terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Kung Fu não é propriedade privada – e os chavões do senso comum no Kung Fu



Um tema muito corriqueiro e que gera discussões nas comunidades de Kung Fu mundo afora, é a questão do que é ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ em Kung Fu. Ou seja, daquilo que se diz autêntico e daquilo que se julga superficial (ou também, aquilo que, como muitos gostam de dizer vulgarmente, ‘charlatanismo’). E nesta discussão, a representação é quase sempre solicitada: ‘Qual é a linhagem? Quem é o mestre? A formação?’, etc. Sendo que, o problema não são as perguntas, nunca, mas o tom com que são feitas. Como se aqueles que indagam isso fossem os fiscais ou donos de uma pretensa ‘verdade’ em Kung Fu. Mas, isso tudo não é tão simples assim, como estes querem que seja, no alto de suas convicções ou crenças. É um tema polêmico que requer mais do que o uso da palavra, de um certificado ou representação, enquanto território. Requer conhecimentos relacionais e profundos, o que grande parte daqueles que discutem não tem. Um exemplo de toda esta divergência são os intermináveis debates em torno do Wing Chun, comuns nos grupos de rede social: ‘É eficiente ou não é?’. Esta é uma questão sempre posta nos debates, onde a relatividade da questão, geralmente não é considerada – muitas vezes a circunstância ou a situação é mais determinante do que o ‘ser ou não ser’. E também, é bem comum algumas posturas imaturas, reducionistas ou deterministas, discursos de senso comum que geralmente afirmam: ‘Se não funciona em combate real, não é bom, não é puro ou não serve pra nada’. Como se um combate fosse algo determinado naturalmente, pelo simples fato de saber ou não saber. Ou seja: ‘é só saber o Wing Chun verdadeiro que a vitória está garantida’ (acreditem, já li isso). Mas não, a questão não é tão simples assim, e nem se reduz neste jogo de verdade ou mentira. Não há receita para um bolo experimental, pois ele depende da experiência e não daquilo que se pensa simplesmente. É claro que o conhecimento, a habilidade somam, porém, muitas vezes isso não é tudo aquilo que se diz. O fato é que, existe muito mais crença (que se transparece como convicção) do que realidade de conhecimento. Geralmente, o que se está sendo julgado é a aparência e não a essência, e na maioria dos casos, não pelo conhecimento, mas pela falta dele, ou seja, pela ignorância. Nisso, prepotência e tentativa de domínio territorial narrativo é o que marca estas discussões. No fundo, trata-se de uma ‘disputa narrativa’ pelo controle da palavra, da impressão e do estereótipo, onde ego e falta de sensibilidade geralmente dão o tom da discussão, quando que, na maioria dos casos, o que se discute é o estereótipo a aparência, a representação, e não a suposta ou pretendida ‘verdade’ ou a apresentação, muito menos a essência.

O caso Wing Chun


O Wing Chun é um sistema dentro do que chamamos popularmente de Kung Fu, que surgiu por volta de 1700 (entre final do século XVII e início do XVIII) no sul da China, no contexto de domínio da dinastia dos Manchus. As versões de sua origem variam tanto quanto a existência de seus estilos ou ‘modos’. Ou seja, existe uma boa variedade de estilos/modos de Wing Chun, dados pela transformação deste sistema através dos anos. O mais popular entre eles, todos sabem, é o estilo Ip Man, mas não é ele que determina o que é Wing Chun ou não, assim como, também não é o único parâmetro para uma possível definição do estilo. O GM Ip Man, como tantos outros grandes mestres do estilo, desenvolveu seu próprio caminho dentro do sistema, o que chamo de ‘modo’, e que também pode ser chamado de estilo. Como tantos, Ip Man somou conhecimentos oriundos de estilos ou modos diferentes de Wing Chun, desenvolvendo e caracterizando o seu, seja de forma consciente ou inconsciente. Uma destas características é o jeito mais ‘direto’ ou ‘simples’ de atuar, coisa que, em algumas fontes (estilos) das quais bebeu, eram mais complexas. Ou seja, o mestre Ip ‘mudou’ parte daquilo que aprendeu, adaptando ao seu ‘modo’. Nisso, problematizando o senso comum, aqui cabe uma pergunta: ‘O Wing Chun é simples ou foi simplificado?’.

