quinta-feira, 6 de junho de 2019

Kung Fu também é cultura! E, portanto, se transforma...


“O mundo cultural é marcado por tradições e costumes socialmente construídos e com os quais os homens se relacionam desde o seu nascimento. A língua, os comportamentos, os padrões de beleza, as preferências por determinados alimentos, entre outras questões, são definidas pelas práticas culturais nas quais cada pessoa está inserida. Apesar de parecerem manifestações espontâneas, a forma como cada grupo recepciona seus convidados e como reagem ao nascimento e à morte são expressões definidas culturalmente. A cultura, enfim, norteia as construções da vida social, econômica e política.

Apesar de a cultura interferir na formação humana e orientar o reconhecimento dos indivíduos como seres sociais e como pessoas, é importante ter em vista que, ainda assim, ela não cria padrões uniformes. Ou seja, cada pessoa, apesar de influenciada culturalmente, tem a sua individualidade e lida com os aspectos da vida cultural de formas distintas.

Da mesma maneira que a cultura modifica as pessoas, estas também modificam a cultura. Portanto, cultura é algo móvel e plural, uma construção social, e não algo estático e eternamente definido como muitos acreditam.” (FURTADO, Elizabeth B. – com interferência textual minha)

“A cultura é duradoura embora os indivíduos que compõem um determinado grupo desapareçam. No entanto, a cultura também se modifica conforme mudam as normas e os entendimentos.” (BRAIDWOOOD, Robert J.)

A partir disso, podemos refletir as transformações e/ou mudanças no Kung Fu, tido como um aparato de conhecimentos integrados que, quando reunidos e estudados a partir de certos critérios e tradições, formam um ‘estilo’. Entre os vários estilos de Kung Fu, temos a Serpente, a Garça, o Tigre, o Louva-Deus, a Garra de Águia, o Hungar, o Wing Chun, etc. Nisso, dentro do mesmo ‘estilo’, podem existir diversas e diferentes escolas, associações, linhagens e ‘modos’, como é o caso o Wing Chun, por exemplo, onde cada mestre tratou de adaptar o ‘estilo’ ao seu ‘modo’ de conceber, estudar/praticar e transmitir o conhecimento. Portanto, falo aqui de uma diversidade de modos deste mesmo estilo de Kung Fu, o que enriquece esta arte e/ou conhecimento milenar, e num âmbito maior, enriquece esta cultura.

Volta e meia, alguém, vendo alguns dos meus vídeos demonstrativos no youtube, ou lendo sobre nossa associação/escola ou modo de WT (a que chamamos de Wing Tjun), pergunta curioso ou com certo receio, qual é a nossa linhagem ou de onde vem nosso estilo (o que chamo de modo). Muitos estranham nosso modo não ser filiado ou imitante ao modo Ip Man, o mais famoso e popularizado modo de Wing Chun do mundo. Talvez alguns estranhem nossas diferenças visíveis a este modo, por pouco conhecerem outros, já que, alguns aspectos do que fazemos no nosso WT vem do modo Ip Man. Os mais conhecedores do assunto percebem no nosso modo a integração entre alguns modos diferentes de Wing Chun, e também a integração até com estilos diferentes entre si de Kung Fu, e com as chamadas ‘artes internas’, que possuímos. Não temos uma linhagem específica definida, pois não somos representantes nem filiados a uma única escola, modo, estilo, mestre ou tradição. A necessidade nos fez integrar conhecimentos a partir daquilo que chamo de essência, pois nossa integração se faz entre artes ou conhecimentos parentais ou irmãos, em que eles, mesmo diferentes, sob tudo nos seus aspectos manifestados externamente, possuem a mesma essência. E é nisso, na essência, que estes estilos e modos diferentes se unem, se fundem ou integram para algo maior, o conhecimento, o Kung Fu. É possível e cultural que seja assim. Um processo que acontece com o tempo, por causa da necessidade, e não por uma simples escolha ou preferência.

Assim como é com a cultura, que se transforma, se adapta, se integra, se funde, se move, também é o Kung Fu, sendo ele, também uma cultura, ou parte de uma. Então, não deveria ser estranho que estas transformações, estas adaptações, fusões, integrações, modificações, movimentações que sofrem os estilos, aconteçam. Como toda a cultura, o Kung Fu não é algo imutável. E é, justamente, graças a estas mutações, que ele sobrevive e gera novas possibilidades. Nisso, é fato a importância dos estilos, das linhagens. Mas também, é fato a importância dos modos, assim como, da diversidade ou diferenças entre eles. Isso tudo é conhecimento e riqueza cultural. É claro que no vácuo destas possibilidades, sempre aparecem as ‘invenções’ e  ‘fraudes’, sejam por sonhadores, reprodutores do imaginário romantizado do Kung Fu (pelo cinema ou outro mecanismo de influência), ou pelos oportunistas aproveitadores que, se apropriam de discursos, imagens e simulações de conhecimentos para praticarem o comércio, e assim, ganharem seu soldo. Estas ‘invenções’, muitas vezes são confundidas com as adaptações e desenvolvimentos ou criações elaboradas a partir dos conhecimentos já existentes. E é isso que são os modos na sua diversidade, e não meras ‘invenções’ ou fraudes, como muitos dizem por aí sem saber. Julgar é sempre mais fácil do que saber ou conhecer, e isso explica muito das confusões.

Em suma, num conceito ou concepção ampliada ou mais profunda, o Kung Fu sendo um conhecimento, uma arte, uma cultura, um modo de perceber e se posicionar no mundo, é suscetível a interferências, influências, incorporações, integrações, fusões, portanto, transformações. Por isso, a pretensa ‘pureza’ de um ‘modo’ ou estilo, é relativa, ou talvez nem exista, sendo o Kung Fu um misto de conhecimentos, técnicas, valores. E é justamente isso que o torna especial. Portanto, tenhamos cuidado ao tratar dele, pois muitos reducionismos e determinismos distorcem ‘modos’ que são bons, íntegros, dignos, sinceros, confundindo-os com meras ‘invenções’ ou charlatanismo, como muitos gostam de falar neste meio. É preciso saber diferenciar uma coisa de outra, para não cair no pré-conceito do julgamento infundado e mesquinho, o que, infelizmente, acontece muito por aí, e ter a consciência que, como uma cultura, o Kung Fu é algo vivo, que varia e se transforma, e o que deve definir isso, não é a vontade pessoal nem a crença ou o idealismo, mas sim, a necessidade, pois, como diria o filósofo alemão Nietzsche: “Todo o idealismo perante a necessidade é um engano”. E é isso o que seguimos: a necessidade, a naturalidade. E assim fluímos...