terça-feira, 31 de dezembro de 2019

AFWK, 5 anos!

Em janeiro de 2020 a AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu) completa 5 anos de existência

Iniciei minha trajetória no Kung Fu muito jovem, em meados dos anos de 1990, no estilo que chamávamos de Shaolin, com um professor da cidade (conhecido como Zeu). Naquela época pratiquei quase que diariamente durante bons 3 anos. Tive 3 professores neste tempo. Dois deles foram fundamentais para a definição do estilo que pratico e leciono hoje. Com um deles (chamado Marcelo) aprendi 2 níveis do estilo Ip Man, Siu Nim Tao e Chum Kiu, e aspectos da Biu Jee, Muk Yan Chong e Bart Chan Dao. Com outro (chamado Arthur), que estudara Kung Fu no sudeste asiático (Vietnam e Indonésia com passagens por Taiwan), elementos do Wing Chun, Weng Chun Kuen, Bai He (Garça Branca), Emei Serpente e Chi Kung, também algo de Tai Chi e de estilos chamados Chu Kar e I-Chuan (deste professor veio minha principal base em Kung Fu) – Obs.: não lembro dos sobrenomes destes professores. Depois segui praticando com amigos colegas, durante mais algum tempo. Perdi o contato com meus antigos professores, e entre nós colegas, cada um foi tomando seu rumo. Durante mais ou menos 17 anos pratiquei sem orientação de um professor, de modo informal. Mas nunca abandonei o Kung Fu totalmente, uma antiga paixão que começou na pré-adolescência com os filmes do Bruce Lee e revistas de artes marciais.

Passados os anos, em 2011 retomei as práticas com mais ênfase. Depois de todos estes anos encontrei um praticante na minha cidade que dava aulas de Wing Chun (estilo Ip Man) e Shaolin, chamado Mauro Flores. Em 2012 retomei as práticas/treinos oficialmente sob sua instrução. Foi um tempo de muitos treinos, onde aos poucos retomei alguns de meus antigos conhecimentos. Em 2014 passei a substituir este professor em algumas aulas. Mauro desistiu de dar aulas e naturalmente às assumi, por pedido dos próprios alunos. Neste meio tempo também estudei Chi Kung com uma praticante/professora de nome Rose. Em setembro deste mesmo ano participei de um seminário especial de Wing Tjun com ênfase no aspecto ‘interno’ do sistema, ministrado pelo sifu Sergio Pascal Iadarola, grande estudioso e conhecedor do WT e das artes internas, fundador da IWKA, uma das grandes escolas de WT mundiais, que no período tinha filial em Porto Alegre/RS. Lá fiz contato e amizade com Daniel Jaeger, o então sihing e representante chefe da IWKA no Brasil, com quem fiz mais algumas aulas e promovi um seminário com nosso grupo aqui em Chapecó/SC. Fui verbalmente admitido na IWKA, porém, com a saída do Daniel daquela associação, a formalização minha acabou não se efetivando. Inspirado por esta boa experiência, foi então que, no início de 2015 fundei a AFWK, a partir da fusão destes conhecimentos que adquiri durante todo este tempo. Desenvolvi um currículo próprio da associação onde juntei meus conhecimentos para fundamentar o que chamo de Fluir Kung Fu (Wing Tjun e Chi Kung).  

O contato com a IWKA e sifu Sergio foi fundamental para que eu buscasse as raízes dos meus conhecimentos em Kung Fu, e pudesse a partir disso desenvolver nosso próprio currículo e associação/escola, integrando conhecimentos, ao invés de fragmentá-los. Nisso, a AFWK não é um estilo novo, e nada do que fazemos foi inventado, apenas integrado e adaptado a nossa realidade, respeitando a necessidade e o próprio conhecimento.

De lá para cá passaram-se 5 anos. Tive muitos alunos e alunas. De estudantes colegiais e universitários a psicólogos, professores de universidade a juízes, operários, policiais, advogados e praticantes de outros estilos de artes marciais, etc. Neste tempo fui convidado por pessoas e instituições para orientar oficinas, cursos e práticas de Chi Kung e ‘auto-defesa’, a partir do sistema Wing Tjun, em festivais de arte e cultura, universidades, escolas, cursos de terapias alternativas, etc. Também ministrei aulas e oficinas sobre filosofia taoista, cultura e história da China.

Comecei lecionando Kung Fu numa das maiores academias da cidade. Em 2018 passamos a ocupar o Espaço Vida, a convite do reconhecido e mais antigo professor de Tai Chi Chuan (estilo Liu Pai Lin) da cidade, renomado acupunturista e psicólogo, o sifu Carlos Artur Schacker, que hoje também é meu professor de Tai Chi, além de um bom amigo. Também fui convidado para dar aulas de Chi Kung na Reserva do Ser, um espaço e hostel alternativo de permacultura, e no Caminhos de Lavanda, um belo espaço de Reiki e também permacultura. Aprovei um projeto numa das escolas em quem leciono filosofia e iniciei com aulas de Chi Kung e ‘auto-defesa’ a partir do sistema Wing Tjun para as crianças e adolescentes.

Isso tudo me ensinou e me ensina muito, e um tanto deste muito, repassei (e repasso) aos meus alunos/as. Mais recentemente fui convidado por um renomado sifu, internacionalmente reconhecido, para representar sua associação/escola de Wing Tjun e artes internas aqui no Brasil (uma honra para mim), porém, as condições (pessoais e de conjuntura nacional-internacional) ainda não permitem. Mas seguimos com nossa associação e nossa arte, nosso ‘modo’ Fluir de Wing Tjun e Chi Kung, chegando em 2020 com muita energia para cultivar, muito conhecimento para estudar, experimentar, experienciar, aprender, viver.

Nisso agradeço e agradecemos todos/as os que neste tempo fizeram parte deste Caminho, e os/as que atualmente se integram à AFWK. Aos nossos mestres e mestras, do passado e do presente, sejam eles raízes, bases ou inspirações para o nosso Kung Fu. A AFWK é uma associação ou escola independente (não representamos nenhuma linhagem, mestre ou escola em específico), de base filosófica (conceitual) e espiritual Taoista, que não tem grandes pretensões (sob tudo comercial), que busca equilíbrio e cultiva conhecimentos, e que traça seu Caminho, conforme a necessidade e sinceridade com aquilo que estuda e sabe. Somos uma associação jovem e temos muito o que aprender ainda. Convictos de que o conhecimento se move e se transforma, sempre seremos eternos estudantes seguindo e integrando o Caminho...








domingo, 29 de dezembro de 2019

Representação no Kung Fu


“Mais importante do que o que você representa, é o que você é.”

Existe mais de uma forma de representar algo. Algumas são diretas, outras, indiretas, mas ambas podem representar, ou de alguma forma, representam. Dentro de uma mesma representação, aspectos, elementos ou características podem variar, tanto na sua forma de representar quanto na interpretação do que é representado (contando que a passagem do tempo altera as coisas), por isso não é tão fácil chegar até a essência, ou pelo menos, percebê-la (conhecê-la é mais difícil ainda).

Diferente da ‘apresentação’, a representação é aquilo que se mostra ‘não essencial’, ou seja, aquilo que não chega até a essência (interna / invisível) necessariamente, mas se mostra em forma de matéria (externa / visível) – material, materialmente.

Vivemos numa sociedade de representações, onde muito do que fazemos (externamente) é ou tem relação com a representação, e onde representar é parte da cultura, sendo algo importante para esta sociedade. Nisso, vivemos representando algo, mais do que apresentando. Por isso, “mais importante do que o que você representa, é o que você é (essência) – e o que você faz com aquilo que representa”.




quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Wing Chun, um rico sistema muitas vezes empobrecido...

