sábado, 20 de agosto de 2016

Wing Tjun, arte também interna...



O sistema Wing Tjun deriva dos estilos Garça Branca e Serpete (Emei), talvez por isso, é que existe a lenda (popularizada) de que uma monja (Ng Mui) criou o WT depois de presenciar um combate entre uma garça branca e uma cobra. Mas sua origem, a partir de certa coerência histórica, remonta do templo Siu Lam (sul da China), onde teria sido desenvolvido por monges que lá habitavam, depois, repassado e estudado nas sociedades secretas compostas por artistas e estudantes do teatro ópera dos juncos vermelhos.
Originalmente o Wing Tjun, além do fator 'externo', era um 'estilo interno' de 'arte marcial', como o Tai Chi Chuan e o Bagua, por exemplo. Mas durante as várias revoltas e guerras na China, o sistema WT foi simplificado para ensinar jovens chineses se defenderem e/ou combaterem em um tempo relativamente curto.
Durante a rebelião taiping o tempo disponível para preparar os jovens para lutarem era pouco, então o trabalho interno foi reduzido, para priorizar o quesito técnico do WT, devido a sua contundência e sofisticação marcial, fazendo com que fosse um sistema de combate eficaz e que pudesse ser aprendido em um curto espaço de tempo.
A arte tradicional interna é poderosa, baseia-se na concentração e fluxo da energia (Chi) - e sua explosão, o 'Fajing'. Mas não é tão simples de se estudar como às vezes parece. É preciso aprender a estrutura (base), o enraizamento ou aterramento, o derretimento interno, a flexibilidade necessária ou relaxamento, e a respiração correta para que esta energia se concentre e tenha fluxo pelo corpo.
Quem estuda WT por este viés tem a possibilidade de aprender um sistema de Kung Fu muito sofisticado, cujo objetivo não é simplesmente 'lutar', mas sim buscar equilíbrio e fluidez para viver e atuar no mundo - além dos quesitos saúde e técnica marcial.
O Wing Tjun que buscamos, estudamos e propomos, é um sistema que tem sua origem nas 3 principais filosofias chinesas: Taoismo, Budismo e por último no Confucionismo, de onde vem muitos dos seus conceitos fundamentais, além do 'resgate' dessa sua história e modo de se conceber e estudar/praticar.
O trabalho interno é mais lento e em alguns aspectos até mais 'difícil' do que o externo, e os resultados não aparecem imediatamente, porém, quando bem praticado, o WT interno, ao se exteriorizar, atinge níveis mais profundos, contundentes e dinâmicos. A partir do estudo do seu fator 'interno', com a prática do Chi Kung e elementos de artes relacionadas, é que o currículo da AFWK foi organizado.
Mente, corpo e energia - para equilibrar e fluir...


* fontes: Wing Chun enciclopédia, IWKA e pesquisas pessoais.

Herman G. Silvani (professor AFWK)

terça-feira, 19 de julho de 2016

Wing Chun ontem e hoje – e suas variações...

