terça-feira, 29 de maio de 2018

Sou taoista - em que sentido?!


Como muitos brasileiros e ocidentais, fui nascido e criado numa família de orientação cristã católica, dentro de uma cultura consumista e modo de produção capitalista. Um modo de vida e crença que divaga entre o conservadorismo (herança do coronelismo escravocrata e da ditadura militar) e o liberalismo (herança iluminista e da revolução burguesa). Enquanto forma de trabalho, somos (nosso modo de vida e sociedade) herdeiros do trabalho rural no campo, onde a necessidade de sobrevivência, em muitas situações, deu lugar à escravidão ou submissão ao coronelismo, e mais tarde, aos trâmites das chamadas ‘integrações’ dadas pelo advento das agroindústrias. Já na cidade, a herança veio da organização fabril, constituída após as Revoluções Industriais que espalharam pelo mundo uma concepção ‘desenvolvimentista’ de sociedade, baseada no lucro, individualismo, ‘livre’ concorrência e ‘livre’ mercado. Tudo isso, em algum sentido tem um fundo platônico (a partir do ‘idealismo platônico’), filosoficamente falando, inclusive, até as concepções ditas ‘progressistas’, que também caracterizaram a chamada ‘esquerda’ mundial, seja ela de cunho anarquista, socialista ou comunista, e que fizeram frente as ideologias liberais-burguesas e conservadoras. Nisso, entre concepções liberais, conservadores e socialistas, cresci e fui aprendendo, desenvolvendo minha percepção das coisas e minha personalidade (inconcluida). Sempre duvidei dos discursos de convencimento, antes mesmo de saber das ideologias que haviam por trás deles, antes mesmo de saber de retórica e filosofia. Talvez tenha sido por causa destas desconfianças, destes interesses, que me tornei estudante e professor de humanas e sociais (filosofia, história e sociologia) e de linguagem.

“Mergulho com o influxo e surjo com o refluxo, sigo o Tao da água e não lhe imponho minha visão egóica. É assim que eu me mantenho flutuando" (Chuang-Tzu)

Passados os anos, não cresci apenas exteriormente, pude crescer também interiormente. E foi neste crescimento, neste desenvolvimento, que tive contato com o taoismo. Foi a necessidade que me puxou para tal caminho. Estudando, fazendo contatos, experimentando pensamentos, filosofias, modos de vida e práticas socioculturais, foi que pude ter acesso a vários destes conhecimentos, entre eles, o taoismo. E de ‘cristão’ (o que nunca fui na prática religiosa),  acabei me tornando taoista. Taoismo enquanto filosofia, conhecimento, sabedoria, prática, postura, integração social, humana, cultural e espiritual-energética (com a natureza),  é este o sentido do taoismo ao qual hoje me dedico estudar, lecionar e praticar (viver). O que chamo de taoismo filosófico (e não necessariamente religioso). Nele, pratico alguns ‘rituais’, como um modo próprio de meditação, além da saudação concentrada em respeito e devoção à alguns símbolos (sejam culturais ou naturais), memórias e espíritos ou energias de antepassados e da natureza. Simples assim, sem pregador ou doutrinação. Nosso (meu) líder espiritual é a natureza, seu espírito (que também se manifesta como energia), a memória e espiritualidade dos grandes mestres e antepassados, que seguem vivas em nós, nos energizando e ensinando. Este é meu cultivo ‘espiritual’ (energético) na vida taoista que hoje levo ou busco (além da pratica do Chi Kung e do Kung Fu). 

"A grande virtude do Céu e da Terra chama-se vida" (I Ching, o Livro das Mutações)

Neste sentido, taoismo é um ‘estado de espírito’, uma forma de sentir, perceber, ver, integrar, atuar, ser e estar no mundo e na vida, tendo como principal referência a(s) natureza(s) e seu fluxo constante de vida. Nisso, não temos um deus pensado pelo homem ao seu modo, ou entidade divinizada, mas temos a natureza (mãe de todas as coisas), a criação e fluxo, o ‘espírito’ de tudo o que é vivo, uma energia que, se não sagrada, fundamental para nós. Nosso fundamento é o Tao, não nominado, não racionalizado, mas sentido e incorporado energeticamente e espiritualmente. Portando, ser taoista neste sentido, não é impor uma verdade absoluta que se acredite, mas apenas buscar o ‘equilíbrio’ necessário e fundamental para, respeitando, integrando e/ou no mínimo, se reaproximando da natureza e da vida, estar no ‘caminho’ (Tao), o caminho da virtude, onde não há morte ou fim, apenas transformação e o próprio caminho, onde tudo, inclusive a vida, se transforma e continua sendo, não um estado, nem uma verdade ou fim, mas um caminho...


