quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Violência potencializada pela irresponsabilidade social do ‘mestre’

 

“Quem é culpado dessa violência \ A sociedade está em decadência...”

 Começo esta reflexão com o trecho da letra da música ‘Decadência social’ da banda punk paulista DZK para falar de alguns agentes responsáveis pela violência social disseminada no país. Um dos maiores responsáveis (e nos tempos atuais, potencializadores) desta violência que é estrutural e sistêmica, como já aponta o título deste texto, é o próprio Estado, ou seja, o governo, principalmente o atual, pois ele, desde seu início, é um agente motivador a partir de seus discursos públicos e das ações políticas de seus apoiadores, sobre tudo no nome do presidente da república e sua prole. Outro agente é cultural, ou seja, àquilo que se promove culturalmente pelos meios sociais e midiáticos (TV, rádio, internet: youtube e redes sociais e algumas entidades ditas sociais), como conteúdo e discurso, o que alimenta a falta de ‘consciência de classe’ e social. Dado este panorama inicial, vamos à questão que é objetivo deste texto. 

Iniciei na prática e estudo das ‘artes marciais’ no início da década de 1990, ainda na pré-adolescência. Atualmente, além de praticante\estudante, também sou professor de um estilo que se chama Wing Tjun (sistema de Kung Fu com ênfase em ‘autodefesa’). Neste percurso, foram três vezes que me envolvi em situações de agressões coletivas, interferindo nas agressões ao lado do agredido. A primeira vez foi em meados dos anos 90, quando no entorno da escola em que eu estudava, três garotos brigavam contra um só que eu conhecia de vista por vê-lo sempre perambulando por lá. Como já treinava ‘arte marcial’ não pude ficar alheio àquela cena e acabei ajudando o garoto que lembro, se defendia muito bem, porém a desvantagem dele na briga era nítida. Nesta situação tive contato físico, mas não me machuquei (ganhei algum pequeno hematoma e algumas dores sutis pelo contato corporal). Por fim, acabamos logrando êxito, afugentando os três agressores. Acabei ficando amigo do garoto que também praticava ‘arte marcial’. Ele habitava uma das periferias mais pobres da cidade e como eu, tinha a pele ‘morena’ ou parda (descendente de caboclos). Noutra feita, já no início dos anos 2000, no centro da cidade, também me envolvi numa situação semelhante, onde também três garotos batiam num só. Desta vez quem estava apanhando, devido a minha intervenção, conseguiu fugir e dois dos agressores vieram em minha direção, onde eu, por minha vez, consegui me afastar sem contato físico, entrando num bar próximo da briga (fazendo jus a um conceito mais amplo de ‘autodefesa’). Na última e terceira vez, mais adiante, na primeira ou segunda década dos anos 2000, o fato foi na quadra de baixo aqui de casa. Mais uma vez, intervi, não pude ver àquela cena que estava virando um linchamento público. Um garoto pobre e, mais uma vez, de pele ‘morena’\parda, que fora flagrado roubando em uma casa próxima da minha, foi pego por populares na rua. Já imobilizado e machucado pela agressão dos ‘populares’, o garoto deitado ao chão suplicava para que as agressões parassem, mas elas continuavam. Algumas pessoas que passavam pelo local paravam seus carros, desciam e batiam no garoto. Deitado e sem condições de reação, levou chutes e até uma tijolada na cabeça. Vendo tamanha covardia e que àquilo poderia se tornar um linchamento (ou estava sendo), um assassinato, lá fui eu, mais uma vez intervir. Desta vez usei só a palavra e então os ‘populares’ pararam, mas não passivamente. Fui agredido com alguns insultos e máximas como: “Porque não leva o vagabundo para sua casa¿”. Chegada a imprensa e a polícia, a maioria dos agressores, covardemente, se dispersaram como se nada tivesse sido com eles. Um policial, cuidadosamente levantou o garoto, e num gesto de desaprovação do ato com o olhar e a cabeça, conduziu ele para a viatura, sem uso da força. Naquele instante pude perceber na prática, como funciona a violência de uma ‘manada motivada’ e sem equilíbrio ou limite no agir. Talvez se nestes casos se eu não tivesse intervindo, (principalmente neste último que envolveu muito mais gente), tivesse acontecido o pior, ou seja, o linchamento, o assassinato, e em ambos os casos, de jovens pobres, pardos e periféricos. Exemplos claros de que a violência neste país é estrutural e sistêmica - e que tem alvo. 

Dado este contexto, desde muito cedo, aprendi que tudo deve ter limite, e que, entre um crime e outro, não deve haver justificativa, ou seja, não se combate um crime com outro (geralmente pior). Como estudante\praticante e professor de ‘arte marcial’, mais de uma vez, em grupos afins na internet, levantei a questão da responsabilidade do professor dentro desta realidade de violências. Boa parte dos praticantes, professores e entusiastas criticaram minha posição, ignorando o fato de que técnicas marciais e a falta de sensibilidade e discernimento no meio dito marcial podem ser potencializadores da violência cotidiana, geralmente apontada contra as classes, origens, gêneros ou identidades mais desfavorecidas, que são os grandes alvos das violências no Brasil, sejam elas simbólicas ou físicas.

Depois do caso do congolês linchado\assassinado no Rio de Janeiro, um colega praticante e professor de Kung Fu fez um vídeo refletindo sobre a responsabilidade do professor ou das escolas de ‘artes marciais’ frente a esta realidade nacional, o que me motivou a escrever este texto. No triste fato em questão, vendo o vídeo, um dos agressores demonstrou conhecer técnicas marciais quando derrubou e imobilizou a vítima para que os demais a espancassem até a morte. E foi a partir deste fato que Guarino (o praticante e professor que cito) fez seu vídeo refletindo a problemática. Muitos praticantes e professores (ou que se auto-intitulam isso) nas redes sociais e youtube (provavelmente também nas suas escolas\academias de artes marciais), se eximem da responsabilidade de estarem orientando ou ensinando técnicas que podem ser usadas para machucar e até matar. Fazendo isso são potencializadores destas violências e desta situação deplorável a qual vivemos. Alguns deles, armamentistas, motivam o uso de lâminas e armas de fogo, além das técnicas que ensinam nas suas academias ou por vídeo, sem o menor pudor, constrangimento, limite, cuidado ou responsabilidade em tratar temas como este. No pretexto de ‘defesa pessoal’, ‘autodefesa’ ou ‘legítima defesa’, vendem seus peixes sem a menor restrição e bom senso no que dizem e motivam, pois dizem a partir de discursos e retóricas subjetivas para se livrarem das suas responsabilidades. Discursos muitas vezes carregados de ideologias, mesmo que disfarçados nas sutilezas, de ódio ao outro, paranoias, machismo, xenofobia, etc. Eu até diria que alguns destes discursos beiram o fascismo (ou são fascistas).

