em suas várias linhagens, escolas ou modos) e do Kung Fu mundial.
















(GM Ip Man e Bruce Lee)













(GM Leung Ting e GM Ip Man)


O discurso do ‘verdadeiro’ no Wing Chun - Ip Man e seus contemporâneos

Devido ao fato de que Ip Man foi, certamente, um dos maiores mestres da história do WT, mas, além disso, o mais popular (ou ‘popularizado’), alguns acham (e se não acham pelo menos pensam ou agem como tal) que o mestre Ip foi quem ‘criou’ ou WT. Outros dizem (ou divulgam assim, seja por crença ou por interesses publicitários-econômicos), que Ip Man foi ‘o melhor’ mestre de WT da história, ou o grande mestre do ‘verdadeiro’ WT. São inúmeras as associações e escolas que se intitulam e divulgam-se como sendo ‘linhagem Ip Man’. Mas, outro fato que precisa ser considerado (e pensado), é que não existe um ‘WT verdadeiro’ ou ‘puro’, já que o sistema possui várias ramificações, linhagens ou modos. O próprio mestre Ip não foi ‘fiel’ a família (ou linhagem) que o tutelou, estudando com outros mestres e modificando seu ‘modo’ de praticar e ensinar WT. Por isso é contraditório quando algumas escolas agem criticando outros mestres que não são melhores nem piores que Ip Man, só são ‘diferentes’ dele. Na história do WT (consideremos aqui Wing Chun e Weng Chun Kuen) existiram outros grandes mestres tão bons quanto Ip Man, alguns deles, inclusive, contemporâneos a ele, como é o caso dos mestres Yuen kay San (1889-1956), Chu Chung Man (nascido por volta de 1900), Tang Yik (1911 - 1991), Pan Nam (1911 - 1995), entre outros, que, apenas não foram tão ‘popularizados’ quanto Ip Man. Alguns destes mestres, inclusive, trocaram conhecimentos com o mestre Ip. Segundo pesquisas (uma delas do sifu Sergio Iadarola), como bem registrado em fotos, em Hong Kong, grandes mestres da época encontravam-se no armazém (Daí-Dak Lan) de Wai Yan (nascido depois de 1900 - 2004), que também acabara se tornando um respeitado sifu de WT, para trocarem conhecimentos. Antes mesmo do mestre Ip e dos citados mestres acima aparecerem no cenário do WT, tivemos gerações passadas desta arte. Neste sentido, um dos grandes mestres do WT (Wing Chun e/ou Weng Chun Kuen) foi Yuen Chai Wan (1877- 1959/60), irmão mais velho de Yuen Kay San, responsável pelo WT ser difundido no Vietnã. Sifu Chai Wan, assim como fez Ip Man, ensinou bons alunos que se tornaram grandes mestres como Tran Van Phung (1900 – 1987), Tran Thuc Tien (1912 – 1980) e Ngo Si Quy (1922 – 1997), no Vietnã. O legado deste grande mestre deixou uma grande escola de WT naquele país, tão importante e qualificada quanto ao do mestre Ip Man, só que menos ‘popular’, e que atua mantendo este legado até os dias de hoje. Sifu Chau Phong é um dos nomes a dar sequência ao conhecimento iniciado pelo GM Chai Wan. Este também foi o caso de Tang Yik, grande mestre contemporâneo ao mestre Ip, onde seus ‘discípulos’ continuam ensinando até hoje, como é o caso dos mestres Tang Chung Pak (Michel Tang) e Sunny So (que foram - ou são, também professores do sifu Sergio Iadarola, entre outros).









(da esquerda para a direita, GM Ip Man segurando o braço do GM Chu Chung Man, e ao fundo sorrindo o GM Tang Yik, nos seus encontros - fonte: IWKA)















(Dai Dak Lan, antigo armazém de Wai Yan, ponto de encontro de alguns grandes mestres para troca de conhecimentos - fonte: IWKA)
















(GM Yuen Chai Wan, grande nome do WT mundial e no Vietnã)


Isso tudo nos mostra que...

