segunda-feira, 16 de agosto de 2021

As formas, rotinas ou kati’s no Kung Fu: para que servem?

Volta e meia alguém me faz esta pergunta. Existem professores, praticantes ou entusiastas de ‘artes marciais’ que dizem que as formas são simplesmente coreografias, e que por isso nas suas academias ou escolas não as praticam ou treinam. Afirmar isso é não compreender ou nunca ter chegado ao ‘espírito ou essência da prática’ como algo mais profundo do que a luta (que é apenas ‘um aspecto’ do todo que é o Kung Fu). Não vou falar de outros estilos aqui, me manterei falando do sistema Wing Tjun (Wing e Weng Chun), onde as formas são muito mais do que meras coreografias ou performances, acreditando que em muitos estilos e escolas também.

Dentro das formas estão guardados alguns ‘segredos’ do sistema. Nisso, elas servem (além de treino para refinar o praticante), para guardar o estilo ou o que caracteriza o sistema, ou seja, as posturas, movimentos, técnicas e conceitos que, integrados, constituem o ‘todo’, no caso: o próprio sistema. No WT não há movimento ou postura aleatórios ou alheios, sem uma utilização, tudo é fundamentado a partir dos conceitos que vão refletir no movimento, na técnica, na ação ou aplicação, ou seja, na forma em si. E isso envolve desde aterramento/enraizamento, equilíbrio, flexibilidade, alongamento, concentração e fluxo de energia, trabalho de tendões, articulações, até respiração (entre outros ‘detalhes’) – inclusive, as formas de caráter mais ‘interno’ são como Chi Kung’s (cultivo de energia), além do seu fator ‘externo’. As seções (trechos) das formas no WT são postas ou praticadas e aplicadas em sequência, porém, também são fragmentadas e utilizadas individualmente conforme a necessidade do momento, o que confere uma grande dinâmica e variação na movimentação e aplicação do sistema.  

Formas são ‘representações simbólicas reais do real’. Ou seja, ao mesmo tempo são movimentações simbólicas e treino para aplicações reais. Sem as formas não há o sistema Wing Tjun, é nelas que ele existe como tal, em que possui sua identidade. E diferente do que alguns pensam, as formas não são prisões ou limitadoras, muito pelo contrário, são leques de possibilidades que podem ser praticadas ou treinadas por uma variedade de motivos e reflexos na realidade. Isso tudo vai depender do modo como o mestre ou professor trata, utiliza e trabalha as formas dentro da sua escola. O GM Liu Pai Lin (Tai Chi Chuan), dizia que ‘a forma é feita para ser de(s)formada, para depois novamente se formar’. Ou seja, a partir de um prisma taoista, é um movimento, um processo, um Caminho e não um fim. A ordem só existe porque existe o Caos, e vice-versa. E é justamente por isso a forma é fundamental no sistema WT.

Na linhagem, estilo ou ‘modo’ Yip Man de Wing Chun (o mais popularizado do mundo), existem 3 formas fundamentais de ‘mãos livres ou limpas’: Siu Nim Tao, Chun Kiu e Biu Jee. Muitos sifu’s do estilo narram como se esta fosse a única e/ou verdadeira organização histórica do sistema, o que não é a realidade. Existem diferentes linhagens, vertentes, estilos ou modos que possuem outras formas além destas três mais populares. No currículo da nossa escola (AFWK), por exemplo, possuímos 5 formas de mãos livres, onde só as duas primeiras também estão na linhagem Yip Man (e com algumas diferenças). Esta variação entre escolas, estilos ou linhagens vai depender das raízes ou fontes do conhecimento, em certo grau também das adequações, adaptações, transformações que as formas sofrem através do tempo.

Por fim, quando se pratica a forma, somos integrados ao estilo ou sistema, onde o corpo e a mente tornam-se partes deste todo que já não se separa mais. Gosto de chamar esta integração de ‘incorporação’, que acontece quando passamos a fazer parte de algo maior, o que no taoismo chamamos também de ‘espírito’. Nisso, nossa mente, nosso corpo e nossa energia formam... o que nem precisa(ria) ter nome.