Em suma, se você, colega professor, não vincular a questão social e cultural com seu conhecimento e sua aula de ‘arte marcial’, refletindo as mazelas da nossa sociedade (questão de sensibilidade), na busca da formação do bom caráter e cidadania, pelo equilíbrio de ser e estar dos seus alunos, para além do quesito técnico ou preparo físico, você pode estar contribuindo na produção de ‘armas’ (mentes e corpos) que podem ser usadas, não para ‘parar a guerra’ (princípio de algumas escolas de Kung Fu), mas para ‘fazerem a guerra’, armando pessoas para atos de covardia, como os citados acima e vistos no vídeo, como no recente caso do assassinato do jovem africano no RJ. O Estado e a justiça também deveriam agir para diminuir este problema que é de todos, principalmente daqueles que detém o ‘saber fazer’ e orientam, ensinam e motivam os outros. Nisso, a pergunta que nos cabe é: “dentro da sua prática ou vivência marcial, na sua escola, na relação com seus colegas e professor, também se trabalha a mente, a reflexão, a sensibilidade, a espiritualidade, ou apenas a parte técnica e física¿”. Isso faz toda a diferença, e em vários sentidos, pois é uma questão de sensibilidade e equilíbrio, princípios que deve(ria)m ser básicos em qualquer prática ou conhecimento ‘marcial’.



segunda-feira, 16 de agosto de 2021

As formas, rotinas ou kati’s no Kung Fu: para que servem?

Volta e meia alguém me faz esta pergunta. Existem professores, praticantes ou entusiastas de ‘artes marciais’ que dizem que as formas são simplesmente coreografias, e que por isso nas suas academias ou escolas não as praticam ou treinam. Afirmar isso é não compreender ou nunca ter chegado ao ‘espírito ou essência da prática’ como algo mais profundo do que a luta (que é apenas ‘um aspecto’ do todo que é o Kung Fu). Não vou falar de outros estilos aqui, me manterei falando do sistema Wing Tjun (Wing e Weng Chun), onde as formas são muito mais do que meras coreografias ou performances, acreditando que em muitos estilos e escolas também.

Dentro das formas estão guardados alguns ‘segredos’ do sistema. Nisso, elas servem (além de treino para refinar o praticante), para guardar o estilo ou o que caracteriza o sistema, ou seja, as posturas, movimentos, técnicas e conceitos que, integrados, constituem o ‘todo’, no caso: o próprio sistema. No WT não há movimento ou postura aleatórios ou alheios, sem uma utilização, tudo é fundamentado a partir dos conceitos que vão refletir no movimento, na técnica, na ação ou aplicação, ou seja, na forma em si. E isso envolve desde aterramento/enraizamento, equilíbrio, flexibilidade, alongamento, concentração e fluxo de energia, trabalho de tendões, articulações, até respiração (entre outros ‘detalhes’) – inclusive, as formas de caráter mais ‘interno’ são como Chi Kung’s (cultivo de energia), além do seu fator ‘externo’. As seções (trechos) das formas no WT são postas ou praticadas e aplicadas em sequência, porém, também são fragmentadas e utilizadas individualmente conforme a necessidade do momento, o que confere uma grande dinâmica e variação na movimentação e aplicação do sistema.  

Formas são ‘representações simbólicas reais do real’. Ou seja, ao mesmo tempo são movimentações simbólicas e treino para aplicações reais. Sem as formas não há o sistema Wing Tjun, é nelas que ele existe como tal, em que possui sua identidade. E diferente do que alguns pensam, as formas não são prisões ou limitadoras, muito pelo contrário, são leques de possibilidades que podem ser praticadas ou treinadas por uma variedade de motivos e reflexos na realidade. Isso tudo vai depender do modo como o mestre ou professor trata, utiliza e trabalha as formas dentro da sua escola. O GM Liu Pai Lin (Tai Chi Chuan), dizia que ‘a forma é feita para ser de(s)formada, para depois novamente se formar’. Ou seja, a partir de um prisma taoista, é um movimento, um processo, um Caminho e não um fim. A ordem só existe porque existe o Caos, e vice-versa. E é justamente por isso a forma é fundamental no sistema WT.

Na linhagem, estilo ou ‘modo’ Yip Man de Wing Chun (o mais popularizado do mundo), existem 3 formas fundamentais de ‘mãos livres ou limpas’: Siu Nim Tao, Chun Kiu e Biu Jee. Muitos sifu’s do estilo narram como se esta fosse a única e/ou verdadeira organização histórica do sistema, o que não é a realidade. Existem diferentes linhagens, vertentes, estilos ou modos que possuem outras formas além destas três mais populares. No currículo da nossa escola (AFWK), por exemplo, possuímos 5 formas de mãos livres, onde só as duas primeiras também estão na linhagem Yip Man (e com algumas diferenças). Esta variação entre escolas, estilos ou linhagens vai depender das raízes ou fontes do conhecimento, em certo grau também das adequações, adaptações, transformações que as formas sofrem através do tempo.

Por fim, quando se pratica a forma, somos integrados ao estilo ou sistema, onde o corpo e a mente tornam-se partes deste todo que já não se separa mais. Gosto de chamar esta integração de ‘incorporação’, que acontece quando passamos a fazer parte de algo maior, o que no taoismo chamamos também de ‘espírito’. Nisso, nossa mente, nosso corpo e nossa energia formam... o que nem precisa(ria) ter nome.


* Chum Kiu (vídeo demonstrativo - sifu Herman): 2ª forma que demarca o 2º nível do currículo Fluir Wing Tjun da AFWK):

https://www.youtube.com/watch?v=BWJcDSQRRBU



sexta-feira, 30 de julho de 2021

Wing Chun não é luta!

O sistema Wing Chun não foi criado para o ringue. Ou seja, não é um estilo (dentro do que muitos chamam ‘arte marcial’ ou Kung Fu) desenvolvido para lutas esportivas ou mesmo para uma luta ‘de igual para igual’ em outro contexto. No WT (abreviação para Wing Chun), o ‘combate simbólico’ se restringe ao treino, e para entender seu intuito enquanto sistema ou estilo, é necessário observarmos e considerarmos suas características (características estas que dão significado e localizam devidamente o estilo). Para que entendamos esta questão, precisamos fundamentalmente olharmos, considerarmos e refletirmos a história do sistema.

O Wing Chun tem sua origem no final do século XVII ou início do século XVIII (por volta de 1700) no sul da China, e foi desenvolvido na passagem do tempo, através do que na história chamamos de ‘processo histórico’ (provavelmente por mais de uma - ou várias pessoas, com base em outros estilos já existentes e praticados, como o Bai He e o Emei), caracterizado como um ‘sistema marcial proativo' (antecipatório e defensivo). Ou seja, à grosso modo, foi criado para que pessoas mais vulneráveis ou 'fracas' pudessem se defender de pessoas mais 'fortes'. Para compreender melhor isso, vamos ao contexto histórico necessário.

