terça-feira, 15 de agosto de 2017

O que denominamos Wing Tjun?

Wing Chun, algumas possibilidades:

O sistema de Kung Fu criado por volta de 1700 (séculos XVII ou XVIII), em plena dinastia Qing (manchus) mais tarde batizado como ‘Eterna Primavera’, que segundo algumas fontes era o nome do Mo Gun (sala de estudo/prática de Kung Fu) no templo Siu Lam (Shaolin do Sul, China) e que também teria sido o nome de uma sala de ensaios artísticos e, clandestinamente, estudos do Kung Fu no teatro-ópera dos juncos vermelhos (ou um, ou outro - ou os dois, segundo fontes), onde atores e atrizes da trupe praticavam o sistema que, num primeiro momento, foi desenvolvido por monges do templo Siu Lam, que eram mestres nos estilos Garça Branca e Serpente (Emei) – animais que se tornaram símbolo do WT (sigla para Wing Chun), também de Chi Kung e Tai Chi Chuan (artes internas), o que somou na composição do novo sistema que surgia. Outro local de abrigo e estudo do Wing Tjun foram as chamadas ‘sociedades secretas’, também espaços de resistência ao domínimo manchu, onde o novo ‘sistema marcial’ também foi concentrado. Antes da Rebelião Taiping, o Wing Chun e/ou Weng Chun tinha fortes aspectos ‘internos’, e muitos mestres e estudantes praticavam outras artes relacionadas, como as já citadas anteriormente, por exemplo. Em algum momento da história isso começou a se perder, ou no mínimo, diminuir. Quando o Wing Chun atinge sua ‘fama’, ou se torna mais popular, a partir do cinema, de Bruce Lee e do mestre Ip Man, já pouco se vê nele seu fator ‘interno’, mas isso não significa que ele é inexistente.

Wing Chun é o modo mais popular de se nominar (escrever) o sistema, seguido de Ving Tsun, entre outros. O sistema é o mesmo, porém, com algumas variações na sua forma escrita e até concebida, estudada e praticada, conforme os modos dos vários mestres, escolas, linhagens, que aprenderam, adaptaram e ensinaram o sistema aos seus alunos através dos anos. Nisso, temos também a ‘variação’ chamada Weng Chun, e/ou os Wing Chun Kuen e Weng Chun Kuen. Estudiosos e mestres mundo afora, divergem quanto a estas ‘divisões’. Alguns defendem que a arte, o estilo ou sistema de Kung Fu é o mesmo, só que ensinado de formas diferentes, por isso das variações. Outros, que são sistemas diferentes, mas semelhantes ou ‘irmãos’. O fato é que eles vieram e possuem a mesma raiz (essência). Em algumas linhagens (como a Ip Man, por exemplo) é corrente a ideia (lendária ou histórica?) de que foi uma monja (Ng Mui) quem criou o sistema Wing Chun. Mas esta mesma ‘estória’ (ou história?) pertence também a outros estilos de Kung Fu, o que leva a crer que é uma lenda, ou uma história simbólica quanto à criação do WT.

Nossa denominação:

Dentro de todas estas ‘possibilidades’, considerando a história (ou as histórias), enquanto associação e jovem família Kung Fu, possuímos nossa denominação do termo na sua forma escrita, além de nossa ‘crença’ em uma versão desta história complexa e por vezes controversa.

