quinta-feira, 29 de novembro de 2018

“Essência” (Ching – e outros conceitos) no Kung Fu: um caso de percepção, sensibilidade e incorporação

Uma questão imprescindível nos estudos e/ou práticas ‘marciais’ chinesas (Kung Fu), sob tudo referente as escolas, associações, famílias ou linhagens que trabalham (declaradamente) o aspecto ‘interno’ das ‘artes marciais’, é o uso dos conceitos fundamentais. Entre eles estão os conceitos de Chi (energia sutil e vital interna), Ching (essência) e Shen (espírito/consciência), também chamados de ‘três tesouros’. Nisso, também incluo o conceito de Yi (intenção), como fundamental no estudo e prática do Kung Fu. Ambos conceitos desenvolvidos, estudados e praticados por antigos mestres taoistas. Heranças valiosas aos que estudam as artes chinesas com mais profundidade.

O taoismo, além de seu caráter ‘religioso’ (tornado ‘religião’ em alguns casos, mas que começou – e continua – como filosofia, sendo que, na tradição cultural-intelectual chinesa, filosofia e espiritualidade não se separam tanto como no ocidente), é um conhecimento filosófico profundo. Iniciou como uma espécie de ‘xamanismo’, onde mestres estudiosos nativos, desenvolveram seus estudos, experiências, junto da natureza, a grande mãe-mestra do taoismo. E foi a partir deste conhecimento e cultura milenar que estes conceitos primordiais hoje são ainda possíveis, aplicados ao mundo da energia, da saúde e das artes marciais – mas não por todas as escolas. Um elo conceitual entre a natureza e o ser humano, que considera, além da natureza, a cultura humana, como um ‘retorno’ ao seu estado natural de ser-estar. Para isso, a linguagem é fundamental, pois, na compreensão destes conceitos, além da tradução, está a simbologia, a interpretação destes conceitos, para que eles sejam possíveis de serem desenvolvidos na prática. Diferente de muitos conhecimentos, onde a teoria antecede a prática, o taoismo parte da prática, da experiência para a teoria, que depois retorna para a prática (efetivação), num ‘movimento dialético’, antecipando assim, historicamente, a dialética de Heráclito, depois de Hegel e Marx (guardadas as diferenças e proporções). Nisso, o conhecimento e/ou cultura taoista traz como característica a imanência na sua efetivação, e não a transcendência, como é em muitas religiões, e diferente do que muitos acreditam. Mas este é um assunto para um outro texto que pretendo ainda escrever.

No mundo do Kung Fu (termo popularizado para as práticas marciais de origem chinesa) existem algumas controvérsias quanto a compreensão e aplicação de alguns conceitos, dado a diferentes concepções incorporadas por diferentes ‘escolas’ ou ‘modos’ de se compreender, conceber, estudar ou praticar o Kung Fu. Dentro deste quadro complexo, filosófico, antropológico, sociológico e histórico, podemos pensar as diferentes escolas, estilos e/ou modos de Kung Fu como peculiares, porém, entre alguns deles, existem semelhanças ou ‘raízes’ que, quando não são as mesmas, são parentes entre si. O que também podemos chamar de matriz ou essência. É o caso do Wing Chun e do Weng Chun Kuen, por exemplo. O estilo Garça Branca e Serpente são diferentes, é fato, porém, ambos tem uma essência que, se não for a mesma, é parentesca, e ambos os estilos deram vida ao Wing e Weng Chun, internamente e historicamente falando. Assim como, para quem chega na essência do Wing/Weng Chun e do Tai Chi Chuan, descobre que ambos tem esta ‘raiz’ irmã (senão a mesma), simbolicamente transmitidas pelas ‘raízes’ internas dos estilos Garça Branca e Serpente, os dois estilos (animais-símbolo) que mais carregam o aspecto ‘interno’ dos cinco animais clássicos do Kung Fu (Leopardo, Tigre e Dragão, além dos já citados). Esta ‘essência’ a que me refiro, assim como o Tao, é praticamente intraduzível, inexplicável, pois não são palavras e razão (consciência material) que dão conta de conceituar formalmente esta concepção e/ou ideia, sendo a ideia, neste caso, apenas uma forma de poder referenciar ou minimamente localizar esta ‘essência’ – ter um breve sopro de pensamento sobre ela. Sim, eu sei, isso dá um nó na cabeça, e bem por isso, não é possível com palavras compreender inteiramente do que realmente se trata, é preciso, sentir e saber, independente da razão ocidental(izada). Porém, também não é simples crença, como muitos dizem (sem saber). Entre a crença e a razão, existe o fator percepção, e é neste ‘não-lugar’ (ou lugar) onde a essência, assim como o Tao, estão (e não estão). Ou seja, só praticando e adquirindo, com o tempo, esta sabedoria, que é possível termos certo ‘controle’ dela, o que alguns chamam de ‘afundar o Chi’ ou ‘derreter internamente até sentir o Tan Chien inferior’, onde a energia Chi ‘manipulável’ pode ser sentida e trabalhada, assim, também aplicada na ‘marcialidade’ em forma, por exemplo, de Fa Ging (externização e explosão de energia a partir da essência). Este é um conhecimento que não depende do uso da razão, do simples querer, mas sim, da soma dos ‘três tesouros’ (ver taoismo), mais o Yi, experienciados e muito trabalhados na prática cotidiana do Kung Fu, a partir de seu aspecto ‘interno’, e através do tempo. Para isso, são fundamentais a meditação e o estudo e prática do Chi Kung e/ou do Tai Chi Chuan (no nosso caso, AFWK, também do Wing/Weng Chun internos).