* Dai Dak Lan, local onde alguns mestres de linhagens distintas se encontravam para troca de conhecimentos

O Wing Chun é um sistema dentro daquilo que se conhece popularmente por Kung Fu, pois é tido como parte deste 'todo' (conhecimento e cultura). É uma arte/conhecimento que, como tantas, varia no tempo e espaço. São várias linhagens, estilos e modos de se conceber e estudar/praticar o WT (abreviação). Alguns mais específicos que outros. O estilo ou modo mais popular do mundo é o que foi desenvolvido pelo GM Ip Man, um sincretismo (fusão) de outros modos provindos dos mestres e praticantes com quem se relacionou, estudou e aprendeu. O estilo Ip Man ficou muito popular, além da fama de sua eficiência e simplicidade, pelo seu aluno mais famoso, o ator, dançarino e artista marcial Bruce Lee. A popularidade aumentou nos últimos anos devido aos filmes e séries onde o mestre Ip é personagem protagonista, e por causa da internet. Mas, além do estilo ou modo Ip Man, tantos outros, tão bons quanto ele, existem mundo afora. Alguns seguem tradições e linhagens específicas, enquanto outros, como o próprio Ip Man fez e outros grandes mestres fizeram (e ainda fazem), são frutos deste sincretismo, desta fusão entre conhecimentos 'irmãos' ou parentes. Portanto, a questão não é simplesmente aquilo que você representa ou segue enquanto conhecimento, mas aquilo que você estuda, pratica, vivencia e, principalmente, aquilo que você faz com estes conhecimentos.
Neste mundo muitas vezes conflituoso, onde ego, vaidade, território e controle são comuns, alguns praticantes tentam impor para outros suas crenças e realidades, não respeitando as diferenças e a variedade das fontes, dos fundamentos, dos modos de se aprender, herdar e transmitir conhecimentos. As fontes, bases e/ou raízes são diversas e, como já foi dito aqui, variam no tempo e espaço, tanto que, aquilo que dizem ser 'puro', geralmente sofreu alterações ao longo do tempo. Isso se comprova ao percebermos as diferenças existentes entre sifu's que vieram de uma mesma linhagem ou escola e seus diferentes modos existentes por aí (é isso o que chamo de 'modo'). Assim, podemos ter mais de um modo dentro de um mesmo estilo. Exemplo: modo Wong Shun Leug e modo Leung Ting, do estilo Ip Man. Nisso, o que configura o estilo é a 'essência' ou os fundamentos básicos fundamentais deste estilo.
Características próprias nos modos ou estilos, quando percebidas por aqueles que estudam o sistema, não só o seu modo, mas outros modos ou estilos, estão presentes nos movimentos e técnicas, podendo ser assim observáveis ou perceptíveis. Mas, quem tem conhecimento suficiente para perceber estas diferenças? Aquele que estuda, trabalha sua sensibilidade e percepção. Aquele que observa mais do que fala. Aquele que é aberto às diferenças e à história. Não é requisito ou obrigação saber distinguir, localizar estas diferenças, estas variações, estes estilos ou modos. Mas é de bom senso e coerência respeitar, e quando não souber, não julgar, pois, se não se sabe, não se detrata. Isso é premissa básica para qualquer aprendizagem. E não é porque você pertence a uma sigla, uma linhagem, um estilo ou modo 'único' e específico, nem porque pousa em fotografia ou representa esta ou aquela escola ou mestre, que você é melhor ou superior aos outros, nem que seu estilo seja, e muito menos que o seu conhecimento seja maior, mais digno ou coerente. Isso tudo é muito relativo.
Cada modo pode ter seu próprio fundamento, sua própria intenção e interpretação do conhecimento. E foi isso o que grandes mestres fizeram ao longo do tempo, tanto que, seus alunos que se tornaram sifu's, herdaram e transmitiram coisas diferentes. Em suma, a gama de possibilidades é imensa, e isso é o que enriquece o Wing Chun. Respeito às diferenças e sinceridade com o que se faz é o básico. Nisso, o WT, um rico sistema, muitas vezes é empobrecido por aqueles que falam em nome de uma suposta pureza ou verdade, mas que é a sua, ou da sua escola ou crença. A realidade, a história, é algo mais dinâmico e complexo do que este determinismo reducionista.
Todo respeito e consideração às linhagens, famílias, escolas, grandes mestres, mesmo porque os conhecimentos vem disso. Porém, isso não significa que deva ser uma ditadura ou um fundamentalismo religioso, como tantos por aí fazem ser. Perceber, ver e reconhecer a diferença, a diversidade ou variação, refina o olhar e abre maiores possibilidades de compreensão e conhecimentos. Ao contrário, limita.



quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Ignorância e distorções no Kung Fu

Conheça e compreenda mais, para não distorcer e praticar o pré-conceito

Não é a primeira, e acredito que nem será a última vez. Volta e meia alguém aparece questionando nosso Kung Fu, nosso ‘modo’ de Wing Tjun, por talvez ser estranho ou diferente aos seus olhos, sem ao menos buscar conhecer nossa associação, currículo ou ‘modo’. Agem a partir de certos preconceitos, certos vícios mesquinhos de competição ou ego que contaminam a internet, a cultura, a sociedade. Geralmente são pessoas de orientação conservadora ou intolerantes com o diferente. Certa concepção de ‘purismo’ inculcada em suas cabeças fazem com que julguem negativamente e antecipadamente (pré-conceito) aquilo que não conhecem, que nunca testaram, e antes mesmo de compreender, sentenciam. Isso demonstra certa imaturidade ou desequilíbrio, coisa que o Kung Fu ou as artes marciais como um todo deveriam dar conta. Nos discursos de algumas academias por aí, equilíbrio, respeito, honra, etc., são palavras comuns, porém, na prática, muitas vezes, não é bem assim que acontece, infelizmente.

Em todas as nossas publicações, seja aqui no blog, na pág. do facebook, ou em qualquer outra mídia, sempre deixamos claro que nossa associação ou escola, nosso ‘modo’, é fruto de um sincretismo, ou seja, de uma fusão de conhecimentos diferentes, porém, que dialogam entre si e se encontram na ‘essência’. Alguns acreditam que muita referência confunde. Sim, pode confundir, mas também pode aprimorar, ampliar, aprofundar. Tudo vai depender de como esta fusão acontece e como se trabalham os elementos de cada estilo dentro de um ‘modo’ ou escola. Por isso, a questão é relativa, e por isso, deve-se primar pela essência da arte, do conhecimento, e não pelas aparências, estereótipos ou discursos (que em grande parte são publicitários). É ali que está a plena condição para que uma prática seja consistente.

Atitudes mesquinhas como a de um praticante brasileiro, dias atrás, que, não conhecendo nosso ‘modo’, nossa associação, e por mais declarado que esteja nas nossas publicações a questão das nossas raízes, bases, influências, inspirações ou referências, o sujeito fez contato com um praticante estrangeiro de um dos estilos de que temos base e influência (pois, estudei com um professor que, por sua vez, estudou o estilo em questão, portanto, aprendi elementos deste estilo, que fazem parte do nosso currículo) dizendo que usamos a imagem do mestre daquela escola como se fosse o nosso mestre, deixando a entender que somos filiados ou representantes daquela linhagem ou escola no Brasil, o que não é verdade.

A AFWK é uma associação ‘independente’, que não possui vínculos diretos com nenhuma outra associação, escola ou linhagem. As imagens de alguns mestres que vinculamos a nossa escola foram feitas em momentos de homenagens, nas cerimônias do chá e momentos de estudos, em honra as suas memórias e conhecimentos deixados para o mundo do Kung Fu, já que são imagens públicas. Outras imagens são de mestres de que possuímos referências ou bases, daqueles que, direta ou indiretamente, tive contato e adquiri ou absorvi certos conhecimentos (teóricos e práticos). E isso tudo também está declarado nas nossas publicações. Reiterando:

Alguns mestres que já foram citados ‘como inspirações e influências’ da AFWK nos eventos de estudos e cerimoniais do chá – os quais não possuímos vínculos diretos: Leung Jan, Tang Suen, Wang Xiang Zhai, Ngo Si Quy (entre outros).

Mestres que são citados ‘como bases e referências’ da AFWK – os quais, de alguma forma recebemos ou herdamos alguns conhecimentos (sejam eles práticos ou teóricos), mas não somos filiados ou representamos suas linhagens: Yuen Chai Wan, Kwee King Yang, Ip Man (‘modos’ Wong Shun Leung e Leung Ting), Liu Pai Lin, Wu Jyh Cherng e Sergio Iadarola.