Adotamos escrever Wing Tjun, o que fundamenta e da significado ao ‘nosso modo’ de conceber, estudar e praticar o sistema. Wing Tjun, em nosso fundamento, é a integração entre os estilos Serpente (a partir do ‘motor’ interno e de alguns movimentos externos e aplicações) e Garça Branca (Young Chun, Foshan), animais-símbolo do WT, somado a prática de Chi Kung, elementos das 18 Mãos de Lohan e Tai Chi Chuan, além do Wing Chun e Weng Chun Kuen.  Na filosofia e em alguns conceitos a base é o taoismo e o budismo (além de Confúcio, Sun Tzu e outros). Este ‘painel’ de elementos e conhecimentos integrados é o que chamamos de Wing Tjun. “Não é uma mera ou simples ‘mistura’ entre todos estes elementos, mas é o reconhecimento e estudo deles postos em prática, naquilo que consideramos os elementos históricos e filosóficos (conceituais) formadores do sistema ou estilo”.
O modo escrito adotado por nós, é uma ‘escolha’ que tem influência direta do sifu Sergio Pascal Iadarola e sua associação, a IWKA (um dos grandes pesquisadores e mestres contemporâneos), os mesmos que me possibilitaram estudar, pensar e conceber o Kung Fu e o WT como artes integradas, tendo em vista seus fatores ‘internos’ e ‘externos’. Minha experiência, mesmo que breve (porém intensa) nos estilos Serpente e Garça, e no Tai Chi, Chi Kung e Wing Chun, me fez, considerar e relacionar todos estes elementos, o que acabou ampliando nosso leque de possibilidades e foi fundamental para a criação da AFWK. ‘Tudo movido não por uma pretensão, mas por uma necessidade’. A importância do sifu Sergio e IWKA (também do sihing Daniel Jaeger – que fora sihing líder da IWKA no Brasil) foi a de, além do quesito conceitual e técnico, possibilitar eu fazer os devidos links (ligações) entre as artes citadas acima, e integrar estas práticas e estudos, quando, antes da minha experiência com o sifu Sergio e sua escola, não relacionava conscientemente estes conhecimentos. Tudo isso somado aos meus conhecimentos e atividades como professor de filosofia, história, sociologia, linguagens e na área da educação, fornecem as condições para que a AFWK exista enquanto escola, família e associação.

Portanto, “denominamos Wing Tjun este todo”.

Porque Fluir Wing Tjun Kung Fu?

Fluir: passar, escorrer, deslizar, escoar, transcorrer. Estado de 'movimento natural' das coisas - (flexões: líquido; leve; suave).

A partir de uma coerência, de uma significância para se chegar ao fundamento de se criar uma associação ou escola, foi que batizei o grupo de estudantes/praticantes que instruía de Fluir Wing Tjun Kung Fu, criando assim a associação e sua sigla (AFWK). A maioria dos ‘irmãos/estudantes’ permanece em atividade. Nisso, somos mais que uma reunião de pessoas afinadas com os estudos, somos uma ‘família Kung Fu’.

Fluir é nosso caminho. Voltar-se à natureza, naturalizar as ações, os movimentos, a relação com o outro e com a vida.

Currículo / Programa AFWK:

Nisso, organizei nosso próprio currículo e/ou programa, baseado em nossa realidade, e coerente com ela, conforme nossa necessidade local e dentro dos limites do ‘meu’ conhecimento (como professor ou sifu), integrando os conhecimentos práticos e filosóficos/conceituais já citados acima.

Não somos filiados a um único mestre e sua linhagem ou escola, não porque não queremos ou não achamos isso importante, mas porque a realidade e necessidade nos fez existir enquanto associação ou escola, independente de seguir uma única linhagem. Este fator nos trouxe algo positivo, que é a oportunidade de estudar mais de uma linhagem e/ou escola (dentro dos meus e nossos limites, é claro), tendo certa ‘abertura’ para desenvolver, além de certa independência, estudos e pesquisas em outras linhagens e artes relacionadas ao WT. Isso, de certo modo, me fez organizar (não inventar) o próprio currículo e/ou programa, a partir da minha realidade e nossa necessidade, enquanto grupo ou escola, de se estudar/praticar. Portanto, não criei nada, apenas faço uso, como quase todas as escolas fazem, cada qual ao seu modo e conforme sua necessidade. E eis que, mais que uma intenção ou pretenção, somos ‘estudantes’. Mais que um professor, sou um estudante que não visualiza um fim, mas sempre o caminho (leia-se conceito no taoismo).

Nisso, estamos caminhando, fluindo...

Herman Silvani (professor da AFWK – Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu)




sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Linhagem no Kung Fu: uma problemática

O que é uma linhagem em Kung Fu?

Linhagem: série de gerações; linha de parentesco; genealogia, estirpe (Dicionário Online).

Eis o significado formal de linhagem. Por si só, seu significado comprova sua importância. Mas isso não exclui uma problematização quanto ‘o modo com que se constituem, se tratam e se utilizam determinadas linhagens no Kung Fu’ a partir de seus sifu’s (mestres ou professores) e suas ‘escolas’.