Wing Chun, um sistema sincrético


A questão é que muitos praticantes, sifu’s e até mestres (e também entusiastas) não admitem o ‘sincretismo’ que é o sistema Wing Chun. Ou seja, a fusão, a mistura, a configuração diversa que pode caracterizar (e caracterizou) o sistema. Um sistema que é fruto de um sincretismo, e que com o passar do tempo, tornou-se mais diverso ainda. E aí temos como comprovação disso, os estilos ou modos de grandes mestres como Leung Jan, Yuen Chai Wan, Pan Nam, Yuen Kay Sam, entre outros, que deixaram seus legados na história do sistema.

Alguns destes praticantes acabam tendo posturas incoerentes com aquilo que estudam (ou pelo menos deveriam estudar), o Kung Fu que, além da movimentação físico-corporal, tem princípios, conceitos ou filosofias que o regem, agindo como fundamentalistas de um ‘puritanismo’ quase religioso que resiste a tudo o que consideram ‘impuro’, por ser simplesmente diferente daquilo que aprenderam ou foram orientados (alguns adestrados).

Com isso, não estou aqui desvalorizando a importância fundamental das linhagens, famílias ou estilos em Wing Chun ou Kung Fu, não é isso. Estou simplesmente propondo uma reflexão em torno disso, pois todo o conhecimento autêntico ou que venha de uma fonte ou raiz, tem relação direta ou indireta com as linhagens ou famílias Kung Fu - mas isso não impede que outros, outras escolas, estilos ou modos se formem, a partir desta gama de conteúdos e conhecimentos que o WT e/ou o KF nos oferece. Fechar os olhos (e a mente) para isso é que pode deixar o conhecimento (e o Kung Fu) deficientes, não o contrário (não desconsiderando a questão ‘superficial’ ou ‘fake’ que existe no mundo do Kung Fu e de todas as outras artes marciais – mas é preciso certa distinção neste caso). Ou seja, não representar, não ser filiado diretamente a uma linhagem ou família, não significa que o praticante ou a escola/associação não tenha bom conteúdo, fundamento, raiz, base (ou no mínimo referência) de uma ou mais linhagem ou estilo de WT ou KF. Quem pensa isso precisa rever seu entendimento (e quando age, sua postura), pois ninguém é dono do conhecimento, e nem tampouco, da verdade. A história não é algo morto, estacionado, parado no tempo, ela, como a cultura, é viva e se move, onde seus conteúdos e conhecimentos influenciam e caracterizam outros conhecimentos, de forma direta ou indireta. 





* Na(s) imagen(s), o GM Ip Man tocando o braço do GM Chu Chung Man, e ao fundo, rindo para o mestre Ip (à direita da imagem), o GM Tang Yik, no armazém Dai Dak Lan em Hong Kong, um ponto de encontro onde praticantes e sifu’s trocavam experiências e conhecimentos, influenciando-se mutuamente. (fonte: Internet e site da IWKA)























Representação não é o único caminho

A representação não é uma fonte de conhecimento. Pelo menos, não a única. Representar oficialmente algo, não significa que o representante seja habilidoso ou conhecedor o suficiente daquilo que se representa para desmerecer ou detratar os outros. Muitos detratores o fazem a partir de seus olhares reduzidos, através de impressões ou pré-conceitos vistos em vídeos ou imagens, sendo que, muito do conhecimento marcial só pode ser acessado mesmo na prática (presencialmente). Estes não conseguem perceber visualmente os elementos, modos ou posturas presentes em vídeos ‘demonstrativos’ (é óbvio que não são situações reais de rua, assim como o esporte marcial também não é) e acabam cometendo uma enorme gafe, julgando e detratando conhecimentos de que não são familiarizados. Nisso, o problema não é ‘não conhecer’, mas sim julgar, detratar, distorcer ou ofender algo bom e profundo sem saber, algo muito comum nestes grupos de KF, infelizmente. Isso demonstra que não muitos aprenderam as lições básicas e fundamentais do grande conhecimento milenar que é o Kung Fu, e que algumas escolas ou sifu’s deixam, muitas vezes, de ensinar que, antes de mais nada, é preciso saber, conhecer, ter discernimento e respeito, buscando o equilíbrio e não a agressividade nos gestos e palavras.

Nesta postura agressiva, o ego inflamado e a convicção fundamentalista acabam direcionando o olhar e a atitude, gerando preconceito e banalidade, o que atinge diretamente o diálogo e a riqueza que deve ser o conhecimento. E o Kung Fu, muitas vezes, acaba se tornando um lugar inóspito, cheio de preconceitos e atitudes desequilibradas. Sábios agem de forma totalmente diferente disso, onde, ao invés de julgar, procuram compreender e conhecer o objeto a ser analisado, antes de tecer qualquer comentário indevido ou sem fundamento. Dialogar não é atacar, ofender, é propor e problematizar, com respeito, referências e compreensão. Ao contrário disso, é guerra, e o Kung Fu, no auge de sua proatividade, é a ‘arte de lutar sem lutar’, uma alta habilidade que possui princípios éticos e valores de vida, que deveriam prezar pela paz ao invés da guerra.

