sábado, 25 de maio de 2019

Tai Chi Chuan e Kung Fu para além da disputa - e do senso comum


Que se compreenda: Tai Chi Chuan e Kung Fu, não são meramente lutas (muito menos esportivas ou espetáculos midiáticos e/ou ideológicos), são muito mais que isso (leia-se que, quando falo em Kung Fu, me refiro ao aparato de conhecimentos que ele abrange, sendo o quesito marcial, apenas um deles).
* Chega a ser entediante falar novamente disso, mas, vamos lá:
Estas artes, estes grandes conhecimentos, compreendem variados outros conhecimentos (internos e externos). Assim como o Wing Tjun, o Tai Chi não foi feito para 'lutar' em competições, em disputas por status ou ego. São artes proativas (antecipatórias), por tanto, defensivas, desenvolvidas para serem parte do cotidiano humano. Portanto, 'não funcionam' na luta esportiva, a não ser, alguns de seus aspectos que, inclusive, são utilizados com sucesso no esporte. Agora, saindo do território da 'luta', da disputa, do esporte, do palco ou show, ambas fornecem grandes condições de fluir na vida, em seus vários aspectos, inclusive na maior de todas as 'lutas', a luta pela sobrevivência.
Nisso, tenho a consciência e sempre falo aos meus alunos: o Wing Tjun e o Tai Chi não servem para a luta esportiva, são conhecimentos para o dia-a-dia, estilos e habilidades que, fornecem técnicas, energias, conhecimentos, habilidades para os lutadores esportivos, porém, não se limitam aos espaços das lutas esportivas. Quando as adaptamos à luta, perdemos suas principais bases, habilidades, fundamentos, ou seja, suas essências. Já no território do cotidiano, das ruas, da vida 'lá fora', ambas tem mais fundamento e sentido do que as lutas esportivas, por serem proativas, ou seja, mais defensivas e amplas do que qualquer estilo de luta esportiva. Então, é um tremendo engano ou distorção achar que estas artes são lutas de ringue, onde, grande parte dos seus praticantes não são atletas. Somos 'cultivadores', não atletas ou lutadores (no seu sentido esportivo).
Já faz muitos anos que estudo/pesquiso 'artes marciais', e já tive experiência em estilos de luta (já pratiquei e lutei esportivamente), nisso, faço tal distinção. Em suma, o ringue não é o território do Wing Tjun e do Tai Chi Chuan. Seus territórios são fora do ringue, na vida. Quem resume ou reduz estas artes em lutas (competitivas), não as conhecem nas suas essências, ou tem má fé. Incrível é ver/ouvir praticantes não compreendendo esta questão. Falta de percepção, sensibilidade ou conhecimento daquilo que praticam?
Na matéria que segue abaixo, o 'lutador pop' Xu Xiaodong (aclamado por muitos entusiastas e seres competitivos), é intimado para se retratar publicamente e pagar indenização ao mestre de Tai Chi, estilo Chen, Chen Xiaowang, por insultos. Um esportista, lutador, dito 'artista marcial' por muitos, deveria compreender as diferenças entre uma coisa e outra, e mais que isso, ter o básico e fundamental para a dignidade dos conhecimentos ditos 'marciais', o respeito. Sendo que, grande parte (quase todos, ou todos) os 'lutadores de Kung Fu' que ele desafiou e venceu, não são 'lutadores', nem tão bons naquilo que fazem enquanto 'arte marcial' (pelo menos esta é minha percepção vendo as tais 'lutas' e espetáculos, que distorcem muito do que são os estilos envolvidos). Mas sim, no ringue, no tatame, Xiaodong pode ser um bom lutador, e me parece que até é. Mas, na dureza do cotidiano, a realidade muitas vezes é bem outra. E eis que, cada estilo ou coisa, no seu âmbito. Nem tudo se resolve com força físico-muscular, muito menos dentro de regras e nas disputas individuais ou shows midiático-ideológicos.
Nisso, um Tai Chi, um Kung Fu bem praticando, estudado, na sua essência, nos dá plenas condições de luta, naquilo que é muito maior do que um jogo ou uma disputa, ou seja, a luta cotidiana, na vida (o que inclui 'auto-defesa' e, principalmente, antecipação dos problemas que enfrentamos diariamente).
Eis a matéria:
https://www.scmp.com/sport/mixed-martial-arts/article/3011644/china-orders-xu-xiaodong-publicly-apologise-and-pay?fbclid=IwAR3tJoWdyr_I0SrNyurbiGYZzEo5CLxMOpvxCHErEfmykPoInPw1AIVyl8Y