A China de onde nasce o WT vivia o domínio manchu (dinastia Qing), onde o exército imperial agia de forma abrupta sobre as comunidades ou vilas. Dentro desta realidade de imposição e violência por parte do governo imperial e seu exército, é que surge o WT, como uma forma de 'autodefesa' daqueles habitantes do sul da China, sendo um sistema pensado para a melhor adaptação possível, onde agir rapidamente e com contundência, pudesse garantir certa integridade aos cidadãos oprimidos que praticassem esta arte, o que faz do WT uma ‘arte defensiva de resistência’.

Muitos resistiram e sobreviveram, deixando este rico conhecimento como herança. Os anos se passaram, a dinastia Qing caiu e a China alcançou a república (1911/1912). Com o tempo o sistema WT sofreu modificações e principalmente mudanças no entendimento ou interpretação do seu fundamento. Nestes processo, muitos passaram a admitir o WT como uma 'luta', no seu sentido de combate de igual para igual (troca de golpes). Porém, não é esta a sua 'essência'. Atualmente, alguns entusiastas vinculam o sistema com a luta esportiva, o que o distancia ainda mais do seu fundamento ou da sua essência (isso não significa que alguns de seus aspectos não possam ser usados nas lutas esportivas ou treinos com 'troca'/sparring). Nisso, vemos por aí vídeos onde supostos 'lutadores' de WT enfrentam lutadores de outros estilos. Geralmente perdem a luta. As causas disso estão relacionadas a dois motivos básicos:

1. O praticante ('lutador') não é preparado para o ringue, tatame ou octógono, pois não treina pra isso, não é atleta, portanto não tem condicionamento físico e habilidade pra uma luta (troca de golpes em par de igualdade, obedecendo as regras do jogo);

2. O WT não foi criado para o ringue ou para a luta (no seu sentido de ‘disputar algo’). O fundamento do sistema é a ‘proatividade’ e a 'autodefesa', ou seja, garantir a integridade do praticante no cotidiano caótico, portanto, desregrado, o que o leva a ser mais estratégico e defensivo, além de 'pontual' ou econômico no seu desgaste emocional e físico. Por isso, não é em vão que o sistema é conhecido como 'econômico' (economia de movimentos e energia/força), o que é bem o oposto de uma luta, seja ela esportiva ou não.

Portanto, estes vídeos e discursos, estas tentativas de análises que incansavelmente e repetidamente são vinculados na internet, não trazem a real condição e fundamento ou essência do sistema WT, que é muito efetivo quando bem compreendido, praticado/estudado/treinado e bem aplicado. Os praticantes que não possuem este discernimento, não conhecem a fundo aquilo que praticam, talvez por olharem somente para o externo, a partir das aparências ou dos discursos de 'senso comum' sobre o WT que se disseminaram.

Por isso, muitas das manifestações a respeito do sistema que pipocam por aí, são frutos de uma má compreensão, entendimento e conhecimento do mesmo. E é por isso que digo que Wing Chun não é 'luta', pois essencialmente não foi desenvolvido para este fim. Sua origem, história e características mostram isso para quem o estuda para além dos estereótipos e discursos, sejam eles ideológicos ou publicitários. WT não é jogo, trocação, luta de igual para igual. Quem o pensa assim ou treina pra isso, está equivocado, não compreende o sistema. O que pode acontecer e acontece, inclusive com muito sucesso, é o uso de ‘alguns aspectos, elementos e técnicas do WT’ em lutas esportivas, mas não o sistema como um todo, sendo que muitas das suas principais técnicas e características não podem ser utilizadas no ‘jogo’. Por isso, sem saber seu contexto histórico e pra que ele foi desenvolvido, não tem como falar dele com profundidade. Lutar dentro de um ringue é bem diferente do que (re)agir dentro de um ônibus ou de uma balada, assim como foi no passado treinar para se defender das investidas dos soldados Qing ou de alguém no cotidiano e hoje treinar em academia para disputar esportivamente.

Portando, o WT não é um estilo de 'luta' (não de igual para igual ou esportiva). Dá para adapta-lo ao ringue usando alguns dos seus aspectos, elementos, técnicas, mas não seu ‘todo’. Percebam que lutadores no MMA variam técnicas provindas de outros estilos no ringue, pois nem tudo dos estilos pode ser utilizado e é eficiente no combate simbólico (luta regrada esportiva), já em outros espaços, situações ou contextos muda a configuração referente ao uso destes conhecimentos. E é isso, na vida diária e seus riscos, não existe uma condição dada, fixa. O que temos é repertório, variação, dinâmica, caos e fluidez, onde o meio também é parte determinante do resultado.

Nisso, dá pra se dizer que Wing Chun é a arte de 'não lutar', mas de se defender, onde se busca rapidamente sair do risco, no intento de manter-se a integridade. Esta é sua grande característica sócio-histórica, e pra isso é que ele foi desenvolvido, portanto, suas características originais são estas. Quem estuda com profundidade o sistema o conhece, e portanto, sabe discernir entre o que é estereótipo e autenticidade referente a ele. Assim como um artista marcial que realmente estuda, sabe discernir demonstração técnica de luta esportiva e de situação real de rua. Dizer, generalizando, que um estilo é ruim sem saber a diferença entre demonstração, luta esportiva e auto-defesa (por mais subjetivo ou relativo que isso seja), é no mínimo falta de sensibilidade e conhecimento, coisa de quem precisa estudar, pensar, experienciar, conhecer mais. Conclusões precipitadas e pré-julgamentos são coisas de entusiasta, não de um praticante ou professor bons que dignificam a arte e o conhecimento. Por isso, se você realmente é um praticante ou professor de Wing Chun, deve ter este fundamental discernimento.

Enfim, espero que alguns entusiastas das artes marciais, praticantes e professores de ‘artes marciais’, ao invés de seguirem insistindo nesta distorção conceitual e histórica que reduz o sistema Wing Chun, tenham a consciência e o bom senso, e adotem atitudes que dignifiquem o conhecimento, e não o dissimulem ou banalizem. Cair na retórica, no discurso, no jogo do 'espetáculo midiático' contemporâneo difundidos por ‘lutas filmadas’ e disponibilizadas no youtube, sem os devidos contextos e seus fundamentais detalhes (alguns levantados aqui), além de suas intenções ideológicas, significa falta de profundidade no conhecimento que, muitas vezes até se pratica, mas não se compreende na sua essência. Por isso, estudar e pensar mais para compreender e adquirir o necessário discernimento e coerência, e reproduzir menos incompreensões, é um dos caminhos da sabedoria em Kung Fu.  

 

* Herman Gomes Silvani, praticante e professor de Wing Tjun e Chi Kung na AFWK, praticante de Tai Chi Chuan, historiador e professor de filosofia, sociologia e linguagens poéticas.



 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Wing Chun esportivo: um debate

A temática a seguir diz respeito a esportização e competição (adaptação do sistema Wing Chun ao ‘combate simbólico’, regrado e competitivo, e no que isso implica na condição essencial do sistema.