Um fato comparativo

Em 2019 um irmão Kung Fu, estudante da AFWK produziu alguns pequenos vídeos demonstrativos para youtube, em que eu executo algumas formas e técnicas, a partir do nosso currículo e ‘modo’ de WT. Um destes vídeos que fora compartilhado em algumas comunidades ou grupos de Kung Fu na rede social, além de ter suas curtidas e elogios, teve algumas críticas, o que é bem normal. Porém, algumas destas críticas foram repletas de pré-conceitos, a partir de praticantes e entusiastas que, movidos pela cultura da disputa, algo muito comum no nosso tipo de sociedade, e pela falta de conhecimento frente ao nosso ‘modo’ e dos estilos que o compõe (pois não identificaram as referências, movimentos, técnicas, suas origens, presentes dentro da forma – algo que não é fácil, a não ser que se estude mais de um estilo e com a cabeça aberta para as diferenças e diversidade do sistema), acabaram por criar uma situação agressiva e reducionista, ao invés de um diálogo saudável, infelizmente. Em contrapartida, em um grupo internacional de WT, esta mesma forma (vídeo) foi debatida e elogiada por um grande estudioso e pesquisador do Kung Fu mundial, gerando boas impressões daquilo que nos propomos enquanto escola ou associação que, se tem consciência, é nova (5 anos de existência) e não fechada ao conhecimento (nosso currículo é aberto), temos muito o que aprender – e estamos a Caminho. Nisso, alguns elementos provindos de algumas linhagens, presentes na nossa forma (em questão), foram identificados por alguns membros daquele grupo, o que demonstra certo nível em seus conhecimentos. Ou seja, ao invés da ignorância e da agressividade, como no caso do grupo no Brasil, houve neste contato, o conhecimento e o diálogo, onde o conhecimento foi problematizado e compartilhado, e não reduzido. Limites todos possuímos, porém, nem todos sabem disso.

Tradição e poder no Kung Fu

Tradição é algo importante e que faz parte da trajetória humana. Porém, ela não pode engessar o conhecimento. Muitas vezes a tradição é usada como instrumento de poder para controle do conhecimento, sendo que, cultura e conhecimento são coisas vivas, que se movem e se transformam. Alguns conservadores, que podemos chamar de 'puristas', não compreendem este movimento (ou não querem admitir para manterem certos conhecimentos sob seu domínio ou controle). Isso acontece muito no Kung Fu. Uma linhagem, por exemplo, é suma importante para preservar e repassar conhecimentos, 'modos' de se fazer, porém, muitas vezes ela é utilizada ideologicamente ou politicamente, não na manutenção do conhecimento, mas do poder ou controle sobre ele. Em alguns casos, isso acaba limitando o próprio conhecimento e as possibilidades de aprimorá-lo. Então, é fundamental certo discernimento ao falarmos, lidarmos ou defendermos (assim como criticarmos) tais questões. Sendo que também falamos de relações humanas, e assim sendo, socioculturais, o que envolvem relações de poder.

Referente a isso, não basta fazer fotos ao lado de um sifu ou mestre para ser bom naquilo que se faz, onde muitas vezes, representar é parte desta relação de poder (e comercial). Por exemplo, muitas das escolas que se dizem Ip Man espalhadas pelo mundo, não são representantes deste mestre ou estilo, assim como, outras, nem carregam em si o estilo ou modo que aparentam ou dizem ser. Em suma, muito disso tudo é estereótipo, discurso e negócio. Porém, existem as escolas, associações, sifu’s ou praticantes íntegros, sinceros e honestos, que realmente fazem jus ao conhecimento, sendo eles representantes oficiais ou não de um mestre ou estilo (aqueles que estudam, buscam e experimentam conhecimentos, ensinando o que realmente aprenderam, e também, construindo conhecimentos junto aos seus alunos ou irmãos/ãs Kung Fu). Por isso, olhemos para a relatividade e subjetividade existentes nestas questões, e sejamos assim menos deterministas e figurativos. Se não é possível ser original, que pelo menos sejamos coerentes e autênticos, sob tudo, com nós mesmos...