Ao contrário do que muitos pensam ou acreditam, e que muitas vezes se divulga ou se diz por aí, Ip Man não é ‘o melhor’ (mas certamente está entre os 'grandes'), muito menos o ‘único’ grande mestre do WT mundial. Dizendo isto, não estou diminuindo a importância e grande maestria de Ip Man, mas apenas considerando e valorizando outros que, repito, foram (e são) tão importantes e bons quanto ele, e relativizando um discurso muitas vezes usado para ‘impor autoridade’ quando se fala ou se ‘vende’ a ideia de que uma escola ou associação, um mestre ou professor, são ‘legítimos’ ou não. Neste discurso tem muito de ‘publicidade’, por isso, cuidado. Já vi professores de WT ao se referirem a algumas escolas onde os movimentos ou posturas da Garça Branca e/ou da Serpente são mais, digamos, visíveis, dizerem que ‘isso não é o verdadeiro, autêntico ou legítimo Wing Chun’, sendo que, são a garça e a serpente os ‘animais-símbolo’ do sistema WT. Ou seja, dizendo isso, de certo modo, estes ignoram ou negam os antepassados do WT, negando assim também sua riqueza e diversidade, tudo em nome de um ego, ignorância ou um negócio. O ‘modo Ip Man de WT’ (escola ou ‘estilo’) é só mais um, entre outros (importantes tanto quanto tal), inclusive, mais antigos. E isso não significa que seja pior, mas nem melhor do que outros, apenas diferente. Se alguns mestres, professores e suas escolas tiveram a chance, a oportunidade de conhecer, aprender e escolheram aplicar outros fundamentos, ‘modos’ de WT e até ‘estilos marciais’ que relacionam-se ou se integram com o WT, enquanto outros mantiveram-se seguidores de uma única linhagem, família, escola ou modo, isso não quer dizer que um é melhor do que o outro, e nem que algum seja dono da verdade. Novamente pensemos, visualizemos, respeitemos as diferenças. Isso tudo mostra que, além do que é popularmente visto ou dito, o WT é um sistema dinâmico de Kung Fu, e se tem muito ainda o que conhecer dele e nele, no seu interior e entorno. O que não é legal é reduzi-lo à um jogo de ‘verdadeiro e falso’ regrado pelo ego e distorcido pelo discurso provindo deste. Seja Ip Man ou não, o WT é um rico e profundo sistema de Kung Fu que tem uma longa e intensa história.

Herman Silvani (professor da AFWK – Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu)


domingo, 8 de janeiro de 2017

O comércio das artes marciais

Não raramente alguns fatores levam ao descrédito e ao distanciamento de muitas pessoas as artes marciais no Brasil (e pelo mundo), aumentando a ignorância e o preconceito sobre esta prática, onde muitas pessoas não sabem realmente do que se trata, apenas reproduzem o que acreditam ou absorvem a partir da publicidade ou de acontecimentos sobre o assunto. Um deles, é o fato de que alguns praticantes e mesmo professores (instrutores ou mestres), se colocam como ‘donos da verdade única e absoluta’ (e muitas vezes ‘autoritários’ – não ‘autoridades’), sendo egocêntricos e arrogantes, mas achando que são ‘sábios’, quando não passam de medíocres. Isso acaba diminuindo significativamente a dignidade que deve existir numa arte marcial que se preze sincera, coerente com a realidade, enquanto conhecimento humano. Outro fator que deprecia muito, e às vezes torna a arte marcial piada ou sinônimo de violência, é o mau uso que se faz dela, onde se condiciona o aluno, se ‘ensina’ simplesmente técnicas, sem o estudo aprofundado dos conceitos e/ou da filosofia da arte (conhecimentos que se integram e se aplicam no real), acrescendo assim o ego do estudante/praticante, onde sua conduta social parte do seu eu, do seu umbigo, em que, músculos e estereótipos dão o tom da sua postura e/ou prática social. Isso é muito comum no meio dito ‘marcial’. Mas um dos fatores que mais me chama a atenção é o fator ‘publicitário’, ou seja, o ‘discurso’ que se faz acima daquilo que se divulga, melhor, neste caso, se ‘vende’. Na maioria dos casos este ‘discurso’ é falacioso, ou seja, mentiroso. Exemplos não faltam - no que chamo de ‘discurso do guerreiro’-  aquele discurso ‘motivador’, que soa como uma ‘teologia’ aos ouvidos do receptor passivo das ‘verdades’ ditadas pelos ‘mestres da falácia’. Nisso, um dos maiores ‘chavões publicitários’ usados para convencer e muitas vezes ludibriar o ‘consumidor’ é o da ‘defesa pessoal’ ou da ‘auto-defesa’, muito comum, por exemplo, relacionado ao método (ou ‘estilo’, ou ‘arte marcial’?) criado militarmente em Israel, chamado de Krav Maga. No Brasil o KM (abreviação) se tornou quase que sinônimo de ‘defesa pessoal’. Mas, é de fato? Depende! Do que? De muita coisa! Ou seja, isso é muito relativo (tanto que a discussão precisa ser aprofundada – não cabendo aqui-agora). O que sei, é que, muito do que se discursa e se vende de ‘defesa pessoal’, não é. Socos, chutes, torções, etc., não significam garantia de defesa. É preciso muito mais que isso para se ter um mínimo de condições para uma ‘auto-defesa’ que funcione dentro da realidade ou situação, e tudo não começa pela técnica marcial (ataque), mas pela ‘sensibilidade’, percepção, intuição, visão. Mas, os vendedores do produto ‘defesa pessoal’ trabalham na lógica da ‘propaganda enganosa’, ou seja, mais discurso e técnica publicitária de venda a partir de uma motivação (teológica) do que realidade, sinceridade ou honestidade. Dito isso, vamos à um exemplo deste ‘discurso’ encontrado junto a um vídeo de uma escola da arte em questão:

