quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Violência potencializada pela irresponsabilidade social do ‘mestre’

 

“Quem é culpado dessa violência \ A sociedade está em decadência...”

 Começo esta reflexão com o trecho da letra da música ‘Decadência social’ da banda punk paulista DZK para falar de alguns agentes responsáveis pela violência social disseminada no país. Um dos maiores responsáveis (e nos tempos atuais, potencializadores) desta violência que é estrutural e sistêmica, como já aponta o título deste texto, é o próprio Estado, ou seja, o governo, principalmente o atual, pois ele, desde seu início, é um agente motivador a partir de seus discursos públicos e das ações políticas de seus apoiadores, sobre tudo no nome do presidente da república e sua prole. Outro agente é cultural, ou seja, àquilo que se promove culturalmente pelos meios sociais e midiáticos (TV, rádio, internet: youtube e redes sociais e algumas entidades ditas sociais), como conteúdo e discurso, o que alimenta a falta de ‘consciência de classe’ e social. Dado este panorama inicial, vamos à questão que é objetivo deste texto. 

Iniciei na prática e estudo das ‘artes marciais’ no início da década de 1990, ainda na pré-adolescência. Atualmente, além de praticante\estudante, também sou professor de um estilo que se chama Wing Tjun (sistema de Kung Fu com ênfase em ‘autodefesa’). Neste percurso, foram três vezes que me envolvi em situações de agressões coletivas, interferindo nas agressões ao lado do agredido. A primeira vez foi em meados dos anos 90, quando no entorno da escola em que eu estudava, três garotos brigavam contra um só que eu conhecia de vista por vê-lo sempre perambulando por lá. Como já treinava ‘arte marcial’ não pude ficar alheio àquela cena e acabei ajudando o garoto que lembro, se defendia muito bem, porém a desvantagem dele na briga era nítida. Nesta situação tive contato físico, mas não me machuquei (ganhei algum pequeno hematoma e algumas dores sutis pelo contato corporal). Por fim, acabamos logrando êxito, afugentando os três agressores. Acabei ficando amigo do garoto que também praticava ‘arte marcial’. Ele habitava uma das periferias mais pobres da cidade e como eu, tinha a pele ‘morena’ ou parda (descendente de caboclos). Noutra feita, já no início dos anos 2000, no centro da cidade, também me envolvi numa situação semelhante, onde também três garotos batiam num só. Desta vez quem estava apanhando, devido a minha intervenção, conseguiu fugir e dois dos agressores vieram em minha direção, onde eu, por minha vez, consegui me afastar sem contato físico, entrando num bar próximo da briga (fazendo jus a um conceito mais amplo de ‘autodefesa’). Na última e terceira vez, mais adiante, na primeira ou segunda década dos anos 2000, o fato foi na quadra de baixo aqui de casa. Mais uma vez, intervi, não pude ver àquela cena que estava virando um linchamento público. Um garoto pobre e, mais uma vez, de pele ‘morena’\parda, que fora flagrado roubando em uma casa próxima da minha, foi pego por populares na rua. Já imobilizado e machucado pela agressão dos ‘populares’, o garoto deitado ao chão suplicava para que as agressões parassem, mas elas continuavam. Algumas pessoas que passavam pelo local paravam seus carros, desciam e batiam no garoto. Deitado e sem condições de reação, levou chutes e até uma tijolada na cabeça. Vendo tamanha covardia e que àquilo poderia se tornar um linchamento (ou estava sendo), um assassinato, lá fui eu, mais uma vez intervir. Desta vez usei só a palavra e então os ‘populares’ pararam, mas não passivamente. Fui agredido com alguns insultos e máximas como: “Porque não leva o vagabundo para sua casa¿”. Chegada a imprensa e a polícia, a maioria dos agressores, covardemente, se dispersaram como se nada tivesse sido com eles. Um policial, cuidadosamente levantou o garoto, e num gesto de desaprovação do ato com o olhar e a cabeça, conduziu ele para a viatura, sem uso da força. Naquele instante pude perceber na prática, como funciona a violência de uma ‘manada motivada’ e sem equilíbrio ou limite no agir. Talvez se nestes casos se eu não tivesse intervindo, (principalmente neste último que envolveu muito mais gente), tivesse acontecido o pior, ou seja, o linchamento, o assassinato, e em ambos os casos, de jovens pobres, pardos e periféricos. Exemplos claros de que a violência neste país é estrutural e sistêmica - e que tem alvo. 