Nosso ‘modo’ (organizado a partir de currículo próprio), possui conteúdos provindos destes mestres, gostem alguns intrigueiros ou não. Não temos uma linha do tempo exata para esboçar aqui, mas o professor da AFWK Herman Silvani, nos anos 90, estudou com um praticante que foi seu professor e que, por sua vez, estudara Kung Fu no sudeste asiático, no Vietnam, Indonésia e passagens por Taiwan, de onde vieram os elementos dos estilos Yuen Chai Wan e Kwee King Yang, além das artes internas do Chi Kung e Tai Chi, estilos Bai He (Garça Branca) e Chu Kar. Estudou com outro professor o estilo Ip Man a partir dos ‘modos’ Wong Shun Leung e Leung Ting (Siu Nin Tao, Chum Kiu e elementos da Biu Tze, Mook Yan Chong e Bart Chan Dao). Mais recentemente Participou de um seminário da IWKA, onde teve orientações diretas com o sifu Sergio Iadarola, seguindo estudando com o então representante da IWKA no Brasil por algumas vezes. Antes disso, também teve aulas com um professor de Wing Chun Ip Man e Shaolin, na sua retomada oficial do estudo do Kung Fu nos anos 2000, quando também estudou Chi Kung com uma professora. Atualmente sifu Herman é estudante/praticante de Tai Chi Chuan estilo Pai Lin com o sifu, acupunturista e psicólogo Carlos Artur Schacker (que foi aluno de um discípulo direto do GM Liu Pai Lin) no Espaço Vida, local onde, atualmente, leciona Chi Kung e Wing Tjun.

Em suma, o Kung Fu é um campo amplo de conhecimentos e possibilidades, limitado por alguns que, prepotentes e mesquinhos, o querem como um território cercado. Geralmente estes vivem de discursos e estereótipos. Talvez se se preocupassem mais com aquilo que sabem (ou acham que sabem) e fazem, ao invés de ficarem apontando o dedo e esparramando seus desequilíbrios por aí, o Kung Fu no Brasil estaria em melhores condições.

Todo nosso respeito às linhagens, mestres e seus conhecimentos, graças a eles é que hoje podemos praticar e viver o Kung Fu. Ser fusão, sincretismo, não significa não ter bases ou raízes, muito menos desrespeitar a história e o conhecimento – talvez seja o oposto disso, sendo que, o próprio Wing Chun é fruto de um sincretismo, assim como são grande parte das escolas por aí. Alguns admitem, compreendem esta complexidade. Outros, ignoram, pela não compreensão ou pela arrogância. Enfim, seguimos conforme nossa necessidade, fluindo no Caminho...

"Não sejas um personificador da fama; não sejas um silo de esquemas; (...) ; não sejas o proprietário da sabedoria. Incorpora o mais plenamente que possas o que não tem fim e perambula por onde não há sendas. Aferra-te a tudo o que recebeste do Céu, mas não creias que possuis alguma coisa. Sê vazio, eis tudo." (Chuang Tzu)

* Quem desejar conhecer nossa associação/escola, nosso ‘modo’ de Wing Tjun, trocar experiências ou conhecimentos, estamos de portas abertas para recebê-los.


domingo, 27 de outubro de 2019

Reflexão em torno dos excessos


A morte de um instrutor de arte marcial (Krav Magá) na minha cidade, homem de meia idade, me leva para uma antiga reflexão e discussão no meio dito ‘marcial’ – e na vida cotidiana como um todo: ‘Esforço físico - em excesso - faz bem ou não para a saúde?’

Pratico, estudo ou treino Wing Tjun (sistema defensivo de Kung Fu) e Chi Kung faz muitos anos, de uma forma ou de outra, diariamente. Ou seja, não necessariamente a partir do movimento físico com técnica marcial empregada. Por ser taoista (filosoficamente e espiritualmente falando), tendo nossa escola/associação base neste conhecimento ou filosofia oriental milenar, busco sempre o ‘equilíbrio’, a ‘naturalidade’ (mas confesso que nem sempre consigo), tanto na prática quanto na vida, e nunca a superficialidade ou o ‘excesso’, pois evitar os excessos é evitar o desequilíbrio, seja ele físico, mental ou espiritual/energético. E é disso que falo: ‘energia’ (energia interna e não força externa). * Conste aqui que, taoismo não se reduz a uma 'religião' como muitos e o senso comum dizem ou acreditam. Cito o taoismo enquanto um grande e profundo conhecimento, uma filosofia, uma prática de vida milenar, nativa e oriental, que além do fator 'espiritual', possui o fator 'científico' (praxis).

No taoismo temos um conceito fundamental, que é o de ‘energia vital’ ou ‘sopro vital’, o Chi (também Qi - no Japão Ki e na Índia Prana). É esta energia que fornece vida para os seres animados (animais e plantas), sendo a morte física, o esgotamento do Chi nos corpos. É como uma bateria que alimenta a vida em nós. Para a manutenção do Chi, precisamos manter certas práticas e cultivos cotidianos. Entre eles, uma alimentação que se busque saudável e equilibrada, uma mente clara, flexível e também equilibrada, e um corpo também flexível e equilibrado. Isso garantirá uma espiritualidade equilibrada (ideia de ‘todo’ ou ‘unidade’), e assim, uma boa energia para equilibrar também a existência, a vida. Mente, corpo e energia integrados nesta busca por equilíbrio, para nós é o que garante uma vida mais plena e saudável (nos seus vários âmbitos). E isso, na prática ou vida ‘marcial’, não é diferente.

Excessos de músculos ou uma ‘aparência’ saudável ou atlética, não é sinônimo de saúde, boa energia, ou de energia e vida equilibradas. Nisso, lembrei de uma obra intitulada ‘Esporte mata!’, do médico José Roiz, onde ele anota que “muito dos exercícios praticados são desnecessários porque os realizamos espontaneamente em nossas atividades cotidianas”. * De forma alguma estou defendendo a ideia de que não se deva praticar esportes, ou que todo o esporte ou atividade física é maléfica à saúde (para uma melhor compreensão do que falo, indico ler o livro, constando que ele é uma perspectiva, e não uma 'verdade absoluta', como quase tudo). 

Além do corpo físico, daquilo que é externo, temos a mente e a própria energia que sustenta este corpo, ou seja, aquilo que é interno, que ninguém vê, mas está aqui. E esta integração equilibrada entre mente, corpo e energia, também chamamos de ‘espírito’. Quando mente e corpo, ao invés de estarem em harmonia, integrados, equilibrados, estão em desarmonia, desintegrados ou desequilibrados, é sinal de que nossa energia vital, o Chi, está fraca. Diferente do que dizem alguns cientistas médicos ocidentais e o discurso sobre a ‘saúde perfeita’, proferido ou reproduzido por alguns educadores físicos, atletas, e pela publicidade ou ideologia do ‘mercado do corpo’, discursos que fazem encher academias, simplesmente praticar esporte ou se empenhar em esforços físicos, não garante boa saúde. Ou seja, a partir do nosso viés filosófico, a atividade física não garante o equilíbrio necessário para que esta saúde seja real ou plena. Ao contrário, muitas vezes, o esforço ultrapassa o limite da necessidade, o que, para o taoismo, gera desequilíbrio e adoece (corpo e/ou mente). Na principal obra taoista, o Tao Te Ching (livro do caminho e da virtude) de Lao Tse, está anotado: “Todo excesso é perverso”, ou seja, tudo o que for em demasia, o que foge da necessidade e da ‘naturalidade’, acaba gerando deficiência ou desgaste. Por isso, enquanto praticantes de arte marcial ou atividade física, não nos prendemos em discursos ou aparências, mas sim, naquilo que vivemos na prática, estudamos e conhecemos, para além do senso comum e dos discursos mercadológicos ou ideológicos. Ou seja, ao invés da cobiçada vitória individual que ultrapassa limites – que tem relação com o ‘ego’ (ou o discurso sobre isso), nos movemos tendo em vista e respeitando os limites, pois são eles que nos apontam até onde podemos ir na nossa prática que, limitada, nos integra à certa ‘naturalidade’ da vida, sendo que, toda prática é circundada de limites, e são eles, os limites, indicadores do equilíbrio necessário para a vida.