Wing Chun, como mais é popularmente conhecida sua forma escrita (também escrito como Wing Tjun, Ving Tsun, entre outros – e abreviado como WT) é um ‘sistema’ de ‘Mo Sut’ (o que no ocidente é popularmente chamado de ‘arte marcial’), dentro daquilo que popularmente chamamos de Kung Fu (um complexo chinês de Mo Sut que é dividido entre outros diversos estilos). Oriundo do sul da China, mais especificamente na província de Fujian, provavelmente desenvolvido  entre o final do século XVII e início do século XVIII, em plena dinastia Qing (1644 – 1911), no templo de Siu Lam (Shaolin) por estudiosos mestres budistas, especialistas nos estilos Garça Branca e Serpente (estilos de Kung Fu e ‘animais símbolo’ que caracterizam o WT, além de Chi Kung e provavelmente de Tai Chi Chuan), e em seguida ensinado para jovens atores/atrizes do teatro de ópera chinesa dos juncos vermelhos, o WT hoje é um dos sistemas de Kung Fu mais estudados/praticados no mundo. Popularizado (como foi também o caso do Kung Fu), principalmente pelos meios de comunicação de massa, através de documentários e do ator, performer e praticante Lee Jun-Fan, o famoso Bruce Lee, que de certo modo abriu caminhos para que um dos grandes mestres do estilo e seu modo de WT fossem conhecidos pelo mundo. Trata-se de Ip Man que, durante algum tempo foi sifu (professor ou mestre em chinês) de Bruce Lee. Atualmente Ip Man e o seu WT são muito populares pelo mundo, devido ao sucesso e fama do sistema de ser muito eficiente (por mais relativo que isso possa ser) e adaptável, e pela repercussão deste mestre e seu estilo de WT, primeiro através do cinema e por Bruce Lee, depois pelos mais recentes filmes que trazem a figura do próprio Ip Man como protagonista. Ip Man fez ao seu modo o que muitos outros mestres e/ou estudiosos do WT fizeram ao longo do tempo, ou seja, adaptou para sua prática o sistema, estudando mais de uma linhagem e criando assim sua própria escola e estilo de WT (o que, inclusive aparece em um dos filmes da série ‘O grande mestre’). Isso, de alguma forma, acarretou (e sempre acarreta) críticas vindas dos mais ‘puristas’ e/ou ‘conservadores’. Inclusive, na sua época, Ip Man sofreu com isso, sendo considerado por alguns, ‘traidor’ da linhagem da sua família, pelo fato de ter estudado com outros mestres e trazido alguns ‘elementos novos’ ao seu ‘WT familiar’. A partir do seu ‘modo’ ou ‘estilo’, Ip Man deixou alguns bons alunos que também se tornaram grandes mestres, e que, em menor ou maior grau, também desenvolveram seu ‘modo’ de WT. Entre eles, podemos citar Wong Shun Leung (que foi professor de Bruce Lee), Leung Ting (um dos mestres mais seguidos e estudados no WT mundial) e Moy Yat, entre outros. Isso prova que não existe uma pureza e que, o ‘estilo’ (ou ‘linhagem’) Ip Man, não é ‘o verdadeiro’, nem único, melhor ou puro WT, mas sim, ‘um dos’ estilos, escola, linhagem ou modo de se estudar/praticar ou conceber o sistema. Nisso, vários outros grandes mestres (não tão populares quanto Ip Man) deixaram seu importante legado na história do WT, como são os casos de Leung Jan e Yuen Kay San, por exemplo, assim como outros que continuam dando continuidade à estes legados com suas escolas e pesquisas, como são os casos dos atuais mestres Sergio Iadarola (IWKA) e Anastasios Panagiotopoulos (Tassos - DVT), e no Brasil Leo Imamura (Moy Yat), entre outros. Nisso, além do WT, temos artes que se coligam ou, no mínimo, se relacionam em alguns aspectos ou momentos, como é o caso do Yong Chun/Fujian White Crane (Garça Branca), do Weng Chun Kuen, das 18 Lohan Hands (18 mãos de Lohan) e dos próprios Chi Kung e Tai Chi Chuan e seus grandes mestres. O próprio Taiji foi criado a partir dos ‘animais símbolo’ Garça e Serpente, os mesmos do WT, o que confere tal relação. Nisso também consideremos a relação 'filosófica' entre budismo e taoismo na constituição das práticas ou 'artes' citadas acima - o que pretendo abordar em outro momento. 


Hipótese(s) históricas


* Foto del Dai Dak Lan, ideato da GGM Wai Yan che trasformó un suo vecchio magazzino in un luogo d'incontro dove i migliori maestri di Wing Tjun come Tang Yick, Ip Man, Chu Chung Man, Lo Chi Woon, Tam Kong...cercavano di ricostruire l'antico sistema marziale usato nel monastero Shaolin. (via IWKA)


Antigo armazém que era um local de encontro onde grandes mestres de WT como Tang Yick, Ip Man, Chu Chung Man, Tam Kong (entre outros) se encontravam para montar o antigo 'sistema marcial' usado no mosteiro Siu Lam. 