Uma linhagem é constituída de heranças entre gerações, onde um patriarca ou uma matriarca, ou seja, os entes mais velhos, são supostamente mais conhecedores dos conteúdos ou conhecimentos acumulados de seus ancestrais. Então, uma linhagem está diretamente ligada a ancestralidade, neste caso, a partir de um ‘sobrenome’ que, em tese, deve trazer em si certos conhecimentos. Conhecimentos estes que constituem ou compõem aquilo que chamamos de linhagem. Em suma, uma linhagem é como uma tradição, que traz em si tradições, conhecimentos, conteúdos e saberes desenvolvidos ao longo do tempo, acumulados, cultivados e repassados de geração para geração, a modo de manter vivos certos saberes (tanto práticos quanto teóricos) e certas práticas.

Saberes e/ou conhecimentos quando passados de uma geração para outra, inevitavelmente se transformam (pois o tempo e influências externas agem sob estes saberes), geralmente em detalhes e quase nunca radicalmente, mas se transformam, e isso é fato inegável. Portanto, dada esta transformação, dá para se dizer que não existe uma ‘pureza’ nestes conhecimentos ou saberes. Quando não destoa muito do ‘conhecimento original’ (questão mais de essência do que de técnica – eis a questão!), podemos dizer que continua sendo uma linhagem, a mesma linhagem, isso se o receptor, aluno, irmão ou discípulo, for reconhecido e ‘autorizado’ pelo mestre (que também fora autorizado outrora por seu antigo mestre, patriarca ou matriarca) em se tornar também um discípulo, ou seja, futuro mantenedor e transmissor do conhecimento de tal linhagem. Nisso, temos aqui certa hierarquia e ‘controle’ (além de organização) na continuidade deste ‘processo’ que é o de manutenção destes saberes ou conhecimentos.

Linhagem como controle do conhecimento

Pois bem, neste primeiro momento, conceituei, discuti e/ou teorizei sobre o significado de linhagem no Kung Fu, a partir de seu uso mais comum pelo menos, já apontando a problemática. Agora vou tratar de problematizar o assunto, a partir de dado contexto.

Certo da importância da existência das linhagens (o que é evidente e foi abordado brevemente no título anterior), como estudante/praticante e professor de Kung Fu (Wing Tjun), Chi Kung e Tai Chi Chuan (estudante/praticante), tive cá minhas experiências com diferentes sifu’s (professores e/ou mestres) de diferentes sistemas ou estilos e escolas de Kung Fu (além do Chi Kung e do Taiji). Nisso, pude experimentar e perceber as diferenças nos modos de se conceber e praticar esta(s) arte(s). Dedico-me, já faz alguns anos, além de praticar, a pesquisar sobre as linhagens, sistemas e/ou escolas de Kung Fu que me cativam e me dizem respeito. Neste caminho, a problemática que envolve as ‘linhagens’ (um território perigoso, porém, inevitável) me veio à mente. Ao tempo em que as linhagens, quase que naturalmente, servem para manter ou cultivar certos conhecimentos, elas também podem ser formas de controle e poder. Quando um mestre se diz representante deste ou daquele estilo, sistema e/ou escola de Kung Fu, detentor do conhecimento ancestral, único responsável por sua transmissão ‘original’, de certa forma ele está impondo uma autoridade sobre os demais. Se houver bom senso, honestidade e realismo nesta fala, aí tudo bem. O problema é quanto isso se torna ‘estacionamento’, comodidade, ideologia. Ou seja, quanto é usado para a manutenção, não do conhecimento, mas da autoridade, hierarquia e/ou em casos extremos, do autoritarismo sob o conhecimento e sob o outro.

Algo difícil de ser dito, mas necessário: grande parte das escolas que se dizem da ‘linhagem’ Ip Man, do sistema Wing Chun de Kung Fu, por exemplo, não o são. Isso é muito usado como discurso ou marketing – contanto que o GM Ip Man é o mais popular (ou popularizado?) mestre do ‘estilo’. Eu, por exemplo, tive contato e estudei com professores provindos da ‘linhagem Ip Man’, própriamente dito do sifu Wong Shun Leung, mas não diretamente com ele, mas com alguém que aprendeu com alguém que aprendeu com o mestre em questão. E a questão é: isso significa que meu professor era da linhagem Ip Man? Ou da linhagem Wong Shun Leung? Por isso, nunca ousei dizer que tenho uma linhagem em específico no Wing Chun - quem dirá que represento a ‘família’. Tento ser sincero ao máximo com a realidade, com a história, com o conhecimento e com meus irmãos e alunos de arte.