No nosso ‘modo’ de Wing Tjun, a flexibilidade é muito mais importante do que a rigidez, tanto no quesito físico como no mental. Por isso também praticamos o Chi Kung (cultivo de energia), e elementos do Tai Chi Chuan, como conhecimento integrados ao WT. Nisso, nosso sistema, além de ‘externo’ é ‘interno’ (leia-se ‘arte interna’), o que aprimora consideravelmente a prática ‘marcial’. É inconcebível para nós a ingestão de anabolizantes ou quaisquer outras drogas que influem na estrutura física, pois ao mesmo tempo, elas sugam ou diminuem nosso Chi. Também não compactuamos com disputas de ego e físicas, nem discursos motivacionais que apontam para uma pretensa e subjetiva ‘vitória na vida’ ou sob si próprio, pois temos a consciência que a vida não é para ser vencida, mas para ser vivida, experienciada, ou seja, ela é o que é, e nós, seres que a compõe.

As suspeitas da morte do instrutor, segundo noticiosos, recaem sobre uma suposta ‘morte natural’ ou devido ao uso de anabolizantes (o motivo desta reflexão) – mas talvez, numa perspectiva taoista, recaem sobre os excessos.

Talvez, a morte do instrutor não tenha relação ‘direta’ com atividades físicas, ‘medicamentos’ ou alimentação (mas pode ter ‘indireta’), mas com certeza, a partir da concepção taoista, tem com o Chi, ou seja, com a energia interna vital. E esta energia está no cotidiano, na vida, como um todo, no alimento, no ar, nas relações sociais, no fator cultural (modo de vida), ou seja, nas práticas, sejam elas marciais ou cotidianas, onde corpo e mente desequilibrados, como já foi dito acima, resultam numa energia ou espírito desequilibrado, o que pode, no mínimo, somar para o fim da vida.

Conhecia o instrutor em questão, como também sua prática marcial, e mesmo não tendo afinidades com ela (nem uma relação próxima com ele), sinto muito, pois trata-se de um ser humano, de meia idade (relativamente jovem), que poderia ainda ter muito o que viver, aprender e ensinar. A causa mortis ainda está sendo levantada. Talvez em breve seja divulgada, e saberemos o motivo principal (ou não). Enfim. Meus sentimentos aos familiares, amigos/as e alunos/as. E que este texto cumpra, nem que seja em partes, seu objetivo, que é reflexivo, sobre aquele que é nosso bem maior, a vida.

* Conste que esta reflexão é a partir da minha concepção pessoal e da nossa escola e estilo de Kung Fu, e tem bor base conceitos taoistas.




sexta-feira, 9 de agosto de 2019

'Armas' e 'luta' no Kung Fu: quais são as suas?

Kung Fu não é um sistema ou estilo de 'arte marcial', mas sim, um apanhado de conhecimentos que desaguam num grande conhecimento que inclui vários sistemas e/ou estilos. Junto a 'marcialidade' existem princípios que norteiam este conhecimento (infelizmente não considerados, como deveriam pelo menos, por muitos).
No contexto histórico, o Kung Fu surge na China antiga como instrumento de 'auto-defesa', a partir de mestres, no seu âmbito familiar e/ou comunitário, e em templos, em que desenvolvem técnicas integradas com certos princípios. Logo ele foi aplicado ao contexto da guerra, no treinamento militar dos exércitos imperiais, assim como, também usado nos grupos rebeldes ao domínio imperial.
Nisso, grande parte (ou quase todo) o Kung Fu neste contexto (antigo), se utilizou, além do fator físico-corporal e das estratégias (a partir de estudos, conhecimentos e da mentalidade), de instrumentos ou ferramentas, inicialmente de trabalho, que se tornaram armas. Portanto, a história do Kung Fu (para além do fator esportivo e ou moderno urbano das escolas ou academias), sempre foi marcada pelo uso de instrumentos (armas), a exemplo do exército e da guerra.
Dado este contexto, atualmente alguns praticantes e/ou entusiastas olham para o Kung Fu como se ele fosse simplesmente uma 'modalidade esportiva' de 'combate regrado de mãos limpas', ignorando um contexto maior, reduzindo assim este conhecimento. É fato que o Kung Fu pode (e deve) ser usado para diferentes 'fins' ou situações. Porém, ao invés de ficarmos arrotando 'verdades absolutas' sobre este conhecimento, seria mais prudente e inteligente perceber que, nem tudo no Kung Fu é luta, sob tudo desarmada.
Compreender os vários aspectos que envolvem este conhecimento, esta arte milenar e tão atual, é trabalhar a amplitude da visão e da sensibilidade. Nisso, é possível rever alguns conceitos e aplicá-los de formas distintas, onde 'luta' pode ser diferente de 'auto-defesa', que, por sua vez, é diferente de 'disputa', que é diferente de 'guerra', etc., e que, no tempo físico da realidade material, 'mãos limpas/livres' e 'mãos armadas', implicam em situações diferentes, assim como 'jogar dentro de regras específicas' com cuidados específicos, é bem diferente de 'atuar na realidade caótica da vida'. Portanto, temos aí, dois conceitos ou concepções de 'luta', e talvez, numa delas, seja mais apropriado falar em 'auto-defesa'.
Sim, o uso técnico e bem habilitado do corpo, pode ser tido como uma arma. Porém, mesmo assim, é diferente de um outro corpo também tecnicamente habilitado, só que, portando uma arma que funciona como uma extensão deste próprio corpo. Então, diferente do que alguns julgam, estilos, sistemas ou modos diferentes de Kung Fu exigem ou são bem aplicados ou efetivos em diferentes realidades e/ou contextos. Nisso, toda comparação não passa de subjetividade. Por isso, é fundamental conhecermos a arte (estilo, sistema ou modo) que estudamos/praticamos, para que não hajam equívocos conceituais, de concepções, percepções e, portanto, de aplicações destes conhecimentos na vida.
No vídeo que segue, um 'jogo' (ou esporte) que demonstra e pratica o uso de armas no Kung Fu. Com sua habilidade e de 'mãos limpas', você acha que lutaria ou se defenderia de igual para igual (com uso das suas técnicas e golpes) contra um praticante destes armado? Então, de 'mãos limpas', dentro deste contexto, qual 'luta', quais 'armas' (estratégias, conhecimentos, inteligência marcial - quais fundamentos filosóficos e práticos) seriam mais adequadas ou propícias para manter a integridade física (vida)?




Tai Chi (Yin-Yang) e o Taoismo

O símbolo ao lado é muito antigo e não possui uma data precisa.. estamos falando de centenas ou milhares de anos.. historicamente tornou-se o principal símbolo do Taoismo (filosofia e espiritualidade de origem chinesa - que foi tornada religião por algumas linhas).. o termo-conceito Taoismo não é tão antigo, mas algumas das suas práticas datam de em torno de 5.000 anos antes de cristo, sendo melhor visualizadas e conhecidas por volta do século XVII a.C., a partir do filósofo chinês, o sábio Lao Tse, na sua obra Tao Te Ching (o 'Livro do Caminho e da Virtude')..
Antes mesmo de seu título, o Taoismo em forma de algumas práticas, já existia.. uma destas práticas é o cultivo de energia (práticas físico-corporais, energéticas e mentais), o que mais tarde ficou conhecido como Chi Kung ou Qi Gong.. em torno de 5.000 a.C. algumas destas práticas já existiam.. coletores e camponeses/as, organizados em pequenas comunidades, baseados na observação e estudo do fluxo da Natureza, desenvolveram estas práticas para viverem melhor junto da Natureza.. aprenderam que, respeitando seu fluxo, suas condições, se vive melhor e com maior naturalidade.. então, no Taoismo, a Natureza é a grande mestra, munida de uma energia própria, uma espiritualidade, da qual também fazemos parte.. nisso, alguns mestres e mestras deste tempo, como Xamãs (pois também trata-se de uma cultura nativa milenar), desenvolveram práticas mentais, energéticas, espirituais e físico-corporais para viver em integração com as naturezas (interna e externa)..
Nisso, o símbolo chamado de Tai Chi, popularmente de Yin-Yang, justamente representa esta condição harmônica entre os 'polos de energia' que existem na Natureza, na Vida.. ou seja, em suma, o 'Equilíbrio'.. este conceito, concepção e/ou teoria, se aplica nos vários âmbitos da vida e da cultura taoista, que além de filosofia e espiritualidade, é ciência.. sim, mas não uma ciência como a ocidental cartesiana.. difere dela em vários aspectos.. a base da medicina tradicional chinesa (MTC), é Taoista, e tem este conceito (Tai Chi) como fundamento essencial.. meditação, acupuntura, Chi Kung de cura, massagens, fitoterapias, etc., somados a práticas cotidianas de cultivo de energia e alimentação, são bases deste grande e profundo conhecimento.. além do Chi Kung, o Tai Chi Chuan e alguns modos de Kung Fu também fazem parte deste conhecimento..