Como já foi dito acima, o WT é um ‘estilo’ de Kung Fu do sul da China. Mas a história de sua origem divide opiniões pelo mundo. Algumas linhagens seguem a clássica e lendária história (ou ‘estória’) da monja Ng Mui (a mais popular delas) e da criação do sistema a partir da luta entre uma serpente e uma garça que, supostamente a monja teria presenciado, e depois de criado um novo estilo de Kung Fu, teria ensinado uma jovem chamada Yim Wing Chun. Surgiria assim um novo ‘sistema marcial’ e seu ‘nome’. Porém, esta é apenas umas das ‘estórias’ que, inclusive, se assemelham a criação de outros estilos de Kung Fu, por isso seu aspecto se torna mais lendário e romântico do que histórico. Nisso, o que temos mais próximo aos ‘fatos’ históricos, se pensarmos a partir do contexto em que se insere o surgimento do WT, chegamos ao templo Siu Lam no sul da China, período onde a dinastia Qing dos manchus dominava o país. E é mais provável que, por se tratar de um sistema sofisticado como é o WT, ele tenha sido criado por estudiosos/praticantes de Kung Fu, tendo como base os estilos Garça Branca e Serpente. Não é por nada que estes são os ‘animais símbolo’ do WT. E por se tratar de dado período e local, podemos considerar que os criadores do sistema eram mestres em alguns estilos de Mo Sut, e por viverem no templo Siu Lam, eram budistas (filosoficamente e religiosamente falando). Em seguida o sistema teria sido passado para seus alunos que eram atores e/ou atrizes do teatro de ópera dos juncos vermelhos, onde ele foi estudado e desenvolvido em segredo – daí o surgimento e a história da(s) ‘sociedade(s) secreta(s)’, com o intuito de desenvolver, preservar e aprimorar o sistema, a modo dos seus praticantes defenderem-se da tirania dos manchus. Esta é a ‘hipótese’ (uma entre tantas) de que, como historiador (não especializado nesta área, mas com meu ‘faro’), estudante e professor de WT, acredito. Outra, e a mais popular entre elas, é a de que o WT foi desenvolvido para destronar o imperador manchu e retomar a dinastia anterior, a Ming. Existe mais uma, a de que o WT serviria para a ‘revolução’. Ou seja, ajudar na derrubada da dinastia Qing e criar uma nova ordem social. Acho estas duas últimas pouco prováveis, pelo fato de o sistema ter sido criado por mestres estudiosos, portanto, ‘intelectualizados’ nas filosofias e no Kung Fu, e repassado a jovens letrados nas artes, por isso, também ‘intelectualizados’. Portanto, dentro de certa perspectiva de pensamento ‘lógico’, como seres inteligentes e estratégicos, saberiam da imensa dificuldade de, em poucos, derrubar um império muito forte como era o manchu. Por isso fico com a primeira hipótese de que o WT foi criado e desenvolvido, pelo menos num primeiro momento, para a própria defesa física e cultural dos seus membros praticantes e seu modo de vida (lembrando que a repressão era forte no período, e que o exército Qing era muito bem treinado), o que, de certo modo, explica o dito popular de que o WT foi criado para ‘pessoas mais fracas se defenderem de pessoas mais fortes’.

WT no tempo presente e suas possibilidades

Atualmente, pela popularização da internet, you tube, sites e blogs que tratam do gênero, para os que não sabiam ou não acreditavam, se comprova que existem inúmeras linhagens e escolas de WT espalhadas pelo mundo. Seja nos vilarejos do sul da China e do Vietnã ou espalhadas pela Europa, escolas, mestres e suas linhagens ou estilos de WT, nas suas diversidades, hoje são visíveis. Assim se pode ver que, além da ‘escola’ deixada melo GM Ip Man e suas variações, inspirações ou influências, existem inúmeros outros modos ou estilos de WT, tão profundos quanto o estilo ou linhagem Ip Man, só menos populares (ou popularizados), mas não menos sofisticados, eficientes ou efetivos. Uma variedade e suas variações que permitem que, hoje, com a orientação coerente, se estudem possibilidades dentro do WT, em suas várias linhagens. E isso não tem nada a ver com ‘desrespeitar’ uma ou outra linhagem, mas apenas possibilitar. É o que fazem alguns mestres/pesquisadores hoje. Nisso, tomemos de exemplo o já citado sifu Sergio Iadarola e sua IWKA, com seus estudos e pesquisas do WT e artes relacionadas pelo mundo, mantendo vivo e mostrando com amplitude o sistema, nas suas várias linhagens e possibilidades. Eis a importância de se estudar, além do quesito técnico e cíclico, a história, a filosofia (seus conceitos e formas), e as inúmeras possibilidades que uma arte tão sofisticada e sempre atual como o WT nos oferece.


Herman G. Silvani (professor/instrutor da AFWK – Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu)




domingo, 29 de maio de 2016

Wing Tjun não é esporte nem luta... e defesa pessoal?


