Como todos sabemos, o Brasil é um país multicultural e politicamente
plural, onde a diversidade, tanto natural quanto cultural, é sua maior riqueza.
Porém, vivemos tempos difíceis, em que esta diversidade sofre diariamente
ataques provindos de poderes organizados e institucionalizados, sendo,
infelizmente, o atual governo um deles (não vamos fazer de conta que isso não
está acontecendo, pois quem é minimamente informado, sabe que está, e isso, em
suma consciência, não se pode negar, esconder ou negligenciar). Sendo assim, na
vida cotidiana, pessoas ‘comuns’, acabam reproduzindo ou endossando
manifestações e ações violentas provindas do Estado (governo), o que atinge
direta ou indiretamente seus compatriotas e o espírito do país (sociedade e
natureza).
Como taoista (filosoficamente e espiritualmente falando), professor
(sifu) de Kung Fu (Wing Tjun) e Chi Kung, além de professor em escolas públicas
e privadas, vivo e sinto intensamente esta realidade atual (somado a certo
nível de sensitividade que possuo), de forma muito dura. Nisso, consciente das
minhas responsabilidades enquanto cidadão, estudante e professor, possuidor
destes conhecimentos, não posso me furtar de discutir o assunto a partir
daquilo que estudo, leciono e pratico, ou seja, do taoismo e do Kung Fu, estes dois
grandes e profundos conhecimentos humanos. Para isso, me utilizo daquela que é,
senão a principal, uma das principais obras taoistas, o livro Tao Te Ching, atribuído
ao grande sábio Lao Tse, traduzido direto do chinês para o português e
comentado pelo mestre taoista Wu Jyh Cherng, uma das referências taoistas da
AFWK no Brasil (indico esta edição). Portanto, a partir dos pensamentos e
princípios taoistas citados aqui (ligados à vida Kung Fu), ofereço a reflexão
que segue. Boas leituras!
Governo do Homem
Superior – ou como deve ser um bom governo
- O que o taoismo diz sobre isso?
“O Homem Superior termina o dia de
caminhada
Sem se afastar da ponderação e dos recursos.”
(Lao
Tse, Tao Te Ching)
Comentários
e análise do mestre Wu Jyh Cherng:
“Ponderar
é a pessoa refletir, procurando observar todas as implicações de uma questão,
antes de se definir por um juízo; (...)”. Nisso, um grande homem, um bom
governante ou líder (o ‘Homem Superior’), “no lugar da insensatez da mente que
leva às atitudes mesquinhas diante da vida, ele cultiva a lucidez que leva à
prática da reflexão sobre suas ações, (...). Com isso, não se afasta da ponderação
quando analisa os fatos do seu cotidiano, e utiliza de modo correto os recursos
que possui, (...).
O
poema ensina que um homem de grande poder e riqueza (estadista, governo, líder)
necessita ser uma pessoa ponderada, para não se tornar leviana. Devido à sua
responsabilidade perante o mundo, ele precisa ser atencioso com as outras
pessoas e cuidadoso com seus gestos, palavras e ações porque qualquer erro seu
pode tomar uma dimensão muito grande e se transformar numa catástrofe social.”
A vida banalizada: quanto mais armas,
mais violências e mortes
Quanto
a isso, o taoismo, a partir de sua grande obra escrita, se mostra cauteloso ou
até ‘contra’ a proliferação das armas entre a população, assim como, nos diz
que uma sociedade saudável e equilibrada precisa fundamentalmente de um governo
saudável e equilibrado, como podemos observar nos trechos do Tao Te Ching
abaixo:
“A arma é o recipiente da desventura,
Não é o recipiente do Homem Superior,
(...)
Aquele que tem prazer em matar
Não pode triunfar sob o céu.”
(...)
“Muitas restrições e omissões no mundo
Tornam o povo completamente pobre;
Muitos instrumentos afiados entre o povo
Fazem crescer a confusão no reino e na
família;”
(Lao
Tse, Tao Te Ching)
Comentários
e análise do mestre Wu Jyh Cherng:
“Reino
representa o governo de um país, (...). Os mestres taoistas dizem que da mesma
forma que o corpo de uma pessoa precisa se manter saudável para ela seguir seu
Caminho com fluidez, um reino também precisa ser saudável para sua população
conhecer a paz e a estabilidade, e isto se consegue através da retidão de leis
justas, claras e sólidas.”
“Instrumentos
afiados representam armas como facas e punhais que servem para cortar, destruir
ou agredir. A existência de muitos instrumentos afiados entre o povo faz
crescer a confusão porque questões conflituosas, pequenas ou grandes, que
surgem naturalmente no seio de uma família ou dentro de um reino, tendem a ser
tratadas pelas armas se a pessoa tiver uma disposição prévia para o seu uso, e
se for incentivada pela profusão desses instrumentos entre a população.”
*
Obs.: leia-se que, no período em que
o Tao Te Ching foi escrito, não existiam armas de fogo.
Quanto
ao equilíbrio e saúde sociocultural, que passa necessariamente pela política,
ou seja, pelo Estado e/ou governo, a diversidade cultural, social, política (de
pensamento e práticas), deve ser respeitada e contemplada nos assuntos e ações
do governo:
“Onde governa a tolerância,
O povo tem tranquilidade;
Onde governa a discriminação,
O povo tem insatisfação.”
(Lao
Tse, Tao Te Ching)
Comentários
e análise do mestre Wu Jyh Cherng:
“(...)
quando pessoas de características e pensamentos diversos são aceitas e
toleradas em condições de igualdade por um governo, o povo vive com
tranquilidade porque passa a confiar no seu governante e adquire a convicção de
que será protegido pela legislação e pela Justiça do país. De forma inversa,
onde governa a discriminação, o povo vive na insatisfação porque as políticas
ou atitudes arbitrárias e preconceituosas separam os homens por classes ou
atributos, beneficiando alguns em prejuízo de outros, e esta forma de governar
desagrada a todos porque sempre haverá alguém sentindo-se insatisfeito ou sento
vitimado por alguma injustiça.”
E
esta ‘injustiça’ gera desentendimentos e convulsões sociais. Como bem podemos
perceber, ver e sentir, na condição atual do Brasil que, infelizmente é esta.
Violências diárias, sejam nas ruas ou pelos meios de comunicação de massa,
sejam pelas mãos do crime organizado, do crime individual comum ou pelos crimes
do Estado, estas violências, físicas, simbólicas ou psicológicas, contra a
saúde e o equilíbrio social, cultural e político (ou seja, humano), acabam por
minar a sociedade, causando vários transtornos e problemas. Nisso, podemos
verificar o aumento da exploração do trabalho e do ser humano mais necessitado
(um ato de covardia do poder instituído sobre o povo), da pobreza material, intelectual,
moral, ética, espiritual, política da nação. Não precisa ser especialista para
saber disto, basta olhar e se informar para perceber tal realidade. Tristemente,
nosso momento é de pouca saúde sociocultural, devido ao caminho desequilibrado
que parte significativa da população escolheu (com consciência disso ou sem), e
que o atual governo e seus tentáculos promovem. Menos acesso e investimento em
educação e maior facilitação ao uso público de armas de fogo, são um exemplo
deste caminho.
E o que o Kung Fu tem a ver com isso?
Muitas
vezes, no senso comum, o Kung Fu é visto meramente como um estilo de luta, o
que, infelizmente, em várias situações, é tratado e reforçado como tal por
praticantes e até professores. Mas, sendo um antigo conhecimento, profundo e
amplo, sabe-se que ele vai além da luta. Ou seja, o Kung Fu tem princípios morais
e éticos que o fundamentam para além do que, comumente, se pensa e se diz dele.
Alguns destes princípios vem dos velhos mestres e mestras que, além do fator
técnico-marcial (externo), cultivavam o fator mental-espiritual (interno).
Muitos destes princípios, inclusive, estão dispostos nos Wu De (códigos de
ética) do Kung Fu. Uma parte destes mestres ou mestras eram taoistas. Então, o
taoismo filosófico, é uma das grandes bases teóricas, morais e éticas (e
espirituais) do Kung Fu, porém, nem todos admitem e fazem bom uso disso. E é
neste sentido que o Kung Fu, enquanto conhecimento e sabedoria humana, deve prezar
pelo equilíbrio, pela saúde da sociedade como um todo, o que envolve os seres
humanos e a natureza. Nisso, sifu’s (mestres e professores) são os grandes
responsáveis por fazer jus a este conhecimento milenar.
Historicamente,
o Kung Fu, em sua essência, foi/é um instrumento de busca de equilíbrio e paz, utilizado
como resistência às investidas opressoras e violentas dos governos e suas
tiranias. O Wing Tjun (Wing/Weng Chun) é um exemplo disso, a partir de sua
história de auto-defesa e/ou luta contra a violência do império manchu.
Kung Fu no contexto brasileiro atual
No
Brasil, como em quase todo o mundo, existe uma variedade de escolas,
associações, estilos, linhagens ou modos de Kung Fu. Mas nem todas as
escolas/associações, professores, mestres ou praticantes olham e vivem o Kung
Fu a partir de seus princípios ‘internos’ fundamentais. Por isso vemos muitos
estereótipos que empobrecem o Kung Fu por aí, infelizmente, tornando-o uma
caricatura ou simplesmente uma luta marcial usada para, ao invés de equilibrar,
submeter. Certa cultura machista e individualista, de disputa econômica e/ou de
ego, engrossam esta triste realidade. Porém, existem as escolas/associações,
sifu’s (mestres ou professores) e praticantes que dignificam o Kung Fu como sendo
este grande conhecimento, esta grande arte de sabedoria, mental, física e
espiritual. E dignificar o Kung Fu é fazer parte de sua história, de seu valor,
de uma certa consciência sobre ser-estar no mundo.
Em
suma, a situação do Brasil atual mostra aos praticantes e mestres que este é um
momento de posição ou postura a ser tomada, frente aos vários ataques que neste
momento acontecem contra o ser humano, contra a natureza e as expressões artísticas,
étnicas, ou seja, socioculturais. Posições ou posturas estas, que promovam a
saúde, o equilíbrio, a paz social. Por isso, a AFWK se posiciona e se manifesta
contra o autoritarismo e as medidas anti-populares, anti-humanas e
anti-naturais do atual governo brasileiro e seus tentáculos.
Que
as ‘armas’ promovidas entre a população pelo Estado, sejam a sensibilidade, a
educação, o conhecimento, a saúde mental e física, a criatividade, as artes, a
paz e o amor, e não o ódio, as violências, a ideologização, a banalidade da
vida. E o Kung Fu pode ser uma destas armas. Por isso, enquanto
escola/associação taoista e de Kung Fu, trabalhamos para isso.
Professor
Herman Silvani.
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Textos
relacionados:
Análise
sobre ações não defensivas e o uso das armas de fogo:
Wu
De (código de ética) AFWK:
Nós e o mundo: “ o espírito de
nosso tempo...”:
Wing Tjun, arte de
resistência:
Referência:
TSE, Lao. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude; tradução direta do
chinês e comentários de Wu Jyh Cherng; coautoria para transcrição, edição e
adaptação dos textos Marcia Coelho de Souza – Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
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