Entre a aparência e a essência, um abismo

Dado ao mundo dos negócios, o mercado e/ou capitalismo (como políticas ideológicas e publicitárias que objetivam o consumo, a venda e o lucro), como faz com outros símbolos ou representações culturais, utiliza a simbologia para seus fins, muitas vezes distorcendo seu sentido e fundamento, tornando-a mais um produto ou aparência (não essência).. e o Tai Chi, muitas vezes também acaba sendo vítima deste uso distorcido ou inapropriado, não só pelo mercado ou publicidade, mas, infelizmente, também por algumas escolas, associações ou empresas de artes marciais e/ou Kung Fu, que não tem nas suas filosofias ou práticas a essência deste conhecimento, mas apenas a aparência.. então, é muito comum vermos o Tai Chi sendo usado deliberadamente sem seu significado essencial e fundamental sendo respeitado.. assim como, em tantos outros casos, de tantas outras filosofias que vemos por aí.. por isso, cabe, para quem estuda e quer realmente relacionar-se com o conhecimento, com o fundamento e/ou essência das coisas, o necessário discernimento... 



domingo, 14 de julho de 2019

A fundamental prática da Chi Sao e suas diferenças no sistema Wing/Weng Chun

Diferentes modos de rolagem em Chi Sao: Dap Sao e Poon Sao

Nos sistemas Wing Chun e Weng Chun Kuen, basicamente existem dois modos de rolamento em Chi Sao (prática/técnica de ‘mãos aderentes, mãos pegajosas, mãos que empurram ou mãos que enganam’ – assim é chamada), uma das grandes práticas do estilo. Um deles segue o método da Dap Sao (mais semelhante a Tui Sao do Tai Chi Chuan, onde os movimentos são circulares), outro da Poon Sao (bastante popularizado pelo modo Ip Man de Wing Chun). Segundo alguns praticantes ou estudiosos do WT (sigla para Wing/Weng Chun), a maneira antiga ou original de rolagem na Chi Sao era o método Dap Sau (que é mais circular e relaxado, portanto, mais fluente do que o Poon São – também considero mais dinâmico). 

* (na imagem, sifu Herman Silvani e estudante Akio Yamakawa praticando Chi Sao em parque público, 2018)

Alguns praticantes e pesquisadores acreditam que foi a linhagem Yuen Kay San que introduziu Poon Sao no método de rolamento em Chi Sao. O irmão mais velho do GM Yuen Kay San, GM Yuen Chai Wan, seria o introdutor do Dap Sao como um método de rolar em Chi Sao no Vietnam (uma característica de suas escolas). Quando você olha para a maioria das linhas de WT no Vietnam se constata que eles usam Dap Sao ao invés do popular Poon Sao usado no modo Ip Man de WT. Nisso, acredita-se que Yuen Kay San (irmão mais novo de Chai Wan) teve uma grande influência sobre o Ip Man Wing Chun, e teria sido através dessa influência que o GM Ip Man incluiu Poon Sau em sua Chi Sao. Poon Sau desde então tem sido o método mais popular de rolagem em Chi Sao, sem dúvida, através da popularidade do Ip Man WT. Além do modo ou escola Yuen Chai Wan, outros, como a Gu Lao Wing Chun e Pao Fa Lin Wing Chun usam o Dap Sao como método de rolagem na Chi Sao. A Garça Branca de Fujian é uma das artes parentais ou irmã do WT, e nela também se usa o método circular do Dap Sao.

(Obs.: algumas informações redigidas acima foram retiradas de texto de Jason Sylvester da IWKA, outras por pesquisas pessoais)

Mãos aderentes e a integração na essência

No nosso modo (Fluir Wing Tjun) praticamos Chi Sao com a rolagem em Poon Sao, mas é o Dap Sao que prevalece, herança do modo Yuen Chai Wan de Kung Fu (escola do Vietnam de Wing Tjun), uma das nossas principais fontes. Foi com este modo de WT  que aprendi Chi Sao, o que explica nosso modo, que é quase 100% em Dap Sao.

Além dos estilos Wing/Weng Chun e do Tai Chi, esta prática de 'aderência' e trabalho de energia, também é encontrada em outros estilos, como na Garça Branca, no Chu Kar (Chow Gar), no I-Chuan (Yquan) - ambos estilos de que possuímos aspectos ou elementos no nosso 'modo'/escola - e também no Pencak Silat, um estilo marcial da Indonésia. Ambos estilos, são diferentes, mas possuem algo interno que os liga ou integra de alguma forma. Este 'algo' é o que chamamos de 'essência'. Esta essência também está no Chi Kung, no Tai Chi, e em outras chamadas 'artes internas'. E é a partir dela, da essência, que o nosso Kung Fu é estudado/praticado, onde os fatores 'interno' e 'externo' integram-se, convergindo no todo. Assim fluímos naquilo que chamamos de Caminho, onde Mente, Corpo e Energia masterizam-se na busca pelo Equilíbrio de ser e estar, o que reflete no nosso desenvolvimento ‘marcial’, humano, energético e espiritual (leia-se conceitos no taoismo).

Nos vídeos que seguem, Chi Sao a partir do chamado 'Wing Tjun interno' e o antigo modo de rolar no método Dap Sao:

Chi Sao AFWK:
Antigo modo (a partir de '- 1:40min.'):
Escola Ngo Sy Quy, Vietnam (a partir do 'modo' Yuen Chai Wan):

Nos vídeos abaixo, a prática das 'mãos aderentes' nos estilos Chu Kar, I-Chuan e Silat:





quinta-feira, 6 de junho de 2019

Kung Fu também é cultura! E, portanto, se transforma...


“O mundo cultural é marcado por tradições e costumes socialmente construídos e com os quais os homens se relacionam desde o seu nascimento. A língua, os comportamentos, os padrões de beleza, as preferências por determinados alimentos, entre outras questões, são definidas pelas práticas culturais nas quais cada pessoa está inserida. Apesar de parecerem manifestações espontâneas, a forma como cada grupo recepciona seus convidados e como reagem ao nascimento e à morte são expressões definidas culturalmente. A cultura, enfim, norteia as construções da vida social, econômica e política.

Apesar de a cultura interferir na formação humana e orientar o reconhecimento dos indivíduos como seres sociais e como pessoas, é importante ter em vista que, ainda assim, ela não cria padrões uniformes. Ou seja, cada pessoa, apesar de influenciada culturalmente, tem a sua individualidade e lida com os aspectos da vida cultural de formas distintas.

Da mesma maneira que a cultura modifica as pessoas, estas também modificam a cultura. Portanto, cultura é algo móvel e plural, uma construção social, e não algo estático e eternamente definido como muitos acreditam.” (FURTADO, Elizabeth B. – com interferência textual minha)

“A cultura é duradoura embora os indivíduos que compõem um determinado grupo desapareçam. No entanto, a cultura também se modifica conforme mudam as normas e os entendimentos.” (BRAIDWOOOD, Robert J.)