É muito comum, por falta de conhecimento ou aprofundamento contextual, algumas pessoas relacionarem diretamente o Wing Tjun Kung Fu com esporte ou luta, assim como reduzi-lo a um método ou copilação de técnicas, no que muitos chamam de 'defesa pessoal'. Tenho a ciência de que não é obrigação das pessoas leigas no assunto saber onde se localizam os diversos 'estilos' das chamadas 'artes marciais', mas penso que seja a obrigação dos professores, mestres ou instrutores esclarecer isso. Nisso, respondo algumas questões referentes que me chegam:

Wing Tjun não é esporte nem luta ou meramente um método ou copilação de técnicas de ‘defesa pessoal’. Wing Tjun é um ‘sistema’ que busca desenvolver certas ‘habilidades para a vida’, sob tudo o ‘equilíbrio’ de ser-estar, a partir da masterização entre ‘Mente, Corpo e Energia’. No currículo Fluir Wing Tjun estudamos, praticamos ou trabalhamos os aspectos (ou níveis) ‘interno’ e ‘externo’ do Kung Fu, a partir de pesquisas relacionadas, concentração e práticas mentais e físicas (respiração e movimento corporal) para a compreensão, busca, concentração, canalização-direção e fluência do ‘Chi’ (energia cósmica da natureza que se concentra e passa pelo corpo, gerando ‘força’ e/ou ‘intensidade’ física no movimento – do interno para o externo). Diferente da luta esportiva, não buscamos 'condicionamento físico' (pelo menos não como buscam e necessitam os chamados 'atletas de rendimento', já que nossa questão não é competição ou títulos - ou seja, ‘não é esporte’). A partir de algumas técnicas e estudo/prática de Chi Kung (Qi Gong), junto ao Wing Tjun (e outros ‘estilos’ relacionados), trabalhamos nosso sistema e modo de se praticar e efetuar nosso Kung Fu, não só na aula/treino, mas na vida cotidiana como um todo. 'Defesa pessoal' não é uma regra ou um fim (tanto que nem é uma realidade pura e simplesmente dependente do estudo técnico), mas pode (e de certo modo é), um 'reflexo' de muito estudo/prática e equilíbrio entre ‘Mente, Corpo e Energia’.

Mais que ação física, o sistema Wing Tjun de Kung Fu trabalha para habilitar o estudante-praticante à proatividade (antecipação de possíveis problemas) e à sensibilidade para integrar e agir no cotidiano, na busca por equilíbrio e consciência presencial (o ‘estar presente’ ou o 'aqui e agora'). Eis nossa proposta enquanto associação de estudos e prática do Wing Tjun Kung Fu. 



sexta-feira, 4 de março de 2016

Incorporar o Kung Fu

Minha paixão pelo Kung Fu vem desde muito cedo, quando ainda era pré-adolescente, em meados dos anos 90. Vendo filmes do Bruce Lee, busquei aprender esta arte com um professor que morava no mesmo bairro que eu. Durante alguns anos fui praticante e entusiasta de arte marcial, até me envolver mais com a música e as artes em geral. Acabei ficando mais de 15 anos sem praticar oficialmente em uma escola, porém, nunca parei com meus estudos pessoais, alguns contatos e práticas, principalmente com aquilo que chamam de ‘arte interna’. Neste tempo, antes de retomar os estudos/treinos numa academia, algo de Chi Kung e Taiji, assim como movimentos (das formas) do Kung Fu (Garça Branca, Serpente e Wing Chun), sempre estiveram presentes na minha vida. Até que, enfim, retomei a prática efetiva com um grupo, e hoje, além de estudante/praticante, também sou professor/instrutor da AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu). Estudo e pratico quase que diariamente, e como também sou da área da filosofia, levo muito em consideração o pensamento oriental nestes estudos. Nisso, sempre enfatizo aos meus irmãos/ãs Kung Fu e/ou alunos/as, que ‘não basta só treinar (fisicamente falando), é preciso incorporar o Kung Fu’, seu ‘espírito’. Quando falo em espírito aqui, não estou me referindo à questão religiosa, ou me remetendo ao além-divino, mas sim a incorporação do Kung Fu como uma ‘personalidade’ mental e física a ser adquirida, um ‘modo de ser e atuar’ na vida. Ou seja, ‘espírito enquanto integração com o meio’, enquanto criação de um ambiente propício ao ‘ser Kung Fu’, externa e, principalmente, internamente. Sabem quando popularmente se fala ‘o espírito do lugar’, ou ‘aqui tem um bom espírito’, ou ainda, ‘esta pessoa é espirituosa’? É isso! É neste sentido que ‘o Kung Fu precisa, fundamentalmente, ser incorporado’. Caso contrário, teremos mais um nome, um título ou uma palavra, do que uma condição, o que, diga-se de passagem, acontece ou existe muito neste meio e por aí. E para que esta ‘incorporação’ seja possível, é preciso, além de treinar (fisicamente e tecnicamente falando), absorver o ‘espírito do Kung Fu’ no seu próprio corpo, e mais que isso, na sua própria mente e sensibilidade. Assim desenvolvemos uma ‘espiritualidade’ Kung Fu, em que a palavra, o termo, passa a ter um significado mais profundo, pois, já não falamos mais da boca para fora ou apenas mantendo o discurso e a aparência, mas sim ‘vivemos o Kung Fu’ efetivamente e talvez, integralmente, o que não é algo fácil, porém, podemos sim ter certa ‘parcialidade’ que, mesmo não estando completamente mergulhado nisso, no seu todo, assim mesmo podemos integrar esta incorporação ou composição, como músicos de uma orquestra, onde, mesmo numa sinfonia que é feita de partes, o que mais importa é a música, a arte, e onde o corpo, a mente ou nossa consciência, e a energia vital que nos sustenta e nos move, possam estar equilibrados existencialmente e intelectualmente. Para isso basta certa ‘disposição’ e/ou ‘entrega’ daquele que se permite estudar/praticar para além do quesito físico-externo ou técnico. Contudo, isso vai refletir no que o taoismo e também o budismo (enquanto filosofias e não religiões) chamam de ‘o caminho do meio’. Ou seja, ‘nem muito, nem pouco, mas o suficiente’. Eis o caminho! Eis o que o Kung Fu, já incorporado, nos pode trazer de mais profundo: o ‘equilíbrio’ de ser-estar. Ou seja, de viver sendo Kung Fu, para além das aparentes razões e vaidades que, muitas vezes, infestam este ‘mundo’ dito marcial.



segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Wing Chun: hipóteses históricas

Alguns estudiosos da história do Kung Fu afirmam que sistema Wing Chun e/ou Weng Chun Kuen tem suas raízes históricas datadas a partir de 1644, no período imperial chinês dominado pela dinastia Qing (dos Manchus) que só caiu depois da Revolução Chinesa (1911-1912). Contundo, não há como precisar uma data exata para o nascimento do WT (sigla para Wing Chun, Weng Chun ou Wing Tjun/Tsun - também encontramos escrito Eng Chun), mas em linhas gerais podemos dizer que ele foi desenvolvido pelos idos finais do século XVII ou início do século XVIII. O que nos interessa aqui, enquanto pesquisadores, professores ou estudantes de Kung Fu e sua história, são os contextos que envolvem o sistema (ou ‘estilo’), além das concepções e conceitos internos que constituem esta sofisticada e ampla arte. Nisso, vou reter-me a falar disso, daquilo que tenho condições enquanto historiador e professor de WT, tendo em vista os possíveis fatos, hipóteses e circunstâncias que entornam e são inerentes ao sistema WT. Portanto, tudo o que for dito aqui não são ‘verdades’ absolutas, mas sim impressões, hipóteses, interpretações ou ainda ‘versões’ dos possíveis fatos históricos, a partir de informações ou conhecimentos não constituídos na metodologia da pesquisa histórica, mas em leituras, percepções, diálogos e análises relacionadas, pensadas e colhidas através do tempo, apenas por um olhar de historiador. Ou seja, o texto presente não é resultado de uma pesquisa histórica presencial-oficial, mas apenas uma reflexão ou análise de cunho sociológico, filosófico e histórico, a parti de um  olhar ou leituras pessoais.


‘Linhas’ de se pensar, estudar ou praticar Wing Chun

Existem inúmeras linhagens, famílias ou escolas de WT pela China e pelo mundo, assim como inúmeros mestres e estudantes do ‘estilo’, o que, de certo modo, criou ‘linhas’ diferentes de se pensar, praticar e conceber o WT como sendo um sistema de Kung Fu e forma cultural de se viver ou se posicionar no mundo – como é o Kung Fu para além do quesito ‘luta’. Dentro destas ‘linhas’ existem divergências quanto aos modos de se interpretar e estudar ou promover o ‘estilo’. As ‘linhas’ mais populares (ou popularizadas) conhecidas pelo mundo, sob tudo no ocidente, vem a partir da chamada ‘linhagem Ip Man’. Para quem pouco ou nada sabe da história do WT, alguns podem até pensar que foi este mestre que desenvolveu ou criou o ‘estilo’ (observo, pois já vi gente dizendo isso). Mas o que podemos pensar ou dizer é que, o WT do mestre Ip Man, é um 'modo' de WT, digamos, mais ‘moderno’, no sentido de que, Ip Man, como tantos outros mestres, modificou o WT o adaptando ao seu 'modo' de interpretar e ensinar o sistema. Nas províncias e vilas do sul da China ainda existem ‘linhagens’ de WT, geralmente em pequenos grupos, muitos deles familiares, que trazem em si características do que podemos chamar de ‘o antigo WT’ (mais próximo aos estilos Garça Branca, Emei e Serpente de Kung Fu). Podemos constatar isso, por exemplo, a partir das pesquisas do sifu holandês Sergio Iadarola (mestre fundador da IWKA), um dos grandes mestres e pesquisadores atuais do WT e das chamadas 'artes internas' a nível mundial. Sifu Sergio tem vasto material publicado sobre ‘linhagens’ e/ou ‘sistemas’ de WT e artes relacionadas, as que têm ligação, digamos, mais ‘direta’ com o WT das primeiras gerações (para saber mais, cabe pesquisa na internet e You Tube).