Alguns elementos que caracterizam o Taoismo (a partir de grandes mestres):
·         Espiritualidade e Caminho
(...) “aprofundar-se no Caminho consciente que dará suporte à sua prática interior, e desenvolver a característica de um coração abrangente na relação com o mundo, o que sustentará sua prática exterior”.

(...) “profundidade diz respeito ao mergulho solitário que o indivíduo empreende na direção do seu interior” (...).

(mestre Wu Jyh Cherng, a partir da interpretação do ‘Tao te Ching’ de Lao Tse)


·         Pensamento, Conhecimento e Prática
“O pensamento ocidental está fixado no hiato entre o que é e o que deveria ser.”

“Fora da tradição ocidental, os taoistas da China antiga não viam nenhum hiato entre ser e dever ser. A ação correta era o que quer que derivasse de uma clara visão da situação. Eles não seguiam os moralistas – confucionistas, naquela época – que buscavam acorrentar os seres humanos a regras ou princípios. Para os taoistas, a vida boa é apenas a vida natural vivida com habilidade. Ela não tem nenhum propósito particular. Não tem nada a ver com a vontade e não consiste em tentar realizar nenhum ideal. Tudo o que fazemos pode ser feito de maneira mais certa ou menos certa, mas, se agimos certo, não é porque traduzimos nossas intenções em ações. É porque lidamos habilmente com o que quer que precise ser feito. A vida boa significa viver de acordo com nossas naturezas e circunstâncias. Não há nada que diga que ela deva ser a mesma para todo mundo ou que deva estar em conformidade com a ‘moralidade’.
                No pensamento taoista, a vida boa vem espontaneamente; mas espontaneidade está longe de ser simplesmente agir segundo os impulsos que nos ocorrem. Em tradições ocidentais como o romantismo, a espontaneidade está ligada à subjetividade. No taoismo, significa agir desapaixonadamente, baseado numa visão objetiva da situação presente. O homem comum não pode ver as coisas objetivamente porque sua mente está anuviada pela ansiedade de alcançar suas metas. Ver claramente significa não projetar nossas metas sobre o mundo; agir espontaneamente significa agir de acordo com as necessidades da situação. Os moralistas ocidentais perguntarão qual é o propósito de tal ação, mas, para os taoistas, a vida boa não tem propósito. É como nadar em um redemoinho, respondendo às correntes tal como vêm e vão. ‘Mergulho com o influxo e emerjo com o refluxo, sigo o Tao da água e não imponho a ela minha visão egóica. É assim que permaneço à tona’, diz o Chuang-Tzu.”

“O taoista relaxa o corpo, acalma a mente, afrouxa a pressão exercida por categorias tornadas habituais pelo nomear, libera a corrente de pensamentos para diferenciações e assimilações mais fluidas e, em vez de pesar escolhas, deixa que a inclinação espontaneamente encontre sua própria direção. (...) Ele não tem que tomar decisões baseadas em padrões de bom e mau, porque, admitindo-se apenas que iluminação seja melhor que ignorância, é auto-evidente que, entre inclinações espontâneas, a que prevalece numa situação de maior clareza da mente, outras coisas sendo iguais, será a melhor, ou seja, a que está de acordo com o Tao, o Caminho.” (A. C. Graham)

(Cachorros de Palha – John Gray)

"A rigidez e a flexibilidade também fazem parte do Ciclo da Vida e da Morte: ao longo da vida, a pessoa está sempre alternando sua maneira de se manifestar no mundo, usando palavras, pensamentos ou sentimentos ora rígidos, ora flexíveis, conforme circunstâncias que estiverem atuando no contexto. Desta forma, ela estará sempre direcionando coisas rígidas para a morte, entendida como a transformação traumática de uma circunstância, e as coisas flexíveis para a naturalidade da vida (...) E o próprio ser humano como um organismo vivo também passa por essa alternância: quando nasce, o bebê é flexível e maleável, mas conforme a pessoa se desenvolve na vida, adquire rigidez física, energética e mental, até finalmente morrer e seu corpo adquirir completa rigidez".

“Não se consegue colocar mais chá dentro de uma xícara cheia, da mesma forma que não se consegue ensinar algo para quem tem a mente e o coração cheios.”

(Lao Tse – comentários Wu Jyh Cherng)

·         Reflexões em torno do desapego e do vazio, da não-intenção e da não-ação
“Uma vez recebida esta forma corporal fixa, o homem se apega a ela, à espera do fim. Às vezes chocando-se com as coisas, às vezes curvando-se diante delas. (...) Não é ele patético? Transpirando e labutando até o fim de seus dias sem jamais ver sua própria realização, exaurindo-se completamente sem saber jamais onde buscar o repouso (...) Seu corpo definha, seguido pela sua mente.”