* Chum Kiu (vídeo demonstrativo - sifu Herman): 2ª forma que demarca o 2º nível do currículo Fluir Wing Tjun da AFWK):

https://www.youtube.com/watch?v=BWJcDSQRRBU



sexta-feira, 30 de julho de 2021

Wing Chun não é luta!

O sistema Wing Chun não foi criado para o ringue. Ou seja, não é um estilo (dentro do que muitos chamam ‘arte marcial’ ou Kung Fu) desenvolvido para lutas esportivas ou mesmo para uma luta ‘de igual para igual’ em outro contexto. No WT (abreviação para Wing Chun), o ‘combate simbólico’ se restringe ao treino, e para entender seu intuito enquanto sistema ou estilo, é necessário observarmos e considerarmos suas características (características estas que dão significado e localizam devidamente o estilo). Para que entendamos esta questão, precisamos fundamentalmente olharmos, considerarmos e refletirmos a história do sistema.

O Wing Chun tem sua origem no final do século XVII ou início do século XVIII (por volta de 1700) no sul da China, e foi desenvolvido na passagem do tempo, através do que na história chamamos de ‘processo histórico’ (provavelmente por mais de uma - ou várias pessoas, com base em outros estilos já existentes e praticados, como o Bai He e o Emei), caracterizado como um ‘sistema marcial proativo' (antecipatório e defensivo). Ou seja, à grosso modo, foi criado para que pessoas mais vulneráveis ou 'fracas' pudessem se defender de pessoas mais 'fortes'. Para compreender melhor isso, vamos ao contexto histórico necessário.

A China de onde nasce o WT vivia o domínio manchu (dinastia Qing), onde o exército imperial agia de forma abrupta sobre as comunidades ou vilas. Dentro desta realidade de imposição e violência por parte do governo imperial e seu exército, é que surge o WT, como uma forma de 'autodefesa' daqueles habitantes do sul da China, sendo um sistema pensado para a melhor adaptação possível, onde agir rapidamente e com contundência, pudesse garantir certa integridade aos cidadãos oprimidos que praticassem esta arte, o que faz do WT uma ‘arte defensiva de resistência’.

Muitos resistiram e sobreviveram, deixando este rico conhecimento como herança. Os anos se passaram, a dinastia Qing caiu e a China alcançou a república (1911/1912). Com o tempo o sistema WT sofreu modificações e principalmente mudanças no entendimento ou interpretação do seu fundamento. Nestes processo, muitos passaram a admitir o WT como uma 'luta', no seu sentido de combate de igual para igual (troca de golpes). Porém, não é esta a sua 'essência'. Atualmente, alguns entusiastas vinculam o sistema com a luta esportiva, o que o distancia ainda mais do seu fundamento ou da sua essência (isso não significa que alguns de seus aspectos não possam ser usados nas lutas esportivas ou treinos com 'troca'/sparring). Nisso, vemos por aí vídeos onde supostos 'lutadores' de WT enfrentam lutadores de outros estilos. Geralmente perdem a luta. As causas disso estão relacionadas a dois motivos básicos:

1. O praticante ('lutador') não é preparado para o ringue, tatame ou octógono, pois não treina pra isso, não é atleta, portanto não tem condicionamento físico e habilidade pra uma luta (troca de golpes em par de igualdade, obedecendo as regras do jogo);

2. O WT não foi criado para o ringue ou para a luta (no seu sentido de ‘disputar algo’). O fundamento do sistema é a ‘proatividade’ e a 'autodefesa', ou seja, garantir a integridade do praticante no cotidiano caótico, portanto, desregrado, o que o leva a ser mais estratégico e defensivo, além de 'pontual' ou econômico no seu desgaste emocional e físico. Por isso, não é em vão que o sistema é conhecido como 'econômico' (economia de movimentos e energia/força), o que é bem o oposto de uma luta, seja ela esportiva ou não.

Portanto, estes vídeos e discursos, estas tentativas de análises que incansavelmente e repetidamente são vinculados na internet, não trazem a real condição e fundamento ou essência do sistema WT, que é muito efetivo quando bem compreendido, praticado/estudado/treinado e bem aplicado. Os praticantes que não possuem este discernimento, não conhecem a fundo aquilo que praticam, talvez por olharem somente para o externo, a partir das aparências ou dos discursos de 'senso comum' sobre o WT que se disseminaram.

