O sistema Wing Chun não foi criado para o ringue. Ou seja,
não é um estilo (dentro do que muitos chamam ‘arte marcial’ ou Kung Fu) desenvolvido
para lutas esportivas ou mesmo para uma luta ‘de igual para igual’ em outro
contexto. No WT (abreviação para Wing Chun), o ‘combate simbólico’ se restringe
ao treino, e para entender seu intuito enquanto sistema ou estilo, é necessário
observarmos e considerarmos suas características (características estas que dão
significado e localizam devidamente o estilo). Para que entendamos esta
questão, precisamos fundamentalmente olharmos, considerarmos e refletirmos a história
do sistema.
O Wing Chun tem sua origem no final do século XVII ou início
do século XVIII (por volta de 1700) no sul da China, e foi desenvolvido na
passagem do tempo, através do que na história chamamos de ‘processo histórico’
(provavelmente por mais de uma - ou várias pessoas, com base em outros estilos
já existentes e praticados, como o Bai He e o Emei), caracterizado como um ‘sistema
marcial proativo' (antecipatório e defensivo). Ou seja, à grosso modo, foi
criado para que pessoas mais vulneráveis ou 'fracas' pudessem se defender de
pessoas mais 'fortes'. Para compreender melhor isso, vamos ao contexto
histórico necessário.
A China de onde nasce o WT vivia o domínio manchu (dinastia
Qing), onde o exército imperial agia de forma abrupta sobre as comunidades ou
vilas. Dentro desta realidade de imposição e violência por parte do governo
imperial e seu exército, é que surge o WT, como uma forma de 'autodefesa'
daqueles habitantes do sul da China, sendo um sistema pensado para a melhor
adaptação possível, onde agir rapidamente e com contundência, pudesse garantir
certa integridade aos cidadãos oprimidos que praticassem esta arte, o que faz
do WT uma ‘arte defensiva de resistência’.
Muitos resistiram e sobreviveram, deixando este rico conhecimento
como herança. Os anos se passaram, a dinastia Qing caiu e a China alcançou a
república (1911/1912). Com o tempo o sistema WT sofreu modificações e
principalmente mudanças no entendimento ou interpretação do seu fundamento. Nestes
processo, muitos passaram a admitir o WT como uma 'luta', no seu sentido de
combate de igual para igual (troca de golpes). Porém, não é esta a sua
'essência'. Atualmente, alguns entusiastas vinculam o sistema com a luta
esportiva, o que o distancia ainda mais do seu fundamento ou da sua essência
(isso não significa que alguns de seus aspectos não possam ser usados nas lutas
esportivas ou treinos com 'troca'/sparring). Nisso, vemos por aí vídeos onde supostos
'lutadores' de WT enfrentam lutadores de outros estilos. Geralmente perdem a
luta. As causas disso estão relacionadas a dois motivos básicos:
1. O praticante ('lutador') não é preparado para o ringue,
tatame ou octógono, pois não treina pra isso, não é atleta, portanto não tem
condicionamento físico e habilidade pra uma luta (troca de golpes em par de
igualdade, obedecendo as regras do jogo);
2. O WT não foi criado para o ringue ou para a luta (no seu
sentido de ‘disputar algo’). O fundamento do sistema é a ‘proatividade’ e a
'autodefesa', ou seja, garantir a integridade do praticante no cotidiano
caótico, portanto, desregrado, o que o leva a ser mais estratégico e defensivo,
além de 'pontual' ou econômico no seu desgaste emocional e físico. Por isso,
não é em vão que o sistema é conhecido como 'econômico' (economia de movimentos
e energia/força), o que é bem o oposto de uma luta, seja ela esportiva ou não.
Portanto, estes vídeos e discursos, estas tentativas de
análises que incansavelmente e repetidamente são vinculados na internet, não
trazem a real condição e fundamento ou essência do sistema WT, que é muito
efetivo quando bem compreendido, praticado/estudado/treinado e bem aplicado. Os
praticantes que não possuem este discernimento, não conhecem a fundo aquilo que
praticam, talvez por olharem somente para o externo, a partir das aparências ou
dos discursos de 'senso comum' sobre o WT que se disseminaram.