* Conteúdo proveniente de um grupo sobre Wing Chun na rede social


Debate entre o professor Herman Silvani (HS) e outro professor que vamos chamar de MA (na íntegra):

HS: é preciso deixar claro que o sistema não foi desenvolvido pra isso.. e que perde sua essência (suas mais contundentes aplicações) quando o se adapta para lutas competitivas (regradas e esportivas)...

MA: Wing Chun é um sistema adaptativo, se for bem trabalhando pode aflorar um lado esportivo, que vai melhorar ainda mais a moral combativa do Kung Fu tradicional. Tudo é questão de saber separar, mas esse já é um bom ponta pé inicial!

HS: ao longo do tempo os aspectos mais profundos do sistema foram ficando pra trás.. não é um sistema desenvolvido para luta esportiva, mas sim, alguns de seus aspectos podem ser usados no 'combate simbólico' (luta esportiva).. porém, não é o sistema em sua essência e/ou profundidade.. existem escolas que fazem 'lutas regradas' de WT.. assim como elementos do sistema são usados em lutas esportivas pelo mundo (até no MMA).. ele oferece boas contribuições.. mas, integralmente, não é possível, pois ao adaptá-lo se perde boa parte do seu fundamento.. aliás, parte deste fundamento se perdeu ao longo do tempo, e não está presente em muitas escolas ou 'modos' de WT....

MA: Não vai ferir em nada o sistema. Como havia dito é o só saber separar. O lado competitivo vai melhorar e muito o ânimo de muito praticantes, e assim desenvolver ainda mais sua eficiência marcial. Até pq tem muito prática de Kung Fu e principalmente Wing Chun que nunca vez um sparring mais real. O combate vai desatar diversos receios, e devolver muita malícia em uma luta corpo a corpo. E falo mais; desenvolvendo mais o Chi Sao, aprendo com outras famílias e evoluindo.

HS: ferir talvez não, mas diluir suas principais características sim, pelo menos no momento da 'luta'.. por isso penso que o WT não precise disso quando bem estruturado, estudado, compreendido e praticado.. sparring também é 'combate simbólico', assim como a luta esportiva.. só mais um treino.. e não o principal do sistema como muitos acreditam.. aliás, algumas escolas (muito boas, diga-se de passagem) nem fazem sparring.. pelo menos não da forma que mais se vê por aí.. já Chi Sao é outro papo.. este sim é fundamental no sistema.. a maioria que se vê por aí de sparring não é WT.. ao menos que se use as proteções mais seguras para tal, onde se possa trabalhar algumas aplicações fundamentais do sistema.. ainda assim, parte da movimentação é inibida.. ou seja, estas 'adaptações' deixaram o WT a nível de 'luta', mas na sua origem e essência, ele é muito mais do que isso.. quando eu tiver um tempo, pretendo fazer um vídeo falando melhor sobre isso...

MA: Estou para fazer um vídeo TB, porém vou visar no sistema, na parte da luta e funcionalidade combativa e adaptada para qualquer tipo ambiente ou situação!

HS: tá tendo muito mal uso e interpretação do sistema.. não que ele deva ser algo 'puro', pois não é.. porém, a essência, as características internas que o constituíram, assim como sua história e origem, precisam ser valorizadas.. há um discurso de 'modernização' (o que é muito subjetivo e até contraditório), pois o WT é um sistema 'moderno' em sua origem (já que não figura entre os estilos mais antigos).. e dentro deste discurso está uma pretensa 'adaptação' que acaba diluindo ainda mais o que resta do sistema.. é preciso retomar suas origens, sua essência, respeitando e considerando, é claro, as variações, porém, sem cair na onda discursiva da 'modernização' que, como eu já disse, envolve uma pretensa 'adaptação'.. muito do que se anda fazendo neste sentido, não tem 'essência', aí devemos indagar se isso é mesmo WT ou apenas uma figuração dele.. ou então, quem diz praticar WT mas não cultiva sua 'essência original', que assuma que pratica apenas alguns aspectos complementares do WT.. é mais coerente e sincero.. alguns praticantes, professores, pesquisadores, estão afinados com esta essência, outros, buscando-a.. mas, muitos, reproduzem só a mecanicidade do sistema e o senso comum de sua história...

não sou contra a adaptação.. nem a 'esportização' do sistema.. mas, que assumam o fato de que isso não representa o sistema no seu todo e essência...

MA: então guerreiro essa parada de Wing Chun puro não existe, até pq arte Marcial é quase uma coisa viva, que evolui e se transforma com o tempo, quando passa na mão de cada mestre. Entretanto enxergamos a pureza de tão estilos ou sistema, pelo seus movimentos, mecanismo, teorias e principalmente a prática. Sei que muito querem se afirmar se destacando, seja como o mais eficiente, mais poderoso, mais puro ou o melhor, isso vem da nossa consciência humana de autoafirmação ou destaque entre os demais. Na minha humilde opinião arte marcial é uma ferramenta de auto defesa, porém tem td um estudo técnico, filosófico, cultural e até mesmo vertentes espirituais dentro do pacote. Para nos transformamos em pessoas melhores e que vai contribuir com o todo. Bom já falei de mais rs boa sorte com sua Escola, e segui firme e forte no caminho marcial!

HS: sei muito bem disso.. não falei em 'pureza' em momento algum, mas em 'essência', 'origem', 'características' que formam o todo.. conceitos.. é disso que falei (e falo).. certamente arte marcial, assim como cultura é algo vivo.. 'evolui'?.. vejamos.. este é um conceito relativo.. então, o que seria a dita 'evolução do sistema'? essa 'disputa' de melhor ou pior é bastante 'imatura'.. a questão que coloco aqui, é de não tornar o WT um estereótipo.. ele tem história e características que lhe são próprias.. muitas das quais, ao 'adaptar' se perdem.. por isso repito que, 'alguns elementos e/ou aspectos' são possíveis de adaptar, mas não o sistema como um todo.. pois ele é algo.. e este algo é um todo, senão, nem nome teria, e assim, não seria um sistema ou estilo.. não há pureza, mas há essência (que está ligada a origem/história).. eis a questão...

MA: Aos meus olhos consigo vê uma adaptação tranquilamente, mas vai ter que ter ser bem trabalhada e estudada. Não estou falando para transformar Wing Chun em um esporte de combate puramente, mas que possa sair de dentro da sala, e nada melhor que uma competição ou troca amistosa para se entender melhor o sistema e suas qualidades e deficiências em combate.

HS: sim.. a adaptação pode existir.. mas ela não representa o sistema como um todo (repetindo o que já disse).. por isso, o máximo que se pode ter, são aspectos ou elementos do WT sendo utilizados nos limites do jogo esportivo, pois ele não é um combate livre (sem regras e em espaço caótico), mas sim um 'combate simbólico' em espaço regrado.. e uma coisa é bem diferente de outra.. por isso, esta 'testagem' das 'qualidades e deficiências' do sistema, não é real.. e elas (qualidades e deficiências) não são do sistema, mas sim do praticante.. em suma: o combate simbólico não traduz o sistema, mas o dilui.. é uma questão até 'meio lógica'...