A partir disso, podemos refletir as transformações e/ou mudanças no Kung Fu, tido como um aparato de conhecimentos integrados que, quando reunidos e estudados a partir de certos critérios e tradições, formam um ‘estilo’. Entre os vários estilos de Kung Fu, temos a Serpente, a Garça, o Tigre, o Louva-Deus, a Garra de Águia, o Hungar, o Wing Chun, etc. Nisso, dentro do mesmo ‘estilo’, podem existir diversas e diferentes escolas, associações, linhagens e ‘modos’, como é o caso o Wing Chun, por exemplo, onde cada mestre tratou de adaptar o ‘estilo’ ao seu ‘modo’ de conceber, estudar/praticar e transmitir o conhecimento. Portanto, falo aqui de uma diversidade de modos deste mesmo estilo de Kung Fu, o que enriquece esta arte e/ou conhecimento milenar, e num âmbito maior, enriquece esta cultura.

Volta e meia, alguém, vendo alguns dos meus vídeos demonstrativos no youtube, ou lendo sobre nossa associação/escola ou modo de WT (a que chamamos de Wing Tjun), pergunta curioso ou com certo receio, qual é a nossa linhagem ou de onde vem nosso estilo (o que chamo de modo). Muitos estranham nosso modo não ser filiado ou imitante ao modo Ip Man, o mais famoso e popularizado modo de Wing Chun do mundo. Talvez alguns estranhem nossas diferenças visíveis a este modo, por pouco conhecerem outros, já que, alguns aspectos do que fazemos no nosso WT vem do modo Ip Man. Os mais conhecedores do assunto percebem no nosso modo a integração entre alguns modos diferentes de Wing Chun, e também a integração até com estilos diferentes entre si de Kung Fu, e com as chamadas ‘artes internas’, que possuímos. Não temos uma linhagem específica definida, pois não somos representantes nem filiados a uma única escola, modo, estilo, mestre ou tradição. A necessidade nos fez integrar conhecimentos a partir daquilo que chamo de essência, pois nossa integração se faz entre artes ou conhecimentos parentais ou irmãos, em que eles, mesmo diferentes, sob tudo nos seus aspectos manifestados externamente, possuem a mesma essência. E é nisso, na essência, que estes estilos e modos diferentes se unem, se fundem ou integram para algo maior, o conhecimento, o Kung Fu. É possível e cultural que seja assim. Um processo que acontece com o tempo, por causa da necessidade, e não por uma simples escolha ou preferência.

Assim como é com a cultura, que se transforma, se adapta, se integra, se funde, se move, também é o Kung Fu, sendo ele, também uma cultura, ou parte de uma. Então, não deveria ser estranho que estas transformações, estas adaptações, fusões, integrações, modificações, movimentações que sofrem os estilos, aconteçam. Como toda a cultura, o Kung Fu não é algo imutável. E é, justamente, graças a estas mutações, que ele sobrevive e gera novas possibilidades. Nisso, é fato a importância dos estilos, das linhagens. Mas também, é fato a importância dos modos, assim como, da diversidade ou diferenças entre eles. Isso tudo é conhecimento e riqueza cultural. É claro que no vácuo destas possibilidades, sempre aparecem as ‘invenções’ e  ‘fraudes’, sejam por sonhadores, reprodutores do imaginário romantizado do Kung Fu (pelo cinema ou outro mecanismo de influência), ou pelos oportunistas aproveitadores que, se apropriam de discursos, imagens e simulações de conhecimentos para praticarem o comércio, e assim, ganharem seu soldo. Estas ‘invenções’, muitas vezes são confundidas com as adaptações e desenvolvimentos ou criações elaboradas a partir dos conhecimentos já existentes. E é isso que são os modos na sua diversidade, e não meras ‘invenções’ ou fraudes, como muitos dizem por aí sem saber. Julgar é sempre mais fácil do que saber ou conhecer, e isso explica muito das confusões.

Em suma, num conceito ou concepção ampliada ou mais profunda, o Kung Fu sendo um conhecimento, uma arte, uma cultura, um modo de perceber e se posicionar no mundo, é suscetível a interferências, influências, incorporações, integrações, fusões, portanto, transformações. Por isso, a pretensa ‘pureza’ de um ‘modo’ ou estilo, é relativa, ou talvez nem exista, sendo o Kung Fu um misto de conhecimentos, técnicas, valores. E é justamente isso que o torna especial. Portanto, tenhamos cuidado ao tratar dele, pois muitos reducionismos e determinismos distorcem ‘modos’ que são bons, íntegros, dignos, sinceros, confundindo-os com meras ‘invenções’ ou charlatanismo, como muitos gostam de falar neste meio. É preciso saber diferenciar uma coisa de outra, para não cair no pré-conceito do julgamento infundado e mesquinho, o que, infelizmente, acontece muito por aí, e ter a consciência que, como uma cultura, o Kung Fu é algo vivo, que varia e se transforma, e o que deve definir isso, não é a vontade pessoal nem a crença ou o idealismo, mas sim, a necessidade, pois, como diria o filósofo alemão Nietzsche: “Todo o idealismo perante a necessidade é um engano”. E é isso o que seguimos: a necessidade, a naturalidade. E assim fluímos...




sábado, 25 de maio de 2019

Tai Chi Chuan e Kung Fu para além da disputa - e do senso comum


Que se compreenda: Tai Chi Chuan e Kung Fu, não são meramente lutas (muito menos esportivas ou espetáculos midiáticos e/ou ideológicos), são muito mais que isso (leia-se que, quando falo em Kung Fu, me refiro ao aparato de conhecimentos que ele abrange, sendo o quesito marcial, apenas um deles).
* Chega a ser entediante falar novamente disso, mas, vamos lá:
Estas artes, estes grandes conhecimentos, compreendem variados outros conhecimentos (internos e externos). Assim como o Wing Tjun, o Tai Chi não foi feito para 'lutar' em competições, em disputas por status ou ego. São artes proativas (antecipatórias), por tanto, defensivas, desenvolvidas para serem parte do cotidiano humano. Portanto, 'não funcionam' na luta esportiva, a não ser, alguns de seus aspectos que, inclusive, são utilizados com sucesso no esporte. Agora, saindo do território da 'luta', da disputa, do esporte, do palco ou show, ambas fornecem grandes condições de fluir na vida, em seus vários aspectos, inclusive na maior de todas as 'lutas', a luta pela sobrevivência.
Nisso, tenho a consciência e sempre falo aos meus alunos: o Wing Tjun e o Tai Chi não servem para a luta esportiva, são conhecimentos para o dia-a-dia, estilos e habilidades que, fornecem técnicas, energias, conhecimentos, habilidades para os lutadores esportivos, porém, não se limitam aos espaços das lutas esportivas. Quando as adaptamos à luta, perdemos suas principais bases, habilidades, fundamentos, ou seja, suas essências. Já no território do cotidiano, das ruas, da vida 'lá fora', ambas tem mais fundamento e sentido do que as lutas esportivas, por serem proativas, ou seja, mais defensivas e amplas do que qualquer estilo de luta esportiva. Então, é um tremendo engano ou distorção achar que estas artes são lutas de ringue, onde, grande parte dos seus praticantes não são atletas. Somos 'cultivadores', não atletas ou lutadores (no seu sentido esportivo).
Já faz muitos anos que estudo/pesquiso 'artes marciais', e já tive experiência em estilos de luta (já pratiquei e lutei esportivamente), nisso, faço tal distinção. Em suma, o ringue não é o território do Wing Tjun e do Tai Chi Chuan. Seus territórios são fora do ringue, na vida. Quem resume ou reduz estas artes em lutas (competitivas), não as conhecem nas suas essências, ou tem má fé. Incrível é ver/ouvir praticantes não compreendendo esta questão. Falta de percepção, sensibilidade ou conhecimento daquilo que praticam?
Na matéria que segue abaixo, o 'lutador pop' Xu Xiaodong (aclamado por muitos entusiastas e seres competitivos), é intimado para se retratar publicamente e pagar indenização ao mestre de Tai Chi, estilo Chen, Chen Xiaowang, por insultos. Um esportista, lutador, dito 'artista marcial' por muitos, deveria compreender as diferenças entre uma coisa e outra, e mais que isso, ter o básico e fundamental para a dignidade dos conhecimentos ditos 'marciais', o respeito. Sendo que, grande parte (quase todos, ou todos) os 'lutadores de Kung Fu' que ele desafiou e venceu, não são 'lutadores', nem tão bons naquilo que fazem enquanto 'arte marcial' (pelo menos esta é minha percepção vendo as tais 'lutas' e espetáculos, que distorcem muito do que são os estilos envolvidos). Mas sim, no ringue, no tatame, Xiaodong pode ser um bom lutador, e me parece que até é. Mas, na dureza do cotidiano, a realidade muitas vezes é bem outra. E eis que, cada estilo ou coisa, no seu âmbito. Nem tudo se resolve com força físico-muscular, muito menos dentro de regras e nas disputas individuais ou shows midiático-ideológicos.
Nisso, um Tai Chi, um Kung Fu bem praticando, estudado, na sua essência, nos dá plenas condições de luta, naquilo que é muito maior do que um jogo ou uma disputa, ou seja, a luta cotidiana, na vida (o que inclui 'auto-defesa' e, principalmente, antecipação dos problemas que enfrentamos diariamente).
Eis a matéria:
https://www.scmp.com/sport/mixed-martial-arts/article/3011644/china-orders-xu-xiaodong-publicly-apologise-and-pay?fbclid=IwAR3tJoWdyr_I0SrNyurbiGYZzEo5CLxMOpvxCHErEfmykPoInPw1AIVyl8Y