A mesma névoa típica do sul da China onde o WT nasceu, também torna sua história um tanto nebulosa. No mesmo período do provável surgimento do Wing Chun, temos também o surgimento de outros sistemas muito similares (que pelo menos tem as mesmas raízes históricas ou a mesma 'matriz'), onde suas próprias ‘estórias’, ‘lendas’ ou histórias de surgimento são similares (e até iguais), ou se misturam e se confundem (não seria a mesma história e portanto a mesma arte que apenas tomou direções diferentes?). Algumas ‘linhas’ defendem que estes sistemas seriam o mesmo, ou seja, um só, e apenas foram divididos por serem interpretados e ensinados de maneiras diferentes, o que não é nada difícil de acontecer. Artes 'irmãs' ou 'parentes' como o Weng Chun (Kuen) e o Wing Chun, que datam aproximadamente do mesmo período de surgimento e tem os mesmos princípios e heranças, e estão inseridos num mesmo contexto. 


Hipóteses históricas

No meio de todo este emaranhado de questões, duas ‘versões’ ou hipóteses históricas, no que se refere à criação do sistema Wing Chun estão mais à tona. A mais popular (ou popularizada) delas relaciona-se justamente como o mestre (ou linhagens que o seguem) mais conhecido do estilo: Ip Man, que conta a ‘estória’ ou lenda da monja Ng Mui e sua protegida Yim Wing Chun (para quem quiser saber dessa ‘estória’ – ou seria história? - cabe a pesquisa). A outra versão que, vendo como historiador, tem características de ser mais ‘histórica’ e menos ‘romanceada’ (ou lendária) que a primeira da monja e sua protegida, é a dos ‘rebeldes’ que no final do século XVII ou início do XVIII refugiaram-se no teatro de ópera chinesa dos juncos vermelhos para estudar/praticar (aprimorar ou desenvolver?) um novo sistema de Kung Fu, que depois ficou conhecido como Wing Chun e/ou Weng Chun, o que, segundo algumas informações diziam que era o nome da sala em que se estudava/praticava ou treinava clandestinamente o sistema dentro do teatro. Essa história (ou ‘estória’) funde-se como outra que diz que, dentro do Templo Siu Lam (Shaolin do Sul), havia um lugar chamado ‘Weng Chun Dim’ ou o ‘Grande-Salão da Perpétua ou Eterna Primavera’, o que nos dá outros elementos históricos para pensar sobre esta história cheia de informações e desinformações. Nesta hipótese do Templo Siu Lam, ‘Wing Chun’ ao invés de um nome pessoal (que seria o da protegida da monja Ng Mui, segundo a ‘versão’ mais popular) representaria o sistema avançado que foi desenvolvido dentro do Templo e passado em segredo durante algum tempo aos seus estudantes que formaram 'sociedades secretas' para o estudo, prática do sistema, como uma forma de resistência e auto-defesa às investidas dos manchus. O sistema Wing Chun permaneceria escondido até ser enfim levado a público durante a era do Juncos Vermelhos. Nesta hipótese, os membros do Teatro-ópera dos Junco Vermelhos não teriam criado o sistema. O Wing Chun teria sido criado no Templo Siu Lam pelos monges estudiosos das filosofias budista e taoista (aspectos confucionistas, de Sun Tzu, entre outros), e mestres em estilos de Kung Fu como Garça Branca, Emei Serpente, Chi Kung e outras 'artes internas', e posteriormente o WT tenha se infiltrado no Teatro-ópera do Juncos Vermelhos através das Sociedades Secretas, mais de um século depois de ter saído de Siu Lam. Porém, a existência ou não do Templo Siu Lam é outra dúvida. Mais uma provável 'lenda'. Segundo algumas pesquisas, este templo nunca existiu, e na verdade era uma (ou algumas) Sociedade Secreta, e não um templo. 