MA: Sim, mas já uma utilização do sistema.

HS: repetindo o que já disse anteriormente: não sou contra a adaptação.. nem a 'esportização' do sistema.. desde que assumam o fato de que isso não representa o sistema no seu todo e essência.. ou seja: a adaptação em espaço regrado admite apenas alguns elementos/aspectos do WT.. 'combate simbólico' não é 'auto-defesa' nem combate em espaço caótico...

 


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Taoismo, Confucionismo e Budismo na China, uma relação

 

Taoismo, confucionismo e budismo são as 3 concepções de mundo e/ou conhecimentos (filosofias e práticas de vida) que constituem os principais e maiores fundamentos do pensamento chinês. Ambos também constituem as bases conceituais e filosóficas do que popularmente se chama Kung Fu (artes marciais de origem chinesa). Sendo o taoismo e o confucionismo originários da China, enquanto o budismo tem sua origem na Índia. Estas concepções de mundo (vamos assim chamar), iniciaram como conhecimentos e filosofias, dotadas de princípios próprios, herdados de outros vários conhecimentos antepassados. Um elemento que é comum à ambas concepções é a ‘espiritualidade’ (o que não significa necessariamente ‘religião’). Nisso, devemos levar em conta que na tradição chinesa a espiritualidade não se separa da prática cotidiana, material, nem do pensamento ou da filosofia (o que envolve a ciência). Não pelo menos como aqui no ‘ocidente’.

Religiões?

O taoismo e o confucionismo, não nasceram como religiões, mas foram tornados como tal por ‘alguns grupos ou linhas de pensamento’ com o passar do tempo. Mas, existem grupos, linhas e adeptos do taoismo, por exemplo, que o praticam de forma ‘não-religiosa’, mas como ‘prática de vida’, o que envolve, além de seus princípios fundamentais e conceitos, certa espiritualidade (leia-se religião aqui, a prática institucionalizada da crença). Então, reduzir estas concepções em mera religiosidade é não dar a devida atenção para suas histórias e todos os conhecimentos que elas representam.

Integração cultural

Na história costumamos trabalhar dois conceitos para a melhor compreensão de fenômenos e relações históricas: ‘choque cultural’ e ‘integração cultural’. O choque geralmente se dá quando duas culturas diferentes entram em contato e não se integram, ao contrário, acabam se estranhando e combatendo uma a outra. Já a integração, é justamente o contrário, acontece quando estas culturas interagem e uma influencia a outra, formando muitas vezes uma nova realidade sociocultural. E foi isso o que aconteceu entre estas diferentes concepções, culturas ou conhecimentos.

O taoismo antecede o confucionismo e o budismo na China

Por desinformação ou interesse ideológico, já vi pessoas dizendo que o taoismo copiou o budismo. Para saber se isso é verdade ou não, é fundamental olhar para a história destas concepções e da própria China. Quando o budismo chega na China, por volta do século II depois de Cristo, o taoismo, assim como o confucionismo já existia(m) há séculos naquele território. O que aconteceu foi uma influência mútua entre estes 3 grandes conhecimentos (porém nem toda linha de pensamento e prática taoista se influenciou pelo budismo e/ou pelo confucionismo, algumas sim). Já com o budismo, foi diferente, tanto que ele assume um ‘caráter chinês’ quando entra em contado com estas concepções que já existiam na China antes da sua chegada. Nisso, o budismo indiano acaba absorvendo algumas ‘características chinesas’, sobre tudo taoistas (o que deu origem ao ‘budismo chan’, por exemplo). Ou seja, aconteceu bem o contrário do que alguns pensam, sendo o budismo o mais influenciado nesta ‘integração cultural’ dentro da China, originando assim, inclusive, o que podemos chamar de  ‘budismo ao modo chinês’, que é bastante popular no meio do Kung Fu, diga-se de passagem (aí temos o famoso templo de Shaolin, um monastério budista onde alguns ‘estilos’, não todos, de Kung Fu se desenvolveram).

Contudo, é importante destacar que o taoismo é anterior ao confucionismo, já que também inspirou Confúcio em alguns aspectos de seu pensamento (conceitos, princípios e ideias), o que está claramente registrado nas suas escritas (para uma melhor compreensão deste fenômeno é necessário certo estudo conceitual e relacional entre as obras destes pensadores e seus contextos históricos). 

Para melhor visualizar esta questão, a localização dos períodos históricos é fundamental. Se pensarmos a origem destas concepções a partir de seus principais pensadores (como sendo fundadores das respectivas filosofias/religiões), veremos que ambas são praticamente contemporâneas, ou pelo menos do mesmo século, onde algumas fontes trazem:

- Lao Tse, taoismo, por volta do século VI a.C. (cerca de 500 a 600 anos a.C.) 

- Kung Fu-Tsu (Confúcio), confucionismo, por volta do século VI a.C. (cerca de 400 à 500 anos a.C.)

- Sidarta Gautama (Buda), budismo (na Índia), por volta do século VI a.C. (cerca de 500 à 600 anos a.C.)

Referente às principais obras e escrituras que inspiram ou, em outra perspectiva, fundam estas concepções, temos:

- ‘I Ching’, versão 'lendária': cerca de 3000 a.C., hipótese 'histórica': cerca de 1122 /  1150 a.C. (citado como uma das principais obras assimiladas pelo taoismo, parte importante na constituição desta filosofia)

- ‘Tao Te Ching’ de Lao Tse (taoismo), cerca de 500 a.C.

- Clássicos confucianos, cerca de 500 a.C. /  ‘Analectos’, entre 500 à 200 a.C. (confucionismo)

- Escrituras budistas como o ‘Tripitaka’ (budismo), de 500 à 100 a.C.

A partir destas informações relacionais ou comparativas, podemos perceber que ambas concepções, tendo como ponto de partida seus pensadores e/ou escrituras, são mais ou menos contemporâneas. Porém, segundo as fontes mais usuais, o budismo só chegou na China, por volta do século II depois de Cristo (200 anos d.C.), o que comprova que entre as 3 concepções de maior projeção no pensamento chinês, o budismo é a mais recente. Portanto, o taoismo, definitivamente, não copiou o budismo, no máximo, em alguns aspectos e em ‘algumas linhas’, absorveu algumas características dele. O budismo, por sua vez, foi quem mais sofreu influência taoista da sua inserção na China.