* Em diálogo com um sifu de Wushu (Shaolin do Norte), acabei por ampliar a reflexão nas palavras que seguem:
Há sérias controvérsias quanto a origem do Kung Fu. Alguns defendem que ele é fruto do militarismo (feito para a guerra), outros, dizem o contrário, que ele foi desenvolvido para defender-se da violência gerada pelo estado de guerra. Falo do nosso sistema/estilo que, historicamente é do segundo contexto. Também, alguns vão dizer que, Kung Fu deve servir para a luta. Até aí, tudo bem, posso concordar. Porém, penso e vejo através do estudo ou atenção à história, que ele vai além disso. Nos períodos de guerra o Kung Fu, quando já existia enquanto 'conjunto de conhecimentos' (e não simplesmente um estilo de luta como pensam alguns), era armado. Ou seja, um praticante de Kung Fu o praticava também com armas, muito mais usadas em guerra do que as 'mãos vazias'. Nisso, os estilos 'defensivos' (como o Wing/Weng Chun e o Tai Chi Chuan, por exemplo), são mais aplicáveis (utilizáveis) de 'mãos vazias' num contexto de garantia da integridade (física e psicológica) do que os estilos 'ofensivos' (lutas, onde o 'fator externo' físico é predominante).
Existe muito discurso ideológico e publicitário (além de romantismo) acerca da figura do 'guerreiro' em arte marcial (tema o qual pretendo escrever noutra feita). Muito se fala em 'arte da guerra', mas, não muito se lê e/ou interpreta sobre ela.
No duro da realidade, com alguém maior e mais forte que eu, não sairia no soco, disputando com o lutador/agressor em questão, mas usaria meus conhecimentos proporcionados pelas artes que estudo/pratico e leciono, artes estas, que não tem a força física (muscular) como uma das principais características, mas são mais precisas enquanto 'inteligências marciais', o que envolve certas habilidades e estratégias, mais do que a condição física existencial. Nisso, ao invés de força muscular, socos e chutes desferidos contra um suposto agressor ou lutador, numa disputa de igual para igual, regrada (sendo que esta igualdade e regras não existem no contexto da 'vida lá fora' quando se trata da possibilidade de garantia da integridade pessoal), agiria com flexibilidade, atuando com aplicações do Wing Tjun e do Tai Chi Chuan em partes vulneráveis do corpo, além da movimentação provindas destas artes, pois neste caso, a luta seria outra. Esta é a distinção ou discernimento que se deve ter e a que me refiro. Não nego ou deprecio a luta esportiva enquanto forma de treino e esporte, porém, devo perceber e falar de seus limites em situações fora de seu âmbito de conhecimento e habilidade. No espaço ou território das ruas, do cotidiano, da vida além do 'jogo', outras habilidades e conhecimentos são necessários. Com meus 1:65 m de altura e 65 kg, praticamente não tenho chances em luta de igual para igual contra um lutador como o Xu Xiaodong (da matéria), por exemplo, pois as condições físicas não são iguais, nem o terreno de um ringue é propício. Então, em outros terrenos, que não sejam os da 'luta' (esportiva), minhas 'armas' também precisam ser outras (ou alguém acha que, ficar trocando golpes com alguém maior e mais forte de igual para igual é uma boa condição?). Já tive experiências, tanto no âmbito da luta esportiva quanto da 'auto-defesa', e territórios distintos, por isso também falo o que falo sobre o assunto. Mas é claro, devemos considerar a relatividade que existe nisso.
Em suma, o que eu quis (ou quero) com esta reflexão, é ampliar a questão, ou não reduzi-la a determinismos que acabam resumindo o Kung Fu (que é um conjunto de conhecimentos) a uma luta, sem desconsiderar este aspecto, mas, indo além dele, problematizando algumas atitudes e notícias ligadas ao discurso, geralmente ideológico ou sem a devida profundidade.



sábado, 11 de maio de 2019

Taoismo, Kung Fu e o atual cenário sócio-governamental brasileiro


Como todos sabemos, o Brasil é um país multicultural e politicamente plural, onde a diversidade, tanto natural quanto cultural, é sua maior riqueza. Porém, vivemos tempos difíceis, em que esta diversidade sofre diariamente ataques provindos de poderes organizados e institucionalizados, sendo, infelizmente, o atual governo um deles (não vamos fazer de conta que isso não está acontecendo, pois quem é minimamente informado, sabe que está, e isso, em suma consciência, não se pode negar, esconder ou negligenciar). Sendo assim, na vida cotidiana, pessoas ‘comuns’, acabam reproduzindo ou endossando manifestações e ações violentas provindas do Estado (governo), o que atinge direta ou indiretamente seus compatriotas e o espírito do país (sociedade e natureza).

Como taoista (filosoficamente e espiritualmente falando), professor (sifu) de Kung Fu (Wing Tjun) e Chi Kung, além de professor em escolas públicas e privadas, vivo e sinto intensamente esta realidade atual (somado a certo nível de sensitividade que possuo), de forma muito dura. Nisso, consciente das minhas responsabilidades enquanto cidadão, estudante e professor, possuidor destes conhecimentos, não posso me furtar de discutir o assunto a partir daquilo que estudo, leciono e pratico, ou seja, do taoismo e do Kung Fu, estes dois grandes e profundos conhecimentos humanos. Para isso, me utilizo daquela que é, senão a principal, uma das principais obras taoistas, o livro Tao Te Ching, atribuído ao grande sábio Lao Tse, traduzido direto do chinês para o português e comentado pelo mestre taoista Wu Jyh Cherng, uma das referências taoistas da AFWK no Brasil (indico esta edição). Portanto, a partir dos pensamentos e princípios taoistas citados aqui (ligados à vida Kung Fu), ofereço a reflexão que segue. Boas leituras!


Governo do Homem Superior – ou como deve ser um bom governo

- O que o taoismo diz sobre isso?
“O Homem Superior termina o dia de caminhada
Sem se afastar da ponderação e dos recursos.” 
(Lao Tse, Tao Te Ching)

Comentários e análise do mestre Wu Jyh Cherng:

“Ponderar é a pessoa refletir, procurando observar todas as implicações de uma questão, antes de se definir por um juízo; (...)”. Nisso, um grande homem, um bom governante ou líder (o ‘Homem Superior’), “no lugar da insensatez da mente que leva às atitudes mesquinhas diante da vida, ele cultiva a lucidez que leva à prática da reflexão sobre suas ações, (...). Com isso, não se afasta da ponderação quando analisa os fatos do seu cotidiano, e utiliza de modo correto os recursos que possui, (...).

