Quem
vive nele, sabe que o ‘meio marcial’ é repleto de discursos, ideais, controles,
interesses, políticas ou ideologias, e senso comum, infelizmente. Um destes
discursos diz que uma associação ou escola para ser ‘confiável’, precisa ser
filiada a alguma federação, possuir alguma sigla oficial registrada, que a
identifique e prove sua ‘qualidade’ e ‘seriedade’ quanto seus conhecimentos e
atuação. Mas, quem define, concebe, legitima, e prova isso? Existem iluminados
que tem este poder real, de dizer aos quatro ventos quem é o quê neste mundo
(que às vezes parece gueto) dito marcial? Sites oficiais ou não, não comprovam,
mas sim, podem ajudar. Assim como as linhagens.
Moro
numa cidade onde existe uma escola de um ‘estilo marcial’ dito pelo discurso
‘publicitário’ (lembremos que publicidade é algo encomendado, pago) ‘um dos
mais eficientes em defesa-pessoal do mundo’. E esta escola ‘representa’ a maior
instituição deste estilo no mundo todo (israelense). Já fiz uma aula nesta
escola e com seu professor. Na oportunidade também estava seu ‘mestre’, entre
outros professores de outros estilos e alunos. E acontece que, me saí bem em
uma troca de experiências com um dos alunos mais experientes daquele estilo
naquele momento, e o ‘mestre’ interferiu dizendo que ‘fiz errado’. Questionei:
‘se fiz errado e me dei bem acima do oponente, não teria sido certo?’. O tal
‘mestre’ não gostou e quis me mostrar, chutando minha perna de verdade, fazendo
algo bem diferente do que era proposto naquele treino (eu, ao contrário, segui
as orientações, só usei da minha ‘habilidade’ em Wing Chun). E antes mesmo de
eu questionar novamente, desta vez sua atitude, o dito ‘mestre’ se retirou
rapidamente, ignorando o que eu começara a falar. Doutra feita, um dos meus
melhores alunos (por livre e espontânea vontade) fez uma visita nesta mesma escola, anos depois, ela já bem mais
estruturada e representante desta famosa e reconhecida sigla internacional. O professor
não sabia que o visitante era meu aluno. Treinou com ele e teve algumas ‘surpresinhas’.
Tratou logo de mandar um aluno seu treinar com o meu. Conto esta história, pois,
sou fundador e professor de uma associação ou escola, a partir de conhecimentos
próprios e referências externas com que tive contato e aprendi, a maioria de
forma ‘informal’ (professores que não pertenciam a agremiações), mas também tive meu caminho formal/oficial (não se preocupem com isso - risos). Ou seja, enquanto associação, não pertencemos à uma sigla internacional, nem federação. Não possuímos ou seguimos uma linhagem em
específico. Estudamos bastante, com honestidade, sinceridade e respeito aos
conhecimentos que acessamos. Nisso, a questão é: não ser reconhecido ou registrado
oficialmente sob a sombra de alguma instituição 'oficial', nos torna menos
conhecedora enquanto escola ou associação, menos verdadeira, coerente ou digna?
Assim como não seguirmos ou possuirmos uma única linhagem em específico nos
torna ‘impuros’ dentro do sistema que estudamos/praticamos e cultivamos? Quem
ou o quê, e como se determina isso? Sei de organizações (famosas) que cobram
mensalidade, ganham muito dinheiro com isso, mas não fornecem o fundamental aos
seus filiados: equilíbrio, dignidade, honestidade, sinceridade para com os
estudantes. Outro caso, foi de uma ex-aluna que foi embora da cidade para o
sudeste do país, São Paulo, e apaixonada pela arte, buscou seguir no Wing Chun
em outra escola. Foi numa bastante conhecida. Chegando lá, segundo o que ela
mesma me relatou, não foi bem tratada, e também não se sentiu bem praticando,
achou o ‘modo’ muito ‘duro’, mecânico (yang), sem as variações para ying. Quanto
a isso, tudo bem, existem diferenças consideráveis de uma escola e seu modo
para outra. Mas, quanto ao tratamento, quando é ruim, não há como relativizar. E
falo de uma escola muito mais conhecida do que a nossa, que possui mestre,
linhagem, marca registrada e etc. Por fim, acabou trocando o Wing Chun por
outro estilo, onde fora bem recebida e tratada.
Portanto,
não é a questão de ‘ser ou não ser’ oficial que vai fazer com que a associação,
escola, professor ou ‘mestre’ seja algo realmente sincero e coerente com o
conhecimento. É preciso mais que isso (esta checagem com vistas ao ‘oficial’)
para se ter realmente um espaço que dignifique o conhecimento, e principalmente,
a humanidade que é (ou pelo menos deveria ser) o grande motivo destes espaços. Sim,
algumas pequenas associações, não oficiais, iludem seu estudante. Existe,
acontece. Mas, também existem as grandes, oficiais que fazem o mesmo. Por isso,
além da pesquisa, é preciso dialogar, buscar os fundamentos, perceber o âmago
da questão, que não é o que está publicado, mas o que está ‘internizado’. No passado,
grande mestres nem escolas tinham, ensinavam dentro de sua família, sua vila ou
comunidade - e isso ainda existe. Um conhecimento como o Wing/Weng Chun que não era oficial, pois, na época, era ‘proibido’, tanto que formaram-se ‘sociedades secretas’ para
seu cultivo, é um bom e claro exemplo disso. Nos recantos da China ainda
existem alguns mestres ou famílias que atuam desta forma. Muito humildes, sem
nada ‘registrado’ oficialmente, mas, historicamente de imensurável valor. E lá está um
conhecimento profundo, sincero, que vai além dos estereótipos que infestam o
mundo dito marcial, distorcem muito das coisas e são usados como ‘legitimação’,
não do conhecimento em sim, mas do discurso sobre ele.
“Nunca
teste a profundidade de um rio com os dois pés” (Confúcio)
Entendo
a preocupação de alguns professores quanto aos problemas referentes ao
conhecimento dentro do Kung Fu, mas, nisso, certa relatividade deve ser
considerada. Com isso, não estou negando, subestimando ou detratando o que é ‘oficial’
em Kung Fu, não é isso. Apenas ‘problematizando’ algo que o senso comum ou o
interesse particular prolifera como se fosse uma ‘verdade única e absoluta’.
Enfim, você que não vive o ‘mundo Kung Fu’, mas tem interesse em ingressar, ou
está ingressando, não caia em discursos e retóricas que determinam e reduzem
uma história, uma realidade complexa, dinâmica e ampla. É preciso experimentar,
muito mais do que se deixar seduzir pelas ‘marcas’, discursos e estereótipos.
Enfim. Espero, mais uma vez, com isso, colaborar na reflexão e discussão em
torno do que move e deixa viva esta arte da qual vivo todos os dias, de um modo
ou de outro...
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