O acesso

Certa mentalidade desenvolvida a partir destes elementos estudados e praticados, e posta em prática, onde se inclui certas práticas cotidianas (mudanças de concepções e atitudes) podem permitir o acesso a este conhecimento que, compreendido e ‘incorporado’, se transforma em sabedoria. E eis que chegamos até a ‘essência’ (Ching), onde conhecimentos como Chi Kung, Tai Chi, Wing Tjun (Wing e Weng Chun), Garça Branca, Serpente, Yi-Ching, Pakua, por exemplo, estilos diferentes, mas que se integram de algum modo na prática ‘marcial’ (e de vida), pois dialogam entre si, a partir desta essência que, se não for a mesma, é parente, convergem, ou no mínimo, dialogam - por isso, são possíveis de serem trabalhadas juntas. Se pegarmos a história destas artes e/ou conhecimentos, desenhados numa árvore, poderemos perceber a ligação direta ou indireta entre elas que, mesmo sendo diferentes, convergem em algum sentido, e é este sentido que, incorporado e amplificado, faz perceber e atingir a essência. Por isso é que, o Caminho não é endurecer, simplificar, diminuir, reduzir em territórios controlados estas artes/conhecimentos, mas sim, fluir entre eles, dentro e fora, tendo-os como irmãos/ãs e não como estranhos ou inimigos. Como diria o GM Liu Pai Lin em outras palavras, ‘a forma é feita para ser deformada, e depois formada novamente...’. Isso é o que a concepção taoista (leia-se ‘dialética’ em movimento ‘espiral’ – por onde anda a energia), nos ensina. Algumas escolas, linhagens ou ‘modos’ que atingem esta essência e podem ser citadas de exemplos, são a escola de Wing/Weng Chun do Vietnam, a partir do GM Yuen Chai Wan e a IWKA, do GM contemporâneo Sergio Iadarola (grandes referências para a AFWK).

Diferenças não são impossibilidades

Estilos, modos, formas parentescas, mesmo em tempos diferentes, porém ligados pelo Caminho (Tao), podem nos levar à essência. Uma vez chegando lá, não há retorno, pois, outras possibilidades, como portas, se abrem, que levam para um novo, porém mais amplo, fluente, dinâmico, flexível e profundo caminho. E tudo se inicia com o relaxamento e a mente flexível, e vai até a incorporação e percepção deste Caminho. Depois disso, é seguir nele, estudando, praticando, vivenciando, dia após dia, este novo estado de ‘espírito’ (Shen). Por isso, amigos/as, ao invés de construir muros e viver rígidos como concreto, vamos fluir como água.
Espero com isso ter trazido à tona algumas reflexões e sensibilidade que possam ajudar no cultivo e trabalho de energia, rumo a naturalização e flexibilidade do ser-estar no mundo, para uma prática do Kung Fu mais ‘natural’, mesmo sendo um desenvolvimento cultural humano - mas que, tem na natureza e seus movimentos, sua grande escola e mestra. Então, façamos jus, dignificando este conhecimento, para além dos estereótipos e dos controles sobre os discursos territorializadores.


* Nas imagens a seguir, movimento/postura da Garça Branca, registrados em tempos diferentes e executados por praticantes diferentes (postura presente nas práticas de Chi Kung, Tai Chi e Kung Fu), exemplo de artes diferentes que possuem ou se encontram na 'essência'.
Na primeira foto, professor Herman Silvani (AFWK), praticando Chi Kung e Tai Chi Chuan (no litoral catarinense, na virada de ano de 2011 para 2012), movimentos que aprendeu em meados dos anos 90 com um praticante (Kung Fu e artes internas) que estudou no sudeste asiático (Vietnam e Indonésia). Na segunda foto, sifu Diep Phuong da 'escola/modo' a partir do GM Yuen Chai Wan (Vietnam). Na terceira foto, uma praticante chinesa.
Ambos (guardadas as diferenças nos detalhes) chegando na mesma forma (em movimento ou fixa) que, nesta sequência, colocada em movimento (circular), vinda de cima para baixo (foto 1) em intensidade água (Tai Chi e/ou Chi Kung), chega na postura mais baixa (foto 3):

















sifu Herman Silvani - do céu para a terra: saindo do movimento (céu) e formando a postura (terra)



sifu Diep Phuong (Vietnam)






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