Dentro de toda esta complexidade de informações, fatos e/ou lendas, o que é importante saber é que estes ‘rebeldes’ estudantes/praticantes do novo sistema de Kung Fu se uniram para resistir e/ou combater a dinastia Qing dos Manchus, onde a simbologia ou significado de Wing Chun tem relação com isso, pois, um dos significados mais representativos é interpretado ou traduzido como: ‘Eterna Primavera’ ou ‘Canção da Eterna Primavera’, sendo que ela, a primavera, representa principalmente ‘renovação’.


Três Hipóteses referentes ao desenvolvimento do Wing Chun

Relacionado à história (ou ‘estória’) das sociedades secretas e seus rebeldes, podemos pensar em três hipóteses diferentes entre si no que concerne aos fundamentos do Wing Chun, pensado a partir de certa percepção de uma possível ‘lógica histórica’.

Primeira – os restauradores: Talvez, a mais popular ou reproduzida hipótese, diz que os ‘rebeldes’ queriam destronar o imperador manchu e retornar a dinastia anterior (Ming) do qual eram adeptos, o que caracterizaria a rebelião ou resistência como sendo um 'grupo político-restaurador' ligado à dinastia anterior;

Segunda – os revolucionários: os ‘rebeldes’ queriam destronar o imperador manchu para substituir o poder como lhes interessasse, junto a outros grupos rebeldes que se espalhavam pela China, o que caracterizaria a rebelião ou resistência como sendo um 'grupo político-revolucionário';

Terceira – os libertários: os ‘rebeldes’ estavam apenas se defendendo ou resistindo ao tratamento duro vindo da dinastia Qing, o que caracterizaria a rebelião ou resistência como sendo um grupo libertário, o que caracterizaria o WT como um sistema proativo (antecipatório) de defesa pessoal de um grupo que resistiu ao domínio violento da dinastia Qing. Ou seja, a ‘natural’ luta pela vida e liberdade de ser-estar, o que também fundamenta a ideia de que o sistema foi criado para pessoas ‘mais fracas’ (fisicamente falando) se defenderem de pessoas ‘mais fortes’. Isso caracterizaria um 'grupo político-libertário'. 

Devido ao fato de ser historiador, além de estudante e professor de WT, entre estas três hipóteses, como sendo a histórica, acredito na terceira, pois vejo nela mais sentido histórico, sendo que, os ‘rebeldes’, na sua maioria eram jovens e letrados (intelectualizados, ligados à filosofia e as artes, como música e teatro), seria a mais condizente com o contexto.

Por quê? Nas duas primeiras hipóteses, dentro de certa lógica contextual, a sociedade secreta em questão deveria ser formada por militares ou, agentes que, pelo menos tivessem sido educados ou treinados em regime militar e não por estudantes ou intelectuais das artes e filosofia, pois ambas as hipóteses trazem em si contextos ambiciosos de destronamento de um imperador de um grande e forte império, sendo uma de origem ‘restauradora’ e outra ‘revolucionária’, como citado acima. Em ambos os casos, isso só seria possível com forte disciplina e treinamento militar, além do uso de armas, estratégias e táticas militares, e isso só se daria com o estabelecimento de uma hierarquia militar e certo tempo de doutrinamento e treino duro, como é característico no militarismo. Sendo estas pessoas intelectualizadas, portanto, inteligentes e sensíveis (ao modo artístico de sê-lo), dentro de certa ‘lógica’, penso que não teriam esta ambição desmedida, tamanha dificuldade em combater um grande e forte império como o dos manchus. Outro fator que me leva crer na terceira hipótese é o de que não faria muito sentido os ‘restauradores’ quererem lutar por uma dinastia também opressora como foi a Ming (característica dos impérios chineses). Por isso opto por crer na terceira hipótese, a mais simplória e condizente com o contexto, e que tem mais a ver com os fundamentos de ‘prática proativa’ e ‘não militar’ do WT. Mas como eu já deixei claro antes, isso não é uma ‘verdade’ ou um fato, apenas uma entre tantas hipóteses.