“ATENÇÃO: ESSE VÍDEO CONTEM CENAS FORTES DE KRAV MAGA EM (nome da cidade e Estado) - BRASIL.
Não assista se não quiser ficar decepcionado com outros treinamentos de defesa pessoal.
Krav Maga Israelense!
As melhores unidades de elite do mundo praticam, agora só falta você!”

*  Obs.: preservo o nome da associação ou escola e da cidade para não gerar algo a mais do que esta discussão, sendo que o objetivo não é detratar, apenas possibilitar o contraponto.

Tudo bem se o discurso fosse coerente com a realidade, mas não é. Para quem estuda, pratica, conhece, tem a arte marcial incorporada na sua vida (para além do estereótipo, do ‘negócio’ ou do ‘status’) não é tão simples assim - nem o conteúdo do vídeo em questão (como tantos) é coerente com o que se discursa na propaganda escrita.

O ego prepotente ‘combatido’ pelas mais profundas filosofias e práticas marciais do mundo - ou, a contradição:

“Não assista se não quiser ficar decepcionado com outros treinamentos de defesa pessoal.”

Este trecho demonstra a arrogância, a prepotência (ou ‘malandragem’) típica de um dirigente ou ‘mestre’ desequilibrado – ou mero comerciante? -, ou seja, o ‘ego’ do mesmo (representado pelo excesso de ‘confiança’ – ou discurso publicitário?!) não é coerente com uma prática marcial digna (que considere seus fundamentos), pois, a filosofia por trás desta arte deve ser considerada, respeitada, no mínimo, e praticada, caso contrário, a arte passa a ser um mero produto comercial (como se constata quando se tem um discurso desses e vídeos cheios de ‘clichê marcial’ e/ou estereótipos, o que acaba por detratar a arte marcial).

“As melhores unidades de elite do mundo praticam, agora só falta você!”

Este trecho acaba reiterando a falácia e prepotência do trecho anterior, e revelando a intenção quando o convite vem com a ‘imposição’ do discurso propagandista anterior, em outras palavras dizendo que ‘os outros são inferiores, pois decepcionam’ e na sequência ‘os melhores praticam o nosso’.



Não é a primeira propaganda que vi que não respeita e pratica a ‘ética’ marcial. E cá entre nós, neste mundo dito ‘marcial’, ego é individualismo é o que mais se vê, infelizmente, contradizendo(se) daquilo que é essencial numa ‘arte marcial’, o ‘equilíbrio’ de estar e ser. Talvez falte leituras, filosofia, conceitos, práticas que integrem-se. Como é historicamente, é na filosofia taoista e budista, por exemplo, que muitos destes conceitos, destes discernimentos, destas ‘essências’, se encontram. O problema é que muitos ‘mestres’ e associações ou escolas fecham os olhos para isso (não estudam), reduzindo-se assim em meros reprodutores tecnicistas donos dos seus espaços de comercio ou fabricação de egos danificados pelo negócio ou pelo status de estar, mas não realmente ser.