Acontece que, muitos mestres ou professores, muitas escolas, utilizam-se da linhagem para controlar o sistema, assim como, controlar seus estudantes/alunos, e assim, controlar o próprio conhecimento, como detentores exclusivos deste saber (o que, geralmente, não é verdade). Daí surgem as disputas e conflitos entre escolas que reivindicam a mesma maestria e linhagem. Daí também é que muito do conhecimento pode se empedrar, congelar ou estacionar, onde a linhagem acaba sendo usada como fator ideológico ou político de controle e manutenção, não só do conhecimento, mas do ‘produto’, ou seja, da ‘marca’ que se torna a linhagem, limitanto e empobrecendo assim a própria arte e o próprio conhecimento.

Linhagem como manutenção de poder

Se, como problematizado no título anterior, a linhagem é usada como controle, ela resulta também em manutenção de poder, onde o suposto discípulo e agora mestre-patriarca da linhagem, detém o poder sobre o conhecimento e consequentemente sobre seus alunos. Assim ele pode manter sua escola economicamente viável (nada contra, mas não é só isso o que deve estar em questão) sob a sombra da linhagem ou do discurso que, em muitos casos, ela se reduz. Aí temos um problema. A linhagem em questão acaba sendo mais figurativa, simbólica e/ou representativa do que real. Ou seja, o conhecimento que ela traz em si se aplica como inquestionável, imutável, inabalável, até que algo ou alguém prove contrário. Neste caso, a linhagem é tomada por um conservadorismo que a mantém viva, mas sobre a égide do autoritarismo e do discurso, mais do que da necessidade e realidade que deveria a justificar e fundamentar. Portanto, não é só porque uma escola, associação ou professor tem linhagem que é bom. Isso, geralmente, é discurso ideológico ou senso comum. Assim como dizer que, por não ter linhagem (em específico) é ruim, sendo que, as coisas não se realizam plenamente pelos discursos alinhados com uma suposta verdade absoluta, mas sim pela realidade prática. Nisso, ter ou não ter linhagem, é uma questão de necessidade (ou pelo menos, deveria ser) e não por uma mera manutenção de poder (negócio) e status.

Com isso, de modo algum estou negando a importância e papel das linhagens. Volto a dizer, estou apenas problematizando uma questão quase ‘intocável’ nos assuntos ditos marciais. Desconfio sempre de quem extremisa a questão a ponto de dizer que ‘se não tem linhagem não é bom ou é picaretagem’, assim como quem diz que ‘linhagem não passa de tradição’. Ambos os casos são equivocados e encontram-se nos extremos de seus discursos ou crenças  ideológicas. Existe escola com uma linhagem específica, assim como, escola com mais de uma linhagem, onde o mestre representa mais de uma família (ou linhagem), e também escola sem linhagem alguma, onde se estuda a partir de variadas experiências, mas não se representam especificamente ou oficielmente elas. Nem numa, nem outra é melhor ou pior, isso é relativo e depende mais da prática no real do que daquilo que se acha, acredita ou diz. Quem comanda no final é a necessidade e sinceridade com o que se sabe, conhece e pratica. O mais é política (no sentido de tomar partido: defesa e ataque com determinismo e simplismo, prática muito comum, infelizmente, no meio dito marcial).

Enfim. Tendo linhagem ou não, o Kung Fu existe e é justamente rico por sua diversidade e nas suas variadas possibilidades, sendo mais que uma luta, um esporte, uma prática física, uma linhagem. Kung Fu em uma concepção mais ampla é um caminho de vida e não um lugar.

Herman Silvani (estudante/praticante, sifu/professor de Wing Tjun Kung Fu e Chi Kung na AFWK, filosofia, sociologia, história e linguagem - e estudante/praticante de Tai Chi Chuan Pai Lin)