Por isso, muitas das manifestações a respeito do sistema que
pipocam por aí, são frutos de uma má compreensão, entendimento e conhecimento
do mesmo. E é por isso que digo que Wing Chun não é 'luta', pois essencialmente
não foi desenvolvido para este fim. Sua origem, história e características
mostram isso para quem o estuda para além dos estereótipos e discursos, sejam
eles ideológicos ou publicitários. WT não é jogo, trocação, luta de igual para
igual. Quem o pensa assim ou treina pra isso, está equivocado, não compreende o
sistema. O que pode acontecer e acontece, inclusive com muito sucesso, é o uso
de ‘alguns aspectos, elementos e técnicas do WT’ em lutas esportivas, mas não o
sistema como um todo, sendo que muitas das suas principais técnicas e características
não podem ser utilizadas no ‘jogo’. Por isso, sem saber seu contexto histórico
e pra que ele foi desenvolvido, não tem como falar dele com profundidade. Lutar
dentro de um ringue é bem diferente do que (re)agir dentro de um ônibus ou de
uma balada, assim como foi no passado treinar para se defender das investidas
dos soldados Qing ou de alguém no cotidiano e hoje treinar em academia para
disputar esportivamente.
Portando, o WT não é um estilo de
'luta' (não de igual para igual ou esportiva). Dá para adapta-lo ao ringue
usando alguns dos seus aspectos, elementos, técnicas, mas não seu ‘todo’. Percebam
que lutadores no MMA variam técnicas provindas de outros estilos no ringue,
pois nem tudo dos estilos pode ser utilizado e é eficiente no combate simbólico
(luta regrada esportiva), já em outros espaços, situações ou contextos muda a
configuração referente ao uso destes conhecimentos. E é isso, na vida diária e
seus riscos, não existe uma condição dada, fixa. O que temos é repertório,
variação, dinâmica, caos e fluidez, onde o meio também é parte determinante do
resultado.
Nisso, dá pra se dizer que Wing Chun é a arte de 'não lutar',
mas de se defender, onde se busca rapidamente sair do risco, no intento de
manter-se a integridade. Esta é sua grande característica sócio-histórica, e pra
isso é que ele foi desenvolvido, portanto, suas características originais são
estas. Quem estuda com profundidade o sistema o conhece, e portanto, sabe
discernir entre o que é estereótipo e autenticidade referente a ele. Assim como
um artista marcial que realmente estuda, sabe discernir demonstração técnica de
luta esportiva e de situação real de rua. Dizer, generalizando, que um estilo é
ruim sem saber a diferença entre demonstração, luta esportiva e auto-defesa
(por mais subjetivo ou relativo que isso seja), é no mínimo falta de sensibilidade
e conhecimento, coisa de quem precisa estudar, pensar, experienciar, conhecer
mais. Conclusões precipitadas e pré-julgamentos são coisas de entusiasta, não
de um praticante ou professor bons que dignificam a arte e o conhecimento. Por isso, se você realmente
é um praticante ou professor de Wing Chun, deve ter este fundamental
discernimento.
Enfim, espero que alguns entusiastas das artes marciais, praticantes
e professores de ‘artes marciais’, ao invés de seguirem insistindo nesta distorção
conceitual e histórica que reduz o sistema Wing Chun, tenham a consciência e o
bom senso, e adotem atitudes que dignifiquem o conhecimento, e não o dissimulem
ou banalizem. Cair na retórica, no discurso, no jogo do 'espetáculo midiático'
contemporâneo difundidos por ‘lutas filmadas’ e disponibilizadas no youtube,
sem os devidos contextos e seus fundamentais detalhes (alguns levantados aqui),
além de suas intenções ideológicas, significa falta de profundidade no
conhecimento que, muitas vezes até se pratica, mas não se compreende na sua
essência. Por isso, estudar e pensar mais para compreender e adquirir o
necessário discernimento e coerência, e reproduzir menos incompreensões, é um
dos caminhos da sabedoria em Kung Fu.
* Herman Gomes Silvani,
praticante e professor de Wing Tjun e Chi Kung na AFWK, praticante de Tai Chi
Chuan, historiador e professor de filosofia, sociologia e linguagens poéticas.
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