O taoismo antes do nome

Uma terceira via de percepção, concepção ou crença, diz que muito antes do taoismo ter este conceito ou nomenclatura, ele já existia, pois muitas práticas e princípios que passaram a ser chamados de ‘práticas taoistas’ datam de milhares de anos antes de Cristo. Alguns remontam estas práticas ao séc. XVII a.C. (cerca de 1600 anos a.C.), outros ainda, ao séc. XXVI (cerca de 2500 à 3000 anos a.C.). O Chi Kung (ou Qi Gong) por exemplo, muito antes de receber este nome, já era praticado nos interiores da China antiga, assim como já eram feitos estudos relacionados à tratamentos e curas através do uso de plantas e técnicas energéticas, que foram desenvolvidos por antigos mestres e mestras da natureza, uma espécie de xamãs nativos, como são chamados aqui da América, que mais tarde foram identificados ou nominados de taoistas. Foram destes conhecimentos milenares organizados e registrados que nasceu a MTC (Medicina Tradicional Chinesa), o que é muito relacionado ao conhecimento taoista, como herança destes antepassados que, provavelmente não se autodenominavam. Por isso datar o taoismo é algo sempre arriscado, já que ele se constituiu ao longo do tempo, e assim, tem origem incerta, relativa ao que se considera na sua caracterização. 

Em suma, o fato é que, quando grandes concepções se relacionam e dialogam, enriquecem o mundo, a história, o conhecimento, e independente do nome que carreguem, são valores que no mínimo contribuem para uma vida mais ampla, plena e possível de ser vivida.

 

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Kung Fu não é propriedade privada – e os chavões do senso comum no Kung Fu



Um tema muito corriqueiro e que gera discussões nas comunidades de Kung Fu mundo afora, é a questão do que é ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ em Kung Fu. Ou seja, daquilo que se diz autêntico e daquilo que se julga superficial (ou também, aquilo que, como muitos gostam de dizer vulgarmente, ‘charlatanismo’). E nesta discussão, a representação é quase sempre solicitada: ‘Qual é a linhagem? Quem é o mestre? A formação?’, etc. Sendo que, o problema não são as perguntas, nunca, mas o tom com que são feitas. Como se aqueles que indagam isso fossem os fiscais ou donos de uma pretensa ‘verdade’ em Kung Fu. Mas, isso tudo não é tão simples assim, como estes querem que seja, no alto de suas convicções ou crenças. É um tema polêmico que requer mais do que o uso da palavra, de um certificado ou representação, enquanto território. Requer conhecimentos relacionais e profundos, o que grande parte daqueles que discutem não tem. Um exemplo de toda esta divergência são os intermináveis debates em torno do Wing Chun, comuns nos grupos de rede social: ‘É eficiente ou não é?’. Esta é uma questão sempre posta nos debates, onde a relatividade da questão, geralmente não é considerada – muitas vezes a circunstância ou a situação é mais determinante do que o ‘ser ou não ser’. E também, é bem comum algumas posturas imaturas, reducionistas ou deterministas, discursos de senso comum que geralmente afirmam: ‘Se não funciona em combate real, não é bom, não é puro ou não serve pra nada’. Como se um combate fosse algo determinado naturalmente, pelo simples fato de saber ou não saber. Ou seja: ‘é só saber o Wing Chun verdadeiro que a vitória está garantida’ (acreditem, já li isso). Mas não, a questão não é tão simples assim, e nem se reduz neste jogo de verdade ou mentira. Não há receita para um bolo experimental, pois ele depende da experiência e não daquilo que se pensa simplesmente. É claro que o conhecimento, a habilidade somam, porém, muitas vezes isso não é tudo aquilo que se diz. O fato é que, existe muito mais crença (que se transparece como convicção) do que realidade de conhecimento. Geralmente, o que se está sendo julgado é a aparência e não a essência, e na maioria dos casos, não pelo conhecimento, mas pela falta dele, ou seja, pela ignorância. Nisso, prepotência e tentativa de domínio territorial narrativo é o que marca estas discussões. No fundo, trata-se de uma ‘disputa narrativa’ pelo controle da palavra, da impressão e do estereótipo, onde ego e falta de sensibilidade geralmente dão o tom da discussão, quando que, na maioria dos casos, o que se discute é o estereótipo a aparência, a representação, e não a suposta ou pretendida ‘verdade’ ou a apresentação, muito menos a essência.

O caso Wing Chun


O Wing Chun é um sistema dentro do que chamamos popularmente de Kung Fu, que surgiu por volta de 1700 (entre final do século XVII e início do XVIII) no sul da China, no contexto de domínio da dinastia dos Manchus. As versões de sua origem variam tanto quanto a existência de seus estilos ou ‘modos’. Ou seja, existe uma boa variedade de estilos/modos de Wing Chun, dados pela transformação deste sistema através dos anos. O mais popular entre eles, todos sabem, é o estilo Ip Man, mas não é ele que determina o que é Wing Chun ou não, assim como, também não é o único parâmetro para uma possível definição do estilo. O GM Ip Man, como tantos outros grandes mestres do estilo, desenvolveu seu próprio caminho dentro do sistema, o que chamo de ‘modo’, e que também pode ser chamado de estilo. Como tantos, Ip Man somou conhecimentos oriundos de estilos ou modos diferentes de Wing Chun, desenvolvendo e caracterizando o seu, seja de forma consciente ou inconsciente. Uma destas características é o jeito mais ‘direto’ ou ‘simples’ de atuar, coisa que, em algumas fontes (estilos) das quais bebeu, eram mais complexas. Ou seja, o mestre Ip ‘mudou’ parte daquilo que aprendeu, adaptando ao seu ‘modo’. Nisso, problematizando o senso comum, aqui cabe uma pergunta: ‘O Wing Chun é simples ou foi simplificado?’.

Wing Chun, um sistema sincrético


A questão é que muitos praticantes, sifu’s e até mestres (e também entusiastas) não admitem o ‘sincretismo’ que é o sistema Wing Chun. Ou seja, a fusão, a mistura, a configuração diversa que pode caracterizar (e caracterizou) o sistema. Um sistema que é fruto de um sincretismo, e que com o passar do tempo, tornou-se mais diverso ainda. E aí temos como comprovação disso, os estilos ou modos de grandes mestres como Leung Jan, Yuen Chai Wan, Pan Nam, Yuen Kay Sam, entre outros, que deixaram seus legados na história do sistema.

Alguns destes praticantes acabam tendo posturas incoerentes com aquilo que estudam (ou pelo menos deveriam estudar), o Kung Fu que, além da movimentação físico-corporal, tem princípios, conceitos ou filosofias que o regem, agindo como fundamentalistas de um ‘puritanismo’ quase religioso que resiste a tudo o que consideram ‘impuro’, por ser simplesmente diferente daquilo que aprenderam ou foram orientados (alguns adestrados).