Por isso, muitas das manifestações a respeito do sistema que pipocam por aí, são frutos de uma má compreensão, entendimento e conhecimento do mesmo. E é por isso que digo que Wing Chun não é 'luta', pois essencialmente não foi desenvolvido para este fim. Sua origem, história e características mostram isso para quem o estuda para além dos estereótipos e discursos, sejam eles ideológicos ou publicitários. WT não é jogo, trocação, luta de igual para igual. Quem o pensa assim ou treina pra isso, está equivocado, não compreende o sistema. O que pode acontecer e acontece, inclusive com muito sucesso, é o uso de ‘alguns aspectos, elementos e técnicas do WT’ em lutas esportivas, mas não o sistema como um todo, sendo que muitas das suas principais técnicas e características não podem ser utilizadas no ‘jogo’. Por isso, sem saber seu contexto histórico e pra que ele foi desenvolvido, não tem como falar dele com profundidade. Lutar dentro de um ringue é bem diferente do que (re)agir dentro de um ônibus ou de uma balada, assim como foi no passado treinar para se defender das investidas dos soldados Qing ou de alguém no cotidiano e hoje treinar em academia para disputar esportivamente.

Portando, o WT não é um estilo de 'luta' (não de igual para igual ou esportiva). Dá para adapta-lo ao ringue usando alguns dos seus aspectos, elementos, técnicas, mas não seu ‘todo’. Percebam que lutadores no MMA variam técnicas provindas de outros estilos no ringue, pois nem tudo dos estilos pode ser utilizado e é eficiente no combate simbólico (luta regrada esportiva), já em outros espaços, situações ou contextos muda a configuração referente ao uso destes conhecimentos. E é isso, na vida diária e seus riscos, não existe uma condição dada, fixa. O que temos é repertório, variação, dinâmica, caos e fluidez, onde o meio também é parte determinante do resultado.

Nisso, dá pra se dizer que Wing Chun é a arte de 'não lutar', mas de se defender, onde se busca rapidamente sair do risco, no intento de manter-se a integridade. Esta é sua grande característica sócio-histórica, e pra isso é que ele foi desenvolvido, portanto, suas características originais são estas. Quem estuda com profundidade o sistema o conhece, e portanto, sabe discernir entre o que é estereótipo e autenticidade referente a ele. Assim como um artista marcial que realmente estuda, sabe discernir demonstração técnica de luta esportiva e de situação real de rua. Dizer, generalizando, que um estilo é ruim sem saber a diferença entre demonstração, luta esportiva e auto-defesa (por mais subjetivo ou relativo que isso seja), é no mínimo falta de sensibilidade e conhecimento, coisa de quem precisa estudar, pensar, experienciar, conhecer mais. Conclusões precipitadas e pré-julgamentos são coisas de entusiasta, não de um praticante ou professor bons que dignificam a arte e o conhecimento. Por isso, se você realmente é um praticante ou professor de Wing Chun, deve ter este fundamental discernimento.

Enfim, espero que alguns entusiastas das artes marciais, praticantes e professores de ‘artes marciais’, ao invés de seguirem insistindo nesta distorção conceitual e histórica que reduz o sistema Wing Chun, tenham a consciência e o bom senso, e adotem atitudes que dignifiquem o conhecimento, e não o dissimulem ou banalizem. Cair na retórica, no discurso, no jogo do 'espetáculo midiático' contemporâneo difundidos por ‘lutas filmadas’ e disponibilizadas no youtube, sem os devidos contextos e seus fundamentais detalhes (alguns levantados aqui), além de suas intenções ideológicas, significa falta de profundidade no conhecimento que, muitas vezes até se pratica, mas não se compreende na sua essência. Por isso, estudar e pensar mais para compreender e adquirir o necessário discernimento e coerência, e reproduzir menos incompreensões, é um dos caminhos da sabedoria em Kung Fu.  

 

* Herman Gomes Silvani, praticante e professor de Wing Tjun e Chi Kung na AFWK, praticante de Tai Chi Chuan, historiador e professor de filosofia, sociologia e linguagens poéticas.