Modos de se interpretar e conceber o sistema WT

Algumas linhas de se pensar, estudar e praticar WT defendem a ideia de que ele não é um sistema ‘simples’ como comumente se propagandeia por aí, mas foi ‘simplificado’. No caso, o WT foi simplificado a modo de facilitar sua prática, num período urgente de resistência em que não havia tempo suficiente para estudá-lo profundamente. Eis então que ele sofre uma adaptação, adequação, uma alteração, mais ou menos por volta de 1850 em diante, junto ou depois da 'rebelião Taiping'. Foi aí então que, supostamente ele possa ter sofrido influência militar. Nisso, o WT ‘endureceu’. Ou seja, tornou-se mais mecânico, corporalmente falando, onde seu 'fator interno' diminuiu muito. Mas, o WT no seu modo ‘relaxado’ (e também ‘interno’) de ser concebido, resistiu, onde o trabalho meditativo e técnico de captura, concentração e fluxo de energia (‘chi’), presente em outros estilos ou sistemas de Kung Fu, se manteve, só que com menos visibilidade. É fato que alguns (ou muitos) professores, mestres e/ou praticantes não acreditam nisso, talvez por desconhecerem esta questão e seu fundamento, ou mesmo por aprenderem diferente, segundo suas ‘linhas’ ou o ensinamento das ‘linhagens’ de que fazem parte, outros ainda, por um fator político-ideológico. 

Outra leitura de contexto diz que Ip Man também fez uma adequação do WT neste sentido, ao ir para Hong Kong, um grande centro urbano, onde adquiriu muitos alunos, e pelo falto então, de ter que ensinar dentro de um grande coletivo, sendo que o tempo não era suficiente para tal e, como um professor sozinho (quem trabalha em sala de aula sabe bem disso), para dar conta do recado, teve que 'simplificar' o sistema à um modo mais ‘mecânico’ ou 'formal'. Mas, dizem que, para os seus alunos ‘escolhidos’ (que se destacavam), ensinava de uma forma mais flexível. Este ‘endurecimento’ ou ‘mecanização-militarizada’ também aconteceu com outras artes ditas ‘marciais’, como o Caratê por exemplo. Nisso, também entra o contexto ‘esportivo’ dito de ‘rendimento’, e o ‘espetáculo’ cotidiano e midiático (muito comum hoje em dia) ligado à questão estética (físico-muscular), o que também muda o modo de se ‘incorporar’, estudar/praticar e conceber a ‘arte marcial’, assim como resulta também, na mudança da sua finalidade, onde que, muitas vezes, infelizmente, acaba diluindo ou morrendo sua essência.  


Considerações finais

Dentro de todo este panorama (que é parcial, mas não segmentário, idealista ou ideológico), com um intuito e uma visão universais (em aberto e sem determinismos ou reducionismos históricos), em linhas gerais penso que, por ser uma arte sofisticada de auto grau técnico e de concentração, e pelo contexto histórico do período, o mais condizente com os fatos, se partirmos de certa lógica histórica, é que o sistema Wing Chun e/ou Weng Chun tenha sido desenvolvido no sul da China, inicialmente por mestres estudiosos de algumas áreas do conhecimento, entre elas filosofia, física, meditação, técnicas de respiração e corporais (Chi Kung, Tai Chi), assim como de alguns estilos mais antigos de Kung Fu como a Garça Branca e a Serpente, por exemplo (justamente os que viriam ser os dois animais-símbolo do WT. Depois o WT adquiriria seu nome, a partir do espaço de estudo e prática da então nova arte e da simbologia que o nome carrega, e enfim seria amplificado para além das Sociedades Secretas, no Teatro-Ópera dos Juncos Vermelhos, onde possivelmente, tenha tido outros desenvolvimentos e agregados novos instrumentos e conhecimentos, até chegar ao Wing/Weng Chun das famílias, linhagens, escolas e por fim ao grande público.

Enquanto experiência pessoal, junto ao meu grupo ou associação, buscamos estudar/praticar WT a partir de seus aspectos filosóficos e históricos, além de técnicos e físicos, priorizando a dinâmica que o sistema oferece e sua fluidez (o que inspirou o nome da nossa associação), relacionando-o a outros conhecimentos e ‘estilos’ ou sistemas 'irmãos', 'parentes' e afins, que venham a integrar ou interagir naquilo que nos propomos enquanto estudantes/praticantes dentro de um coletivo. Nisso, o equilíbrio entre os polos de energia (Ying-Yang), as partes ‘interna’ e ‘externa’ da arte, assim como os conhecimentos de vida de cada estudante, são elementos indispensáveis nos nossos estudos, pois, é alinhando ‘Mente, corpo e energia’ (ver conceito no taoismo) que trabalhamos a ‘incorporação’ do Kung Fu em cada um, a partir do seu ‘espírito’ (enquanto energia dentro do meio), em busca do ‘equilíbrio’ fundamental para ser-estar, o que considera sempre o entorno e o porvir. Eis, em suma, a concepção e prática de Wing/Weng Tjun da AFWK.


(Herman Silvani - historiador, professor de filosofia, sociologia, linguagens, Chi Kung e Wing Tjun)