Com isso, não estou aqui desvalorizando a importância fundamental das linhagens, famílias ou estilos em Wing Chun ou Kung Fu, não é isso. Estou simplesmente propondo uma reflexão em torno disso, pois todo o conhecimento autêntico ou que venha de uma fonte ou raiz, tem relação direta ou indireta com as linhagens ou famílias Kung Fu - mas isso não impede que outros, outras escolas, estilos ou modos se formem, a partir desta gama de conteúdos e conhecimentos que o WT e/ou o KF nos oferece. Fechar os olhos (e a mente) para isso é que pode deixar o conhecimento (e o Kung Fu) deficientes, não o contrário (não desconsiderando a questão ‘superficial’ ou ‘fake’ que existe no mundo do Kung Fu e de todas as outras artes marciais – mas é preciso certa distinção neste caso). Ou seja, não representar, não ser filiado diretamente a uma linhagem ou família, não significa que o praticante ou a escola/associação não tenha bom conteúdo, fundamento, raiz, base (ou no mínimo referência) de uma ou mais linhagem ou estilo de WT ou KF. Quem pensa isso precisa rever seu entendimento (e quando age, sua postura), pois ninguém é dono do conhecimento, e nem tampouco, da verdade. A história não é algo morto, estacionado, parado no tempo, ela, como a cultura, é viva e se move, onde seus conteúdos e conhecimentos influenciam e caracterizam outros conhecimentos, de forma direta ou indireta. 





* Na(s) imagen(s), o GM Ip Man tocando o braço do GM Chu Chung Man, e ao fundo, rindo para o mestre Ip (à direita da imagem), o GM Tang Yik, no armazém Dai Dak Lan em Hong Kong, um ponto de encontro onde praticantes e sifu’s trocavam experiências e conhecimentos, influenciando-se mutuamente. (fonte: Internet e site da IWKA)























Representação não é o único caminho

A representação não é uma fonte de conhecimento. Pelo menos, não a única. Representar oficialmente algo, não significa que o representante seja habilidoso ou conhecedor o suficiente daquilo que se representa para desmerecer ou detratar os outros. Muitos detratores o fazem a partir de seus olhares reduzidos, através de impressões ou pré-conceitos vistos em vídeos ou imagens, sendo que, muito do conhecimento marcial só pode ser acessado mesmo na prática (presencialmente). Estes não conseguem perceber visualmente os elementos, modos ou posturas presentes em vídeos ‘demonstrativos’ (é óbvio que não são situações reais de rua, assim como o esporte marcial também não é) e acabam cometendo uma enorme gafe, julgando e detratando conhecimentos de que não são familiarizados. Nisso, o problema não é ‘não conhecer’, mas sim julgar, detratar, distorcer ou ofender algo bom e profundo sem saber, algo muito comum nestes grupos de KF, infelizmente. Isso demonstra que não muitos aprenderam as lições básicas e fundamentais do grande conhecimento milenar que é o Kung Fu, e que algumas escolas ou sifu’s deixam, muitas vezes, de ensinar que, antes de mais nada, é preciso saber, conhecer, ter discernimento e respeito, buscando o equilíbrio e não a agressividade nos gestos e palavras.

Nesta postura agressiva, o ego inflamado e a convicção fundamentalista acabam direcionando o olhar e a atitude, gerando preconceito e banalidade, o que atinge diretamente o diálogo e a riqueza que deve ser o conhecimento. E o Kung Fu, muitas vezes, acaba se tornando um lugar inóspito, cheio de preconceitos e atitudes desequilibradas. Sábios agem de forma totalmente diferente disso, onde, ao invés de julgar, procuram compreender e conhecer o objeto a ser analisado, antes de tecer qualquer comentário indevido ou sem fundamento. Dialogar não é atacar, ofender, é propor e problematizar, com respeito, referências e compreensão. Ao contrário disso, é guerra, e o Kung Fu, no auge de sua proatividade, é a ‘arte de lutar sem lutar’, uma alta habilidade que possui princípios éticos e valores de vida, que deveriam prezar pela paz ao invés da guerra.

Um fato comparativo

Em 2019 um irmão Kung Fu, estudante da AFWK produziu alguns pequenos vídeos demonstrativos para youtube, em que eu executo algumas formas e técnicas, a partir do nosso currículo e ‘modo’ de WT. Um destes vídeos que fora compartilhado em algumas comunidades ou grupos de Kung Fu na rede social, além de ter suas curtidas e elogios, teve algumas críticas, o que é bem normal. Porém, algumas destas críticas foram repletas de pré-conceitos, a partir de praticantes e entusiastas que, movidos pela cultura da disputa, algo muito comum no nosso tipo de sociedade, e pela falta de conhecimento frente ao nosso ‘modo’ e dos estilos que o compõe (pois não identificaram as referências, movimentos, técnicas, suas origens, presentes dentro da forma – algo que não é fácil, a não ser que se estude mais de um estilo e com a cabeça aberta para as diferenças e diversidade do sistema), acabaram por criar uma situação agressiva e reducionista, ao invés de um diálogo saudável, infelizmente. Em contrapartida, em um grupo internacional de WT, esta mesma forma (vídeo) foi debatida e elogiada por um grande estudioso e pesquisador do Kung Fu mundial, gerando boas impressões daquilo que nos propomos enquanto escola ou associação que, se tem consciência, é nova (5 anos de existência) e não fechada ao conhecimento (nosso currículo é aberto), temos muito o que aprender – e estamos a Caminho. Nisso, alguns elementos provindos de algumas linhagens, presentes na nossa forma (em questão), foram identificados por alguns membros daquele grupo, o que demonstra certo nível em seus conhecimentos. Ou seja, ao invés da ignorância e da agressividade, como no caso do grupo no Brasil, houve neste contato, o conhecimento e o diálogo, onde o conhecimento foi problematizado e compartilhado, e não reduzido. Limites todos possuímos, porém, nem todos sabem disso.

Tradição e poder no Kung Fu

Tradição é algo importante e que faz parte da trajetória humana. Porém, ela não pode engessar o conhecimento. Muitas vezes a tradição é usada como instrumento de poder para controle do conhecimento, sendo que, cultura e conhecimento são coisas vivas, que se movem e se transformam. Alguns conservadores, que podemos chamar de 'puristas', não compreendem este movimento (ou não querem admitir para manterem certos conhecimentos sob seu domínio ou controle). Isso acontece muito no Kung Fu. Uma linhagem, por exemplo, é suma importante para preservar e repassar conhecimentos, 'modos' de se fazer, porém, muitas vezes ela é utilizada ideologicamente ou politicamente, não na manutenção do conhecimento, mas do poder ou controle sobre ele. Em alguns casos, isso acaba limitando o próprio conhecimento e as possibilidades de aprimorá-lo. Então, é fundamental certo discernimento ao falarmos, lidarmos ou defendermos (assim como criticarmos) tais questões. Sendo que também falamos de relações humanas, e assim sendo, socioculturais, o que envolvem relações de poder.

Referente a isso, não basta fazer fotos ao lado de um sifu ou mestre para ser bom naquilo que se faz, onde muitas vezes, representar é parte desta relação de poder (e comercial). Por exemplo, muitas das escolas que se dizem Ip Man espalhadas pelo mundo, não são representantes deste mestre ou estilo, assim como, outras, nem carregam em si o estilo ou modo que aparentam ou dizem ser. Em suma, muito disso tudo é estereótipo, discurso e negócio. Porém, existem as escolas, associações, sifu’s ou praticantes íntegros, sinceros e honestos, que realmente fazem jus ao conhecimento, sendo eles representantes oficiais ou não de um mestre ou estilo (aqueles que estudam, buscam e experimentam conhecimentos, ensinando o que realmente aprenderam, e também, construindo conhecimentos junto aos seus alunos ou irmãos/ãs Kung Fu). Por isso, olhemos para a relatividade e subjetividade existentes nestas questões, e sejamos assim menos deterministas e figurativos. Se não é possível ser original, que pelo menos sejamos coerentes e autênticos, sob tudo, com nós mesmos...




terça-feira, 31 de dezembro de 2019

AFWK, 5 anos!