“Desta bagagem de valores convencionais é que o homem deve se descartar, primeiro que tudo, antes de poder ser livre.”

"Não sejas um personificador da fama; não sejas um silo de esquemas; (...) ; não sejas o proprietário da sabedoria. Incorpora o mais plenamente que possas o que não tem fim e perambula por onde não há sendas. Aferra-te a tudo o que recebeste do Céu, mas não creias que possuis alguma coisa. Sê vazio, eis tudo." (Chuang Tzu)

“Agir com a não-intenção não significa deixar de agir ou agir sem objetivo, mas atuar efetivamente no mundo através da orientação que nasce diretamente da Consciência Universal, sem considerar as intenções do ego.”

(mestre Wu Jyh Cherng, a partir da interpretação do ‘Tao te Ching’ de Lao Tse)

·         Consciência presencial e do coletivo
(...) "uma criação no tempo presente, ainda que sua autoria seja assumida por uma única pessoa, será sempre resultado do trabalho de um considerável número de criações anteriores, sejam obras, conceitos ou o próprio exercício da inteligência, que produziram as condições necessárias para serem criados os objetos ou a ideias supostamente individuais, do momento. (...) quem conhece a fonte da energia vital e se torna uma pessoa coletiva porque se une à raiz de todas as manifestações, terá em si mesma, como uma pessoa de consciência coletiva, o poder da criação".
"Ladrões e roubos estão referidos à consciência e à energia da pessoa, que são roubados pela natureza ou por outros seres através do esforço constante e excessivo que ela faz para atender aos interesses do seu ego".
(Wu Jyh Cherng - mestre taoista comentando a partir do 'Tao Te Ching' de Lao Tse)

    *     *     *
“Trinta raios convergem para o meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.
Molda-se o barro para fazer um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.
Fazem-se portas e janelas para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.
Por isso, a vantagem do que está lá
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está.”
(Lao Tsé, Tao Te Ching)



segunda-feira, 14 de maio de 2018

Carta Aberta de Esclarecimento - referente às supostas 'lutas' envolvendo o Wing Chun e o Tai Chi Chuan


Como estudante/praticante, pesquisador e professor da AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu), venho manifestar nossa posição (contrária) frente ao uso de alguns ‘conteúdos’ (vídeos e textos) publicados na internet (you tube, redes sociais, alguns sites ou blogs) que mostram supostos ‘lutadores’ de Wing Chun (e Tai Chi Chuan) ‘lutando’ contra lutadores de outros estilos de ‘artes marciais’, como o MMA, Boxe, etc., e dizer que estes ‘conteúdos’, na maioria dos casos, são sensacionalistas e distorcem o real sentido e fundamento do sistema Wing Chun e do Tai Chi. Conteúdos que são usados de forma ideológica ou reducionista, e que distorcem e detratam artes que são muito mais profundas do que aparecem nestes vídeos, e do que as ‘análises’ de seus pretensos comentaristas dizem.

A maioria destes conteúdos são produzidos por pessoas em busca de notoriedade, dentro de uma cultura egóica que incentiva a fama ou popularidade à qualquer custo. Conteúdos que geram polêmicas e debates em torno destas ‘lutas’, muitas vezes, detratando um ‘estilo’ de ‘arte marcial’, e não trazendo sua real forma de ser.

Vivemos numa sociedade consumista, onde valores como o ‘individualismo’ são enaltecidos pela propaganda publicitária, geralmente de forma indireta, e passam a ser reproduzidos por parte significativa da população. Nisso, temos alguns produtores destes vídeos, praticantes ou não de ‘arte marcial’, que o fazem no intuito de serem notados e visualizados.

Tanto o Wing Chun como o Tai Chi, são sistemas que não se reduzem a uma luta, muito pelo contrário, são bem mais profundos, como no caso do WT, que foi desenvolvido como um ‘estilo defensivo’ (‘defesa-pessoal’ ou ‘auto-defesa’) de Kung Fu, e não como uma modalidade esportiva ou ‘luta’. Portanto, qualquer conteúdo que o apresente como uma ‘luta’ submetida a regras ou exibicionismos espetaculares (produções visuais e midiáticas), não representam o sistema Wing Chun na sua essência, mas é apenas um estereótipo dele. A princípio, dentro de sua constituição filosófica, o Wing Chun (como muitos outros estilos de Kung Fu), não é instrumento de disputa, exibicionismo e ego – isto também serve ao Tai Chi Chuan.

Dito isso, a AFWK declara não possuir relação alguma com estes ‘conteúdos’ ou materiais produzidos e publicados, frutos de sensacionalismos e distorções de pessoas que buscam se autopromover acima de algo que, ou não conhecem bem, ou usam irresponsavelmente. 

Obrigado!

Att.

Herman Silvani e AFWK.