A morte de um instrutor de arte marcial (Krav Magá) na minha
cidade, homem de meia idade, me leva para uma antiga reflexão e discussão no
meio dito ‘marcial’ – e na vida cotidiana como um todo: ‘Esforço físico - em
excesso - faz bem ou não para a saúde?’
Pratico, estudo ou treino Wing Tjun (sistema defensivo de
Kung Fu) e Chi Kung faz muitos anos, de uma forma ou de outra, diariamente. Ou
seja, não necessariamente a partir do movimento físico com técnica marcial
empregada. Por ser taoista (filosoficamente e espiritualmente falando), tendo
nossa escola/associação base neste conhecimento ou filosofia oriental milenar,
busco sempre o ‘equilíbrio’, a ‘naturalidade’ (mas confesso que nem sempre
consigo), tanto na prática quanto na vida, e nunca a superficialidade ou o ‘excesso’,
pois evitar os excessos é evitar o desequilíbrio, seja ele físico, mental ou
espiritual/energético. E é disso que falo: ‘energia’ (energia interna e não
força externa). * Conste aqui que, taoismo não se reduz a uma 'religião' como muitos e o senso comum dizem ou acreditam. Cito o taoismo enquanto um grande e profundo conhecimento, uma filosofia, uma prática de vida milenar, nativa e oriental, que além do fator 'espiritual', possui o fator 'científico' (praxis).
No taoismo temos um conceito fundamental, que é o de ‘energia
vital’ ou ‘sopro vital’, o Chi (também Qi - no Japão Ki e na Índia Prana). É esta
energia que fornece vida para os seres animados (animais e plantas), sendo a
morte física, o esgotamento do Chi nos corpos. É como uma bateria que alimenta
a vida em nós. Para a manutenção do Chi, precisamos manter certas práticas e
cultivos cotidianos. Entre eles, uma alimentação que se busque saudável e
equilibrada, uma mente clara, flexível e também equilibrada, e um corpo também
flexível e equilibrado. Isso garantirá uma espiritualidade equilibrada (ideia
de ‘todo’ ou ‘unidade’), e assim, uma boa energia para equilibrar também a
existência, a vida. Mente, corpo e energia integrados nesta busca por equilíbrio,
para nós é o que garante uma vida mais plena e saudável (nos seus vários
âmbitos). E isso, na prática ou vida ‘marcial’, não é diferente.
Excessos de músculos ou uma ‘aparência’ saudável ou atlética,
não é sinônimo de saúde, boa energia, ou de energia e vida equilibradas. Nisso,
lembrei de uma obra intitulada ‘Esporte mata!’, do médico José Roiz, onde ele
anota que “muito dos exercícios
praticados são desnecessários porque os realizamos espontaneamente em nossas
atividades cotidianas”. * De forma alguma estou defendendo a ideia de que não se deva praticar esportes, ou que todo o esporte ou atividade física é maléfica à saúde (para uma melhor compreensão do que falo, indico ler o livro, constando que ele é uma perspectiva, e não uma 'verdade absoluta', como quase tudo).