Em janeiro de 2020 a AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu) completa 5 anos de existência

Iniciei minha trajetória no Kung Fu muito jovem, em meados dos anos de 1990, no estilo que chamávamos de Shaolin, com um professor da cidade (conhecido como Zeu). Naquela época pratiquei quase que diariamente durante bons 3 anos. Tive 3 professores neste tempo. Dois deles foram fundamentais para a definição do estilo que pratico e leciono hoje. Com um deles (chamado Marcelo) aprendi 2 níveis do estilo Ip Man, Siu Nim Tao e Chum Kiu, e aspectos da Biu Jee, Muk Yan Chong e Bart Chan Dao. Com outro (chamado Arthur), que estudara Kung Fu no sudeste asiático (Vietnam e Indonésia com passagens por Taiwan), elementos do Wing Chun, Weng Chun Kuen, Bai He (Garça Branca), Emei Serpente e Chi Kung, também algo de Tai Chi e de estilos chamados Chu Kar e I-Chuan (deste professor veio minha principal base em Kung Fu) – Obs.: não lembro dos sobrenomes destes professores. Depois segui praticando com amigos colegas, durante mais algum tempo. Perdi o contato com meus antigos professores, e entre nós colegas, cada um foi tomando seu rumo. Durante mais ou menos 17 anos pratiquei sem orientação de um professor, de modo informal. Mas nunca abandonei o Kung Fu totalmente, uma antiga paixão que começou na pré-adolescência com os filmes do Bruce Lee e revistas de artes marciais.

Passados os anos, em 2011 retomei as práticas com mais ênfase. Depois de todos estes anos encontrei um praticante na minha cidade que dava aulas de Wing Chun (estilo Ip Man) e Shaolin, chamado Mauro Flores. Em 2012 retomei as práticas/treinos oficialmente sob sua instrução. Foi um tempo de muitos treinos, onde aos poucos retomei alguns de meus antigos conhecimentos. Em 2014 passei a substituir este professor em algumas aulas. Mauro desistiu de dar aulas e naturalmente às assumi, por pedido dos próprios alunos. Neste meio tempo também estudei Chi Kung com uma praticante/professora de nome Rose. Em setembro deste mesmo ano participei de um seminário especial de Wing Tjun com ênfase no aspecto ‘interno’ do sistema, ministrado pelo sifu Sergio Pascal Iadarola, grande estudioso e conhecedor do WT e das artes internas, fundador da IWKA, uma das grandes escolas de WT mundiais, que no período tinha filial em Porto Alegre/RS. Lá fiz contato e amizade com Daniel Jaeger, o então sihing e representante chefe da IWKA no Brasil, com quem fiz mais algumas aulas e promovi um seminário com nosso grupo aqui em Chapecó/SC. Fui verbalmente admitido na IWKA, porém, com a saída do Daniel daquela associação, a formalização minha acabou não se efetivando. Inspirado por esta boa experiência, foi então que, no início de 2015 fundei a AFWK, a partir da fusão destes conhecimentos que adquiri durante todo este tempo. Desenvolvi um currículo próprio da associação onde juntei meus conhecimentos para fundamentar o que chamo de Fluir Kung Fu (Wing Tjun e Chi Kung).  

O contato com a IWKA e sifu Sergio foi fundamental para que eu buscasse as raízes dos meus conhecimentos em Kung Fu, e pudesse a partir disso desenvolver nosso próprio currículo e associação/escola, integrando conhecimentos, ao invés de fragmentá-los. Nisso, a AFWK não é um estilo novo, e nada do que fazemos foi inventado, apenas integrado e adaptado a nossa realidade, respeitando a necessidade e o próprio conhecimento.

De lá para cá passaram-se 5 anos. Tive muitos alunos e alunas. De estudantes colegiais e universitários a psicólogos, professores de universidade a juízes, operários, policiais, advogados e praticantes de outros estilos de artes marciais, etc. Neste tempo fui convidado por pessoas e instituições para orientar oficinas, cursos e práticas de Chi Kung e ‘auto-defesa’, a partir do sistema Wing Tjun, em festivais de arte e cultura, universidades, escolas, cursos de terapias alternativas, etc. Também ministrei aulas e oficinas sobre filosofia taoista, cultura e história da China.

Comecei lecionando Kung Fu numa das maiores academias da cidade. Em 2018 passamos a ocupar o Espaço Vida, a convite do reconhecido e mais antigo professor de Tai Chi Chuan (estilo Liu Pai Lin) da cidade, renomado acupunturista e psicólogo, o sifu Carlos Artur Schacker, que hoje também é meu professor de Tai Chi, além de um bom amigo. Também fui convidado para dar aulas de Chi Kung na Reserva do Ser, um espaço e hostel alternativo de permacultura, e no Caminhos de Lavanda, um belo espaço de Reiki e também permacultura. Aprovei um projeto numa das escolas em quem leciono filosofia e iniciei com aulas de Chi Kung e ‘auto-defesa’ a partir do sistema Wing Tjun para as crianças e adolescentes.

Isso tudo me ensinou e me ensina muito, e um tanto deste muito, repassei (e repasso) aos meus alunos/as. Mais recentemente fui convidado por um renomado sifu, internacionalmente reconhecido, para representar sua associação/escola de Wing Tjun e artes internas aqui no Brasil (uma honra para mim), porém, as condições (pessoais e de conjuntura nacional-internacional) ainda não permitem. Mas seguimos com nossa associação e nossa arte, nosso ‘modo’ Fluir de Wing Tjun e Chi Kung, chegando em 2020 com muita energia para cultivar, muito conhecimento para estudar, experimentar, experienciar, aprender, viver.

Nisso agradeço e agradecemos todos/as os que neste tempo fizeram parte deste Caminho, e os/as que atualmente se integram à AFWK. Aos nossos mestres e mestras, do passado e do presente, sejam eles raízes, bases ou inspirações para o nosso Kung Fu. A AFWK é uma associação ou escola independente (não representamos nenhuma linhagem, mestre ou escola em específico), de base filosófica (conceitual) e espiritual Taoista, que não tem grandes pretensões (sob tudo comercial), que busca equilíbrio e cultiva conhecimentos, e que traça seu Caminho, conforme a necessidade e sinceridade com aquilo que estuda e sabe. Somos uma associação jovem e temos muito o que aprender ainda. Convictos de que o conhecimento se move e se transforma, sempre seremos eternos estudantes seguindo e integrando o Caminho...