* Em diálogo com um sifu de Wushu (Shaolin do Norte), acabei por ampliar a reflexão nas palavras que seguem:
Há sérias controvérsias quanto a origem do Kung Fu. Alguns defendem que ele é fruto do militarismo (feito para a guerra), outros, dizem o contrário, que ele foi desenvolvido para defender-se da violência gerada pelo estado de guerra. Falo do nosso sistema/estilo que, historicamente é do segundo contexto. Também, alguns vão dizer que, Kung Fu deve servir para a luta. Até aí, tudo bem, posso concordar. Porém, penso e vejo através do estudo ou atenção à história, que ele vai além disso. Nos períodos de guerra o Kung Fu, quando já existia enquanto 'conjunto de conhecimentos' (e não simplesmente um estilo de luta como pensam alguns), era armado. Ou seja, um praticante de Kung Fu o praticava também com armas, muito mais usadas em guerra do que as 'mãos vazias'. Nisso, os estilos 'defensivos' (como o Wing/Weng Chun e o Tai Chi Chuan, por exemplo), são mais aplicáveis (utilizáveis) de 'mãos vazias' num contexto de garantia da integridade (física e psicológica) do que os estilos 'ofensivos' (lutas, onde o 'fator externo' físico é predominante).
Existe muito discurso ideológico e publicitário (além de romantismo) acerca da figura do 'guerreiro' em arte marcial (tema o qual pretendo escrever noutra feita). Muito se fala em 'arte da guerra', mas, não muito se lê e/ou interpreta sobre ela.
No duro da realidade, com alguém maior e mais forte que eu, não sairia no soco, disputando com o lutador/agressor em questão, mas usaria meus conhecimentos proporcionados pelas artes que estudo/pratico e leciono, artes estas, que não tem a força física (muscular) como uma das principais características, mas são mais precisas enquanto 'inteligências marciais', o que envolve certas habilidades e estratégias, mais do que a condição física existencial. Nisso, ao invés de força muscular, socos e chutes desferidos contra um suposto agressor ou lutador, numa disputa de igual para igual, regrada (sendo que esta igualdade e regras não existem no contexto da 'vida lá fora' quando se trata da possibilidade de garantia da integridade pessoal), agiria com flexibilidade, atuando com aplicações do Wing Tjun e do Tai Chi Chuan em partes vulneráveis do corpo, além da movimentação provindas destas artes, pois neste caso, a luta seria outra. Esta é a distinção ou discernimento que se deve ter e a que me refiro. Não nego ou deprecio a luta esportiva enquanto forma de treino e esporte, porém, devo perceber e falar de seus limites em situações fora de seu âmbito de conhecimento e habilidade. No espaço ou território das ruas, do cotidiano, da vida além do 'jogo', outras habilidades e conhecimentos são necessários. Com meus 1:65 m de altura e 65 kg, praticamente não tenho chances em luta de igual para igual contra um lutador como o Xu Xiaodong (da matéria), por exemplo, pois as condições físicas não são iguais, nem o terreno de um ringue é propício. Então, em outros terrenos, que não sejam os da 'luta' (esportiva), minhas 'armas' também precisam ser outras (ou alguém acha que, ficar trocando golpes com alguém maior e mais forte de igual para igual é uma boa condição?). Já tive experiências, tanto no âmbito da luta esportiva quanto da 'auto-defesa', e territórios distintos, por isso também falo o que falo sobre o assunto. Mas é claro, devemos considerar a relatividade que existe nisso.
Em suma, o que eu quis (ou quero) com esta reflexão, é ampliar a questão, ou não reduzi-la a determinismos que acabam resumindo o Kung Fu (que é um conjunto de conhecimentos) a uma luta, sem desconsiderar este aspecto, mas, indo além dele, problematizando algumas atitudes e notícias ligadas ao discurso, geralmente ideológico ou sem a devida profundidade.



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