Além do corpo físico, daquilo que é externo, temos a mente e
a própria energia que sustenta este corpo, ou seja, aquilo que é interno, que
ninguém vê, mas está aqui. E esta integração equilibrada entre mente, corpo e
energia, também chamamos de ‘espírito’. Quando mente e corpo, ao invés de
estarem em harmonia, integrados, equilibrados, estão em desarmonia,
desintegrados ou desequilibrados, é sinal de que nossa energia vital, o Chi,
está fraca. Diferente do que dizem alguns cientistas médicos ocidentais e o
discurso sobre a ‘saúde perfeita’, proferido ou reproduzido por alguns
educadores físicos, atletas, e pela publicidade ou ideologia do ‘mercado do
corpo’, discursos que fazem encher academias, simplesmente praticar esporte ou se
empenhar em esforços físicos, não garante boa saúde. Ou seja, a partir do nosso
viés filosófico, a atividade física não garante o equilíbrio necessário para
que esta saúde seja real ou plena. Ao contrário, muitas vezes, o esforço
ultrapassa o limite da necessidade, o que, para o taoismo, gera desequilíbrio e
adoece (corpo e/ou mente). Na principal obra taoista, o Tao Te Ching (livro do
caminho e da virtude) de Lao Tse, está anotado: “Todo excesso é perverso”, ou
seja, tudo o que for em demasia, o que foge da necessidade e da ‘naturalidade’,
acaba gerando deficiência ou desgaste. Por isso, enquanto praticantes de arte
marcial ou atividade física, não nos prendemos em discursos ou aparências, mas
sim, naquilo que vivemos na prática, estudamos e conhecemos, para além do senso
comum e dos discursos mercadológicos ou ideológicos. Ou seja, ao invés da
cobiçada vitória individual que ultrapassa limites – que tem relação com o ‘ego’
(ou o discurso sobre isso), nos movemos tendo em vista e respeitando os
limites, pois são eles que nos apontam até onde podemos ir na nossa prática
que, limitada, nos integra à certa ‘naturalidade’ da vida, sendo que, toda prática
é circundada de limites, e são eles, os limites, indicadores do equilíbrio
necessário para a vida.
No nosso ‘modo’ de Wing Tjun, a flexibilidade é muito mais
importante do que a rigidez, tanto no quesito físico como no mental. Por isso
também praticamos o Chi Kung (cultivo de energia), e elementos do Tai Chi
Chuan, como conhecimento integrados ao WT. Nisso, nosso sistema, além de ‘externo’
é ‘interno’ (leia-se ‘arte interna’), o que aprimora consideravelmente a
prática ‘marcial’. É inconcebível para nós a ingestão de anabolizantes ou
quaisquer outras drogas que influem na estrutura física, pois ao mesmo tempo,
elas sugam ou diminuem nosso Chi. Também não compactuamos com disputas de ego e
físicas, nem discursos motivacionais que apontam para uma pretensa e subjetiva ‘vitória
na vida’ ou sob si próprio, pois temos a consciência que a vida não é para ser
vencida, mas para ser vivida, experienciada, ou seja, ela é o que é, e nós,
seres que a compõe.
As suspeitas da morte do instrutor, segundo noticiosos,
recaem sobre uma suposta ‘morte natural’ ou devido ao uso de anabolizantes (o
motivo desta reflexão) – mas talvez, numa perspectiva taoista, recaem sobre os
excessos.
Talvez, a morte do instrutor não tenha relação ‘direta’ com
atividades físicas, ‘medicamentos’ ou alimentação (mas pode ter ‘indireta’),
mas com certeza, a partir da concepção taoista, tem com o Chi, ou seja, com a
energia interna vital. E esta energia está no cotidiano, na vida, como um todo,
no alimento, no ar, nas relações sociais, no fator cultural (modo de vida), ou
seja, nas práticas, sejam elas marciais ou cotidianas, onde corpo e mente
desequilibrados, como já foi dito acima, resultam numa energia ou espírito
desequilibrado, o que pode, no mínimo, somar para o fim da vida.
Conhecia o instrutor em questão, como também sua prática
marcial, e mesmo não tendo afinidades com ela (nem uma relação próxima com ele),
sinto muito, pois trata-se de um ser humano, de meia idade (relativamente
jovem), que poderia ainda ter muito o que viver, aprender e ensinar. A causa mortis ainda está sendo levantada.
Talvez em breve seja divulgada, e saberemos o motivo principal (ou não). Enfim.
Meus sentimentos aos familiares, amigos/as e alunos/as. E que este texto
cumpra, nem que seja em partes, seu objetivo, que é reflexivo, sobre aquele que
é nosso bem maior, a vida.
* Conste que esta reflexão é a partir da minha concepção pessoal e da nossa escola e estilo de Kung Fu, e tem bor base conceitos taoistas.
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