Dado este contexto, desde muito cedo, aprendi que tudo deve ter limite, e que, entre um crime e outro, não deve haver justificativa, ou seja, não se combate um crime com outro (geralmente pior). Como estudante\praticante e professor de ‘arte marcial’, mais de uma vez, em grupos afins na internet, levantei a questão da responsabilidade do professor dentro desta realidade de violências. Boa parte dos praticantes, professores e entusiastas criticaram minha posição, ignorando o fato de que técnicas marciais e a falta de sensibilidade e discernimento no meio dito marcial podem ser potencializadores da violência cotidiana, geralmente apontada contra as classes, origens, gêneros ou identidades mais desfavorecidas, que são os grandes alvos das violências no Brasil, sejam elas simbólicas ou físicas.

Depois do caso do congolês linchado\assassinado no Rio de Janeiro, um colega praticante e professor de Kung Fu fez um vídeo refletindo sobre a responsabilidade do professor ou das escolas de ‘artes marciais’ frente a esta realidade nacional, o que me motivou a escrever este texto. No triste fato em questão, vendo o vídeo, um dos agressores demonstrou conhecer técnicas marciais quando derrubou e imobilizou a vítima para que os demais a espancassem até a morte. E foi a partir deste fato que Guarino (o praticante e professor que cito) fez seu vídeo refletindo a problemática. Muitos praticantes e professores (ou que se auto-intitulam isso) nas redes sociais e youtube (provavelmente também nas suas escolas\academias de artes marciais), se eximem da responsabilidade de estarem orientando ou ensinando técnicas que podem ser usadas para machucar e até matar. Fazendo isso são potencializadores destas violências e desta situação deplorável a qual vivemos. Alguns deles, armamentistas, motivam o uso de lâminas e armas de fogo, além das técnicas que ensinam nas suas academias ou por vídeo, sem o menor pudor, constrangimento, limite, cuidado ou responsabilidade em tratar temas como este. No pretexto de ‘defesa pessoal’, ‘autodefesa’ ou ‘legítima defesa’, vendem seus peixes sem a menor restrição e bom senso no que dizem e motivam, pois dizem a partir de discursos e retóricas subjetivas para se livrarem das suas responsabilidades. Discursos muitas vezes carregados de ideologias, mesmo que disfarçados nas sutilezas, de ódio ao outro, paranoias, machismo, xenofobia, etc. Eu até diria que alguns destes discursos beiram o fascismo (ou são fascistas).

Em suma, se você, colega professor, não vincular a questão social e cultural com seu conhecimento e sua aula de ‘arte marcial’, refletindo as mazelas da nossa sociedade (questão de sensibilidade), na busca da formação do bom caráter e cidadania, pelo equilíbrio de ser e estar dos seus alunos, para além do quesito técnico ou preparo físico, você pode estar contribuindo na produção de ‘armas’ (mentes e corpos) que podem ser usadas, não para ‘parar a guerra’ (princípio de algumas escolas de Kung Fu), mas para ‘fazerem a guerra’, armando pessoas para atos de covardia, como os citados acima e vistos no vídeo, como no recente caso do assassinato do jovem africano no RJ. O Estado e a justiça também deveriam agir para diminuir este problema que é de todos, principalmente daqueles que detém o ‘saber fazer’ e orientam, ensinam e motivam os outros. Nisso, a pergunta que nos cabe é: “dentro da sua prática ou vivência marcial, na sua escola, na relação com seus colegas e professor, também se trabalha a mente, a reflexão, a sensibilidade, a espiritualidade, ou apenas a parte técnica e física¿”. Isso faz toda a diferença, e em vários sentidos, pois é uma questão de sensibilidade e equilíbrio, princípios que deve(ria)m ser básicos em qualquer prática ou conhecimento ‘marcial’.