O poema ensina que um homem de grande poder e riqueza (estadista, governo, líder) necessita ser uma pessoa ponderada, para não se tornar leviana. Devido à sua responsabilidade perante o mundo, ele precisa ser atencioso com as outras pessoas e cuidadoso com seus gestos, palavras e ações porque qualquer erro seu pode tomar uma dimensão muito grande e se transformar numa catástrofe social.”


A vida banalizada: quanto mais armas, mais violências e mortes

Quanto a isso, o taoismo, a partir de sua grande obra escrita, se mostra cauteloso ou até ‘contra’ a proliferação das armas entre a população, assim como, nos diz que uma sociedade saudável e equilibrada precisa fundamentalmente de um governo saudável e equilibrado, como podemos observar nos trechos do Tao Te Ching abaixo:

“A arma é o recipiente da desventura,
Não é o recipiente do Homem Superior,
(...)
Aquele que tem prazer em matar
Não pode triunfar sob o céu.” 
(...)
“Muitas restrições e omissões no mundo
Tornam o povo completamente pobre;
Muitos instrumentos afiados entre o povo
Fazem crescer a confusão no reino e na família;”
(Lao Tse, Tao Te Ching)

Comentários e análise do mestre Wu Jyh Cherng:

“Reino representa o governo de um país, (...). Os mestres taoistas dizem que da mesma forma que o corpo de uma pessoa precisa se manter saudável para ela seguir seu Caminho com fluidez, um reino também precisa ser saudável para sua população conhecer a paz e a estabilidade, e isto se consegue através da retidão de leis justas, claras e sólidas.”

“Instrumentos afiados representam armas como facas e punhais que servem para cortar, destruir ou agredir. A existência de muitos instrumentos afiados entre o povo faz crescer a confusão porque questões conflituosas, pequenas ou grandes, que surgem naturalmente no seio de uma família ou dentro de um reino, tendem a ser tratadas pelas armas se a pessoa tiver uma disposição prévia para o seu uso, e se for incentivada pela profusão desses instrumentos entre a população.”

* Obs.: leia-se que, no período em que o Tao Te Ching foi escrito, não existiam armas de fogo.

Quanto ao equilíbrio e saúde sociocultural, que passa necessariamente pela política, ou seja, pelo Estado e/ou governo, a diversidade cultural, social, política (de pensamento e práticas), deve ser respeitada e contemplada nos assuntos e ações do governo:

“Onde governa a tolerância,
O povo tem tranquilidade;
Onde governa a discriminação,
O povo tem insatisfação.”
(Lao Tse, Tao Te Ching)

Comentários e análise do mestre Wu Jyh Cherng:

“(...) quando pessoas de características e pensamentos diversos são aceitas e toleradas em condições de igualdade por um governo, o povo vive com tranquilidade porque passa a confiar no seu governante e adquire a convicção de que será protegido pela legislação e pela Justiça do país. De forma inversa, onde governa a discriminação, o povo vive na insatisfação porque as políticas ou atitudes arbitrárias e preconceituosas separam os homens por classes ou atributos, beneficiando alguns em prejuízo de outros, e esta forma de governar desagrada a todos porque sempre haverá alguém sentindo-se insatisfeito ou sento vitimado por alguma injustiça.”

E esta ‘injustiça’ gera desentendimentos e convulsões sociais. Como bem podemos perceber, ver e sentir, na condição atual do Brasil que, infelizmente é esta. Violências diárias, sejam nas ruas ou pelos meios de comunicação de massa, sejam pelas mãos do crime organizado, do crime individual comum ou pelos crimes do Estado, estas violências, físicas, simbólicas ou psicológicas, contra a saúde e o equilíbrio social, cultural e político (ou seja, humano), acabam por minar a sociedade, causando vários transtornos e problemas. Nisso, podemos verificar o aumento da exploração do trabalho e do ser humano mais necessitado (um ato de covardia do poder instituído sobre o povo), da pobreza material, intelectual, moral, ética, espiritual, política da nação. Não precisa ser especialista para saber disto, basta olhar e se informar para perceber tal realidade. Tristemente, nosso momento é de pouca saúde sociocultural, devido ao caminho desequilibrado que parte significativa da população escolheu (com consciência disso ou sem), e que o atual governo e seus tentáculos promovem. Menos acesso e investimento em educação e maior facilitação ao uso público de armas de fogo, são um exemplo deste caminho.


E o que o Kung Fu tem a ver com isso?

Muitas vezes, no senso comum, o Kung Fu é visto meramente como um estilo de luta, o que, infelizmente, em várias situações, é tratado e reforçado como tal por praticantes e até professores. Mas, sendo um antigo conhecimento, profundo e amplo, sabe-se que ele vai além da luta. Ou seja, o Kung Fu tem princípios morais e éticos que o fundamentam para além do que, comumente, se pensa e se diz dele. Alguns destes princípios vem dos velhos mestres e mestras que, além do fator técnico-marcial (externo), cultivavam o fator mental-espiritual (interno). Muitos destes princípios, inclusive, estão dispostos nos Wu De (códigos de ética) do Kung Fu. Uma parte destes mestres ou mestras eram taoistas. Então, o taoismo filosófico, é uma das grandes bases teóricas, morais e éticas (e espirituais) do Kung Fu, porém, nem todos admitem e fazem bom uso disso. E é neste sentido que o Kung Fu, enquanto conhecimento e sabedoria humana, deve prezar pelo equilíbrio, pela saúde da sociedade como um todo, o que envolve os seres humanos e a natureza. Nisso, sifu’s (mestres e professores) são os grandes responsáveis por fazer jus a este conhecimento milenar.

Historicamente, o Kung Fu, em sua essência, foi/é um instrumento de busca de equilíbrio e paz, utilizado como resistência às investidas opressoras e violentas dos governos e suas tiranias. O Wing Tjun (Wing/Weng Chun) é um exemplo disso, a partir de sua história de auto-defesa e/ou luta contra a violência do império manchu.


Kung Fu no contexto brasileiro atual

No Brasil, como em quase todo o mundo, existe uma variedade de escolas, associações, estilos, linhagens ou modos de Kung Fu. Mas nem todas as escolas/associações, professores, mestres ou praticantes olham e vivem o Kung Fu a partir de seus princípios ‘internos’ fundamentais. Por isso vemos muitos estereótipos que empobrecem o Kung Fu por aí, infelizmente, tornando-o uma caricatura ou simplesmente uma luta marcial usada para, ao invés de equilibrar, submeter. Certa cultura machista e individualista, de disputa econômica e/ou de ego, engrossam esta triste realidade. Porém, existem as escolas/associações, sifu’s (mestres ou professores) e praticantes que dignificam o Kung Fu como sendo este grande conhecimento, esta grande arte de sabedoria, mental, física e espiritual. E dignificar o Kung Fu é fazer parte de sua história, de seu valor, de uma certa consciência sobre ser-estar no mundo.

Em suma, a situação do Brasil atual mostra aos praticantes e mestres que este é um momento de posição ou postura a ser tomada, frente aos vários ataques que neste momento acontecem contra o ser humano, contra a natureza e as expressões artísticas, étnicas, ou seja, socioculturais. Posições ou posturas estas, que promovam a saúde, o equilíbrio, a paz social. Por isso, a AFWK se posiciona e se manifesta contra o autoritarismo e as medidas anti-populares, anti-humanas e anti-naturais do atual governo brasileiro e seus tentáculos.

Que as ‘armas’ promovidas entre a população pelo Estado, sejam a sensibilidade, a educação, o conhecimento, a saúde mental e física, a criatividade, as artes, a paz e o amor, e não o ódio, as violências, a ideologização, a banalidade da vida. E o Kung Fu pode ser uma destas armas. Por isso, enquanto escola/associação taoista e de Kung Fu, trabalhamos para isso.

Professor Herman Silvani.



·         Textos relacionados:

Análise sobre ações não defensivas e o uso das armas de fogo:


Wu De (código de ética) AFWK:


Nós e o mundo: “ o espírito de nosso tempo...”:


Wing Tjun, arte de resistência:




Referência:

TSE, Lao. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude; tradução direta do chinês e comentários de Wu Jyh Cherng; coautoria para transcrição, edição e adaptação dos textos Marcia Coelho de Souza – Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.