O taoismo, além de seu caráter ‘religioso’ (tornado
‘religião’ em alguns casos, mas que começou – e continua – como filosofia,
sendo que, na tradição cultural-intelectual chinesa, filosofia e
espiritualidade não se separam tanto como no ocidente), é um conhecimento
filosófico profundo. Iniciou como uma espécie de ‘xamanismo’, onde mestres
estudiosos nativos, desenvolveram seus estudos, experiências, junto da
natureza, a grande mãe-mestra do taoismo. E foi a partir deste conhecimento e
cultura milenar que estes conceitos primordiais hoje são ainda possíveis,
aplicados ao mundo da energia, da saúde e das artes marciais – mas não por
todas as escolas. Um elo conceitual entre a natureza e o ser humano, que
considera, além da natureza, a cultura humana, como um ‘retorno’ ao seu estado
natural de ser-estar. Para isso, a linguagem é fundamental, pois, na
compreensão destes conceitos, além da tradução, está a simbologia, a
interpretação destes conceitos, para que eles sejam possíveis de serem desenvolvidos
na prática. Diferente de muitos conhecimentos, onde a teoria antecede a
prática, o taoismo parte da prática, da experiência para a teoria, que depois
retorna para a prática (efetivação), num ‘movimento dialético’, antecipando
assim, historicamente, a dialética de Heráclito, depois de Hegel e Marx
(guardadas as diferenças e proporções). Nisso, o conhecimento e/ou cultura
taoista traz como característica a imanência na sua efetivação, e não a
transcendência, como é em muitas religiões, e diferente do que muitos
acreditam. Mas este é um assunto para um outro texto que pretendo ainda escrever.
No mundo do Kung Fu (termo popularizado para as práticas
marciais de origem chinesa) existem algumas controvérsias quanto a compreensão
e aplicação de alguns conceitos, dado a diferentes concepções incorporadas por
diferentes ‘escolas’ ou ‘modos’ de se compreender, conceber, estudar ou
praticar o Kung Fu. Dentro deste quadro complexo, filosófico, antropológico,
sociológico e histórico, podemos pensar as diferentes escolas, estilos e/ou
modos de Kung Fu como peculiares, porém, entre alguns deles, existem
semelhanças ou ‘raízes’ que, quando não são as mesmas, são parentes entre si. O
que também podemos chamar de matriz ou essência. É o caso do Wing Chun e do
Weng Chun Kuen, por exemplo. O estilo Garça Branca e Serpente são diferentes, é
fato, porém, ambos tem uma essência que, se não for a mesma, é parentesca, e ambos
os estilos deram vida ao Wing e Weng Chun, internamente e historicamente
falando. Assim como, para quem chega na essência do Wing/Weng Chun e do Tai Chi
Chuan, descobre que ambos tem esta ‘raiz’ irmã (senão a mesma), simbolicamente
transmitidas pelas ‘raízes’ internas dos estilos Garça Branca e Serpente, os
dois estilos (animais-símbolo) que mais carregam o aspecto ‘interno’ dos cinco
animais clássicos do Kung Fu (Leopardo, Tigre e Dragão, além dos já citados).
Esta ‘essência’ a que me refiro, assim como o Tao, é praticamente intraduzível,
inexplicável, pois não são palavras e razão (consciência material) que dão
conta de conceituar formalmente esta concepção e/ou ideia, sendo a ideia, neste
caso, apenas uma forma de poder referenciar ou minimamente localizar esta
‘essência’ – ter um breve sopro de pensamento sobre ela. Sim, eu sei, isso dá
um nó na cabeça, e bem por isso, não é possível com palavras compreender
inteiramente do que realmente se trata, é preciso, sentir e saber, independente
da razão ocidental(izada). Porém, também não é simples crença, como muitos
dizem (sem saber). Entre a crença e a razão, existe o fator percepção, e é
neste ‘não-lugar’ (ou lugar) onde a essência, assim como o Tao, estão (e não
estão). Ou seja, só praticando e adquirindo, com o tempo, esta sabedoria, que é
possível termos certo ‘controle’ dela, o que alguns chamam de ‘afundar o Chi’
ou ‘derreter internamente até sentir o Tan Chien inferior’, onde a energia Chi
‘manipulável’ pode ser sentida e trabalhada, assim, também aplicada na
‘marcialidade’ em forma, por exemplo, de Fa Ging (externização e explosão de
energia a partir da essência). Este é um conhecimento que não depende do uso da
razão, do simples querer, mas sim, da soma dos ‘três tesouros’ (ver taoismo), mais
o Yi, experienciados e muito trabalhados na prática cotidiana do Kung Fu, a
partir de seu aspecto ‘interno’, e através do tempo. Para isso, são
fundamentais a meditação e o estudo e prática do Chi Kung e/ou do Tai Chi Chuan
(no nosso caso, AFWK, também do Wing/Weng Chun internos).
O acesso
Certa mentalidade desenvolvida a partir destes elementos
estudados e praticados, e posta em prática, onde se inclui certas práticas
cotidianas (mudanças de concepções e atitudes) podem permitir o acesso a este
conhecimento que, compreendido e ‘incorporado’, se transforma em sabedoria. E
eis que chegamos até a ‘essência’ (Ching), onde conhecimentos como Chi Kung,
Tai Chi, Wing Tjun (Wing e Weng Chun), Garça Branca, Serpente, Yi-Ching, Pakua,
por exemplo, estilos diferentes, mas que se integram de algum modo na prática
‘marcial’ (e de vida), pois dialogam entre si, a partir desta essência que, se
não for a mesma, é parente, convergem, ou no mínimo, dialogam - por isso, são
possíveis de serem trabalhadas juntas. Se pegarmos a história destas artes e/ou
conhecimentos, desenhados numa árvore, poderemos perceber a ligação direta ou
indireta entre elas que, mesmo sendo diferentes, convergem em algum sentido, e
é este sentido que, incorporado e amplificado, faz perceber e atingir a
essência. Por isso é que, o Caminho não é endurecer, simplificar, diminuir,
reduzir em territórios controlados estas artes/conhecimentos, mas sim, fluir
entre eles, dentro e fora, tendo-os como irmãos/ãs e não como estranhos ou
inimigos. Como diria o GM Liu Pai Lin em outras palavras, ‘a forma é feita para
ser deformada, e depois formada novamente...’. Isso é o que a concepção taoista
(leia-se ‘dialética’ em movimento ‘espiral’ – por onde anda a energia), nos
ensina. Algumas escolas, linhagens ou ‘modos’ que atingem esta essência e podem
ser citadas de exemplos, são a escola de Wing/Weng Chun do Vietnam, a partir do
GM Yuen Chai Wan e a IWKA, do GM contemporâneo Sergio Iadarola (grandes
referências para a AFWK).
Diferenças não são
impossibilidades
Estilos, modos, formas parentescas, mesmo em tempos
diferentes, porém ligados pelo Caminho (Tao), podem nos levar à essência. Uma
vez chegando lá, não há retorno, pois, outras possibilidades, como portas, se
abrem, que levam para um novo, porém mais amplo, fluente, dinâmico, flexível e
profundo caminho. E tudo se inicia com o relaxamento e a mente flexível, e vai
até a incorporação e percepção deste Caminho. Depois disso, é seguir nele,
estudando, praticando, vivenciando, dia após dia, este novo estado de ‘espírito’
(Shen). Por isso, amigos/as, ao invés de construir muros e viver rígidos como
concreto, vamos fluir como água.
Espero com isso ter trazido à tona algumas reflexões e
sensibilidade que possam ajudar no cultivo e trabalho de energia, rumo a
naturalização e flexibilidade do ser-estar no mundo, para uma prática do Kung
Fu mais ‘natural’, mesmo sendo um desenvolvimento cultural humano - mas que,
tem na natureza e seus movimentos, sua grande escola e mestra. Então, façamos
jus, dignificando este conhecimento, para além dos estereótipos e dos controles
sobre os discursos territorializadores.
* Nas imagens a seguir, movimento/postura da Garça
Branca, registrados em tempos diferentes e executados por praticantes
diferentes (postura presente nas práticas de Chi Kung, Tai Chi e Kung Fu),
exemplo de artes diferentes que possuem ou se encontram na 'essência'.
Na
primeira foto, professor Herman Silvani (AFWK), praticando Chi Kung e Tai Chi
Chuan (no litoral catarinense, na virada de ano de 2011 para 2012), movimentos
que aprendeu em meados dos anos 90 com um praticante (Kung Fu e artes internas)
que estudou no sudeste asiático (Vietnam e Indonésia). Na segunda foto, sifu
Diep Phuong da 'escola/modo' a partir do GM Yuen Chai Wan (Vietnam). Na terceira
foto, uma praticante chinesa.
Ambos
(guardadas as diferenças nos detalhes) chegando na mesma forma (em movimento ou
fixa) que, nesta sequência, colocada em movimento (circular), vinda de cima
para baixo (foto 1) em intensidade água (Tai Chi e/ou Chi Kung), chega na postura
mais baixa (foto 3):
sifu Herman Silvani - do céu para a terra: saindo do movimento (céu) e formando a postura (terra)
sifu Diep